Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

A consciência nos torna vulneráveis

Por Antônio Roberto Gerin

Abajur Lilás faz parte das consideradas quatro principais obras da dramaturgia de Plínio Marcos. A última a ser escrita, em 1969, quando o autor completava apenas 34 anos. No entanto, esta obra, diferente das demais, não conseguiria estrear, censurada quando os ensaios estavam já em sua fase final. A despeito de várias tentativas, Abajur Lilás só viria a ser liberada para montagem 11 anos depois, em 1980. O texto se tornaria famoso mesmo sem ter-se transformado em espetáculo. Em diversas ocasiões a classe cultural se uniria na defesa do direito de Plínio Marcos de montar seus textos. Foi com muita luta que se conseguiu a liberação de Navalha na Carne, em 1967. Mesmo assim, seria liberado com uma curiosa exigência. Que o espetáculo fosse apresentado à meia-noite. Os constantes problemas com a censura gerariam na vida pessoal de Plínio Marcos alguns transtornos financeiros. Afinal, ele tinha na arte seu ganha-pão, o que o obrigou a buscar alternativas de ganho na televisão e como colaborador em jornais e revistas. Participaria, no papel de Vitório, em 1968, da icônica telenovela da Tupi, Beto Rockfeller, de imenso sucesso. E vendia seus livros em bares e teatros, intitulando-se, sem cerimônia, camelô, aliás, profissão que exerceria em vários momentos de sua vida. Este é o homem irreverente, de criatividade ímpar, que nos revelou uma realidade subterrânea da qual só passamos a tomar conhecimento através das páginas de sua literatura. Plínio Marcos era um ícone cultural, chamava atenção pelo seu estilo de vida, e mais que isso, era aplaudido pela fantástica força humana que emergia de seus diálogos calcados em uma economia de palavras sem precedentes, marco inovador da nossa dramaturgia. “Perfeita economia dramática”, escreveria Bárbara Heliodora. Só para caracterizar sua importância intelectual, cuja sabedoria estava em viver a vida de forma independente, portanto crítica, assim diria Plínio Marcos, ao se negar a receber o prêmio Mambembe, em 1985, por seu texto teatral Madame Blavatsky: “Artista não é cavalo de corrida que tem que chegar em primeiro lugar”. Eis o nobre legado do verdadeiro artista.

Voltando ao texto Abajur Lilás, o cafetão Giro é dono do mocó onde as prostitutas Célia e Dilma recebem seus fregueses. Célia é irreverente e revoltada. Dilma se submete às humilhações por causa do filho, sua razão de viver. Giro, com inusitado faro capitalista, vê o ganho como algo que se baseia na produtividade, portanto quanto mais programas as prostitutas fizerem maiores serão os lucros. Este é o embate subjetivo do texto. O conflito se escancara quando Célia quebra de propósito o abajur lilás, levando o sovina Giro à loucura. Com a chegada de mais uma prostituta, Leninha, o desequilíbrio se acentua, elevando o tom e encaminhando a trama para o seu desfecho.

Em Abajur Lilás, mais do que em outros textos seus, Plínio Marcos escancara a prática da cafetinagem, a comercialização do corpo alheio subjugado a maus-tratos e ameaças. Se no mundo civilizado a exploração do outro é exercida de forma camuflada, no submundo de Plínio Marcos ela se escancara a céu aberto, tipificada na relação em que pisar no corpo do outro é a única forma de enxergar o horizonte. E Plínio Marcos deixa clara esta condição em Abajur Lilás, quando Giro, o perverso cafetão, chancela sua posição de explorador, enquanto Dilma denuncia sua condição de explorada. Diz Giro. “A gente é sócio, porra!”. Dilma replica. “Eu entro com o batente e tu pega a grana”.

Vale anotar que Plínio Marcos repete em Abajur Lilás, com algumas diferenças, a mesma estrutura formal de Dois Perdidos numa Noite Suja. Aqui ele divide o texto teatral em dois atos e cinco quadros, sendo três quadros para o primeiro ato e dois quadros para o segundo. E logo no primeiro quadro Plínio Marcos já desenha o embate entre Giro e Dilma, em que ficam estabelecidas as relações de poder entre o cafetão e a prostituta. O produto destas relações é a exploração materializada em humilhações e agressões físicas e morais.

Sabemos que as dinâmicas de convivência social perpassam por regras morais rígidas, cristalizadas ao longo do tempo. Mas como falar de moral em um cafofo de prostituição? Quando olhamos para um bordel, somos tomados pela certeza de que ali não há regras, tudo é permitido, a moral é apenas um quadro sem rosto esquecido no alto de uma parede. A literatura de Plínio Marcos, e Abajur Lilás em particular, desmentem esta visão. Há regras, há códigos, sim. Que serão fontes de motivação para atitudes e decisões das personagens. Veja o que diz Dilma a respeito de sua profissão. “Sou mulher da vida, mas tenho moral. Comigo é aqui. Se o freguês quiser outros babados, mando falar com tu mesmo, que é bicha”. É prostituta, mas só aceita a cópula dita normal, o papai e mamãe. É o limite. Não podemos esquecer que um bordel é uma microestrutura social, portanto, cabe ali sim a régua moral que medirá quem são os melhores e quem são os piores. Exceto para Giro, para quem a única coisa que não precisa de moral é o dinheiro.

Em dado momento, chegando o embate entre Giro e Dilma a seu limite, Plínio Marcos sente necessidade de fazer entrar Célia, a outra prostituta, companheira de quarto de Dilma. O pólo do confronto se desloca momentaneamente para Célia e Giro, em que Célia, esgrimindo uma habilidade verbal poderosa, leva Giro, descontrolado, ao enfrentamento físico. Dominada por ele, Célia é empurrada para fora do quarto. Plínio Marcos retira Célia de cena só o tempo de finalizar o embate entre Dilma e Giro, onde o filho de Dilma continua sendo o ponto central da discussão. Esta é a estratégia covarde de que se vale Giro para fragilizar sua presa. Giro, ao se retirar, deixa Dilma a sós, embalando sua tristeza na saudade do filho. O primeiro quadro cênico, com seus conflitos, está esboçado. Mas ainda falta entrar em cena o conflito principal.

No segundo quadro, Plínio Marcos mais uma vez joga suas personagens em situação emocional extrema. Ao assim fazer, ele força as personagens à ação bruta, única expressão de resistência para almas tão deformadas na sua essência humana. E Plínio Marcos escolhe Célia como a mensageira da desgraça. É o que ela diz a Dilma, referindo-se a Giro, o cafetão veado, desumanizado pelo dinheiro. “Tu tem medo? Se é isso, deixa pra mim. Faço a bicha com alegria. Antes do veado ciscar, dou-lhe um teco na lata. Mando o puto pro beleléu. Só tu entrar com a grana, o resto é meu”. O crime é um subproduto do desespero quando, em nome da libertação, perde-se de vista sua trágica consequência. E o revólver, na literatura de Plínio Marcos, tem esta função. Age como a alternativa disponível na esperança de se fazer gente. Mas como comprar a “draga” se Célia gasta todo seu dinheiro com bebida? Pois é. Ao oferecer bebida a Célia, Plínio Marcos a coloca à deriva, impotente. Em contrapartida, ao dar um filho a Dilma, Plínio Marcos a acovarda. Eis a triste constatação. Não há saída.

Ainda neste quadro, Plínio Marcos precisa ir além, ele precisa definir o ponto de tensão que irá provocar a explosão da tragédia. Primeiro introduz um conflito lateral, entre Célia e Dilma, para estabelecer o contraponto de personalidades. Traz o escarro de sangue na pia como ponto de choque entre as duas. Uma e outra se acusam de estar doente, e partem para as agressões verbais, interrompidas pela entrada passageira de Giro, que logo se retira, após dar seu recado de opressão. Um corte cênico providencial, pois Giro, ao se retirar, deixa o campo aberto para que o embate entre a revoltada Célia e a apática Dilma prepare a entrada de algo que é muito simbólico na dramaturgia de Plínio Marcos. A tensão se volta para o objeto, concretizado, neste caso, no abajur lilás. Célia joga o abajur no chão, declarando guerra a Giro. O conflito central, finalizando o segundo quadro, enfim entra em cena.

No terceiro quadro, há a amplificação da zona de conflito. É o quadro mais simples do ponto de vista da construção dramatúrgica. Mas essencial na sua função de dar fôlego extra à narrativa, caracterizando-se como o ponto de futuro desequilíbrio. Plínio introduz mais uma personagem, Leninha. É puta nova, recém-chegada, descolada, que ao revelar a Giro seu gosto por leitura, este diz. “Que mania besta essa tua”. Óbvio que Leninha não lê Machado de Assis. Lê a revista Capricho. E a gênese do conflito é o abajur, agora quebrado. Sem abajur, afinal, não pode haver leitura. Leninha encurrala Giro ao exigir um novo abajur. Diz ela. “Já vi com quem vou lidar. Com um enrolador. Prometeu de araque”. Giro estrategicamente se encolhe. Sabe que terá muito trabalho para descobrir quem quebrou seu abajur. É com este objetivo, descobrir o culpado, que se iniciará o segundo ato.

O segundo ato, mais curto, é composto apenas de dois quadros, quarto e quinto. O quarto quadro já inicia com as três mulheres sentadas, em ritmo inquisitório, diante das quais Giro se entrega às suas mais terríveis tergiversações sobre as injustiças de que é vítima, injustiça esta personalizada no abajur quebrado. Com esta manobra cênica, o autor já nos coloca no olho do furacão. E com um desafio. O espectador sabe quem quebrou o abajur.

A introdução da terceira personagem, Leninha, tem a justa finalidade de quebrar o rígido código de honra que reina no quarto. É o desafio proposto por Giro. Prefere manipular três, sabendo que uma delas caguetará. Mas sua intenção vai além. Produzir a desunião entre as putas. Desunidas, cada uma, a seu modo, se submeterá a ele. Esta é a essência do controle que Plínio Marcos tão bem arquiteta. E na busca desse objetivo, Plínio Marcos, no domínio da escrita, prepara o embate já sabendo qual será o desfecho. Mas vai devagar, sob o risco de perder o fôlego antes da hora. Para tanto, primeiro introduz a Dilma e Célia a terceira prostituta, Leninha. Diante da presença da novata, as duas reagem. E Célia decide ir embora. Tudo bem, Giro concorda, mas joga as cartas sobre a mesa. Diz a Célia. “Só que antes paga o que me deve”. “Eu te devo porra nenhuma”. “E o abajur que tu quebrou?” Esta é uma das atitudes cênicas de que Plínio Marcos mais gosta de se valer. Colocar suas personagens em becos sem saída. Plínio Marcos, num gesto cruel, não deixa suas personagens fugirem para a vida.

A questão central, que gira em torno do abajur quebrado, é marotamente resolvida por Giro. Para tanto, o objetivo é oferecer doses cavalares de pressão emocional às suas vítimas. Afinal, sem o fácil recurso do alcaguete, Giro não terá como saber qual das duas, Dilma ou Célia, quebrara o abajur. Cruelmente prepara o terreno. Vai descontar de ambas, um abajur para cada uma. Questionado, argumenta. “Claro, não sei quem foi. Desconto um de cada”. Evidente, eis a estratégia. Incitar o ato de caguetar. Portanto, desunir, desarmar, levar a tortura emocional ao limite. Alguém vai ceder. Eis o que diz Célia sobre a imundície moral do cagueta. “Se tem uma coisa que me dá nojo é cagueta. Tenho mais nojo de cagueta do que de veado”. Ao assim resolver o impasse da quebra do abajur, atribuindo financeiramente a culpa às duas, Plínio Marcos dá a solução para o conflito central, deixando o desfecho pairando no ar, sem a concretude da explosão teatral. Mas eis que entra, no final do quarto quadro, o principal golpe cênico desferido pelo autor.

Ao fim deste quarto quadro, Plínio Marcos retira todas as personagens de cena, ficando, eis o gancho, a cargo de Osvaldo, o brutamontes assexuado, a tarefa de trocar o lençol da cama, exigência da topetuda Leninha. Ao voltar para a cena vazia, com o lençol, Osvaldo destrói o quarto. Sem nenhuma motivação senão arrancar o último grito dramático. Plínio Marcos parece correr um sério risco. O novo impulso dramático se dá por conta da narrativa, através da rubrica, não do drama, através do diálogo. Mais que um risco, uma ousadia. Sem dúvida, diante do quarto todo quebrado, as atitudes de Giro irão às últimas consequências, e assim Plínio Marcos resolve o impasse estrutural de ter solucionado, ainda no quarto quadro, a quebra do abajur. Com o gesto desleal de Osvaldo, reacende, agora na fogueira do inferno, o conflito de poderes.

Mas antes de partirmos para o quinto e último quadro, cabe fazer uma observação sobre o embate entre as três mulheres, deixadas a sós em cena, após a solução do conflito da quebra do abajur, e a consequente retirada de Giro e Osvaldo. A pressão de Célia contra Giro eleva o nervosismo de Dilma e tira Leninha da neutralidade. Célia se torna uma ameaça incontornável. É a última esperança de reverterem a situação. Se não houver uma saída, a desgraça estará plantada. Vemo-nos, neste embate final entre as três mulheres, numa reunião de sindicato, em disputa acalorada entre os que defendem a greve contra o patrão explorador e os que são contra a greve pelo medo de perder o emprego. Eis o fabuloso alcance social do texto, refletindo a consciência social do autor. É trazendo este caldeirão revolucionário, a pretexto de os diálogos de Plínio Marcos proferirem muita gíria e palavrão, além de insinuação sexual, que Abajur Lilás viria a ter tantas dificuldades com a censura em plena vigência do AI-5. E a cena final, acima já mencionada, descrita em rubrica, é estupidamente icônica, quando o capanga Osvaldo, ele próprio, destrói o quarto, semeando sua possibilidade de praticar, no futuro, a maldade que lhe é inerente. Enfim, a atitude de Osvaldo destrói toda possibilidade de libertação. É a mão pesada e injusta do dominador.

O quinto quadro se inicia, como é exigido, em alta voltagem dramática. As três mulheres estão agora amarradas, sentadas cada uma em sua cadeira, diante delas um Giro disposto a arrancar a todo custo a confissão ou a delação. Eis que Plínio Marcos, trazendo os terríveis ecos da ditadura militar, em pleno ano de chumbo de 1969, nos coloca diante dos horrores da tortura. A primeira vítima é Dilma. Mas, para exaspero de Giro, Dilma se mantém inquebrantável. A questão agora não é só saber quem quebrou o abajur, e, sim, o quarto. Submetida à tortura do cigarro e do alicate, Dilma desmaia. Trazendo mais uma vez para a cena uma de suas marcas literárias, atribuindo sentimentos próprios a outrem como estratégia de manipulação e conquista de poder, Plínio Marcos coloca a sombra de Osvaldo por trás de toda esta infame tragédia. À frente do horror está sempre Giro, vestindo a casaca surrada do injustiçado, quando repete suas icônicas e mascaradas lamentações, colocando-se no altar da bondade. Diz. “Dei amizade. Recebi coices”. Evidente, na sua covardia, vira-se para a mais vulnerável, Dilma. Culpa-a, não por ter quebrado o abajur, mas por não ter delatado a culpada. Deu amizade, recebeu coice, esta é a camada subjetiva que justificará seu horrendo ato. Precisa, antes de tudo, da cagueta. Esta é a motivação destrutiva do código de honra, atitude de nobreza que não pode existir em seus domínios.

Mas o incansável Plínio Marcos continua a manipular os polos de tensão. Rearranja o conflito, voltando-se agora para Leninha, o elo frágil, recém-chegada ao cafofo, portanto, sem ter tido o tempo de construir uma relação de lealdade, diga-se, de classe, com as outras duas companheiras de quarto. Ao torturar primeiro Dilma, Plínio Marcos antecipa em Leninha a expectativa da dor, fragilizando-a. O próximo passo é apresentar a Leninha o instrumento fatal de tortura, o famigerado pau de arara. Diante deste instrumento, Leninha esmorece e delata, quebrando assim o rigoroso código de honra do submundo. Está, desta feita, cenicamente arranjado o encaminhamento para o desfecho. A revolucionária está delatada.

Interessante atentar para o discurso farisaico de Giro, um empresário do sexo que se coloca paternalmente diante de suas protegidas que ele explora, subtraindo-lhes despudoradamente a autoestima. Mesmo as que reagem não têm certeza da vilania do discurso que ouvem. Há na retórica do algoz uma sombra escura que não deixa ver a verdadeira face do engodo. A inexistência do sujeito para quem Giro direciona seu discurso dá a ele a santidade do protetor injustiçado. Esta cruel dimensão no significado das relações humanas é o que de melhor Plínio Marcos sabe manusear com sua habilidade de autor. Ele revela o ser humano não para o outro, mas para si mesmo. Ali, no cafofo, cada uma das mulheres tem consciência de sua miserável condição. No entanto, ao ganharem esta consciência tornam-se vulneráveis.

Neste diapasão, a crueldade do desfecho da obra não se atém à ação. Vai além, no discurso final de Giro, antes de ele sair de cena. É como se ele trancasse, com uma grossa parede de concreto, qualquer possibilidade de redenção. O não existir é que possibilita a razão desumana de ser. Não há alma. Há só o corpo. E no corpo, o lucro.

Em suma. Em que pese a exuberância de Dois Perdidos numa Noite Suja, é em Abajur Lilás que Plínio Marcos encontra sua mais verdadeira dramaturgia, e isto se deve a ter ele se conectado de forma ampla e consciente com o mundo que o cercava. Talvez seja nesta obra que Plínio Marcos tenha-se mostrado por completo, o Plínio das docas de Santos e o Plínio dos porões da ditadura. Deste encontro de realidades formou-se esta bela obra prima. A suntuosa identificação do artista com o seu tempo.

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Perdidos entre quatro paredes

Por Antônio Roberto Gerin 

Quando Plínio Marcos escreveu Dois Perdidos numa Noite Suja, em 1966, tinha ele já em seu currículo de dramaturgo uma trajetória de embates com a censura, com a qual teria que conviver ao longo dos 21 anos de produção literária sob o regime militar. Como ele mesmo confessa em uma de suas entrevistas, fora preso 18 vezes desde que estreara sua primeira peça, Barrela, em Santos, em 1º de novembro de 1959. Barrela subiria ao palco por apenas uma noite, já antecipadamente censurada. Navalha na Carne, 1967, talvez seja o símbolo maior desta luta. Vários artistas, entre eles Cacilda Becker, se envolveram na refrega para a liberação do texto, obrigando a que Tônia Carrero, que protagonizaria Neusa Suely, percorresse os gabinetes da ditadura para conseguir a permissão da montagem. E chegou a triste hora, ainda na década de sessenta, em que todos os textos de Plínio Marcos seriam engavetados pela censura. Diante de biografia tão conturbada, Plínio Marcos passou a se autodenominar o “autor maldito”. Era já conhecido, não só nos corredores da censura, também em algumas praças culturais, quando Dois Perdidos numa Noite Suja foi apresentado pela primeira vez, em 1966, no Bar Ponto de Encontro, na galeria Metrópole, em São Paulo, para uma pequena plateia, mas o suficiente para que o texto repercutisse além das fronteiras paulistas. Plínio se tornaria uma figura popular, e se estabelecia, com as obras escritas na década de sessenta, como um dos nossos grandes autores teatrais. Como diria Plínio Marcos, meio que jocosa meio que raivosamente, “sou o analfabeto mais premiado do país”. De fato, não gostava de estudar, cursara só o primário, mas ninguém melhor que ele soube levar para os palcos criaturas analfabetas, marginalizadas, seres invisíveis que transitaram com dignidade ímpar pela sua pungente dramaturgia. Por necessidade, vendia ele mesmo seus livros nas portas de bares e teatros. Não tinha vergonha de ser independente, amparado que estava pela profunda autoconsciência do papel de dramaturgo que ele representava. Plínio Marcos tinha fé no teatro como fonte primordial do verdadeiro grito.

Dois Perdidos numa Noite Suja traz a vida de Tonho e Paco, chapas que trabalham em um mercado onde carregam e descarregam caminhões, cujos ganhos, avulsos, mal dão para comer e dormir. Moram juntos num quarto de pensão barato, onde tudo é dividido, dores e esperanças. Neste recorte cotidiano, Plínio Marcos começa a estruturar seu texto, despejando em cortantes diálogos a história de dois párias que não enxergam saída para suas misérias. Ainda se apegam a algumas referências, no caso de Tonho, a de ter um par de sapatos novos para poder procurar emprego, e Paco, a de comprar uma flauta para substituir a que lhe fora roubada, fonte antiga de seus ganhos. Num posicionamento dramático eficiente, Plínio Marcos coloca-os no extremo do corredor, onde há apenas uma porta de saída. Porém, lacrada.

Plínio Marcos conhecia muito bem as microestruturas de poder que se estabeleciam cotidianamente entre essas pessoas invisíveis que vagavam pela noite em busca de um pouco de vida. Mesmo entre os miseráveis, sempre tem quem manda e quem obedece; quem subjuga e quem é subjugado; quem explora, e os que são explorados. É do humano, portanto, não tem nada a ver com outras estruturas de poder baseadas no dinheiro. E Plínio Marcos traz essas microestruturas na forma inteligente com que manipula os diálogos. A configuração das falas que predomina no texto, onde quem finaliza o jogo de disputa verbal é quem detém o poder, pode ser exemplificado na sequência Paco-Tonho-Paco. Já no segundo ato, quando Tonho, de posse do revólver, passa a dominar, a configuração se inverte e a última fala poderosa passa a ser de Tonho. Vamos a um exemplo na configuração Paco-Tonho-Paco. Paco começa. “Pensando morreu um burro”. “Que devia ser seu pai”. “Que dormia com sua mãe”. Neste instante, acuado pelo poder emanado do manejo verbal de Paco, levado ao extremo, quando não há mais ar para respirar, então Tonho recua, muda de assunto, geralmente buscando dentro de si um sentimento ruim, de derrota. Como se vê, o poder momentâneo está com quem dá o último golpe. Como no ringue. Quem está apanhando corre para as cordas. E Tonho o faz com certa frequência. Paco o domina, no gogó. Restará a Tonho o revólver para reverter o jogo.

A estrutura formal planejada por Plínio Marcos para dar fluxo à narrativa traz uma curiosidade. Foge um pouco ao padrão esquemático de atos e cenas. O texto se divide em dois atos, até aí tudo bem. Só que o primeiro ato, bem mais longo, é composto de cinco quadros, o que não ocorre com o segundo ato, que não apresenta qualquer tipo de divisão, transformando-se numa longa cena, sem interrupção de tempo e espaço. Como se Plínio Marcos reservasse uma sala especial para desenvolver a parte mais sensível e crucial do texto.

O primeiro quadro do ato um já começa com a apresentação do primeiro objeto que comporá o conflito da trama. A gaita. E começa em alto tom, com as agressões físicas do forte Tonho ao impertinente Paco que, a despeito dos reiterados pedidos de Tonho, não para de tocar a gaita. Mas o que importa é o segundo objeto, o mais importante deste texto teatral, que definirá a trama e impulsionará toda a tensão em direção a seu desfecho. É visível a preocupação de Plínio Marcos em construir, já nesta unidade, a armadilha dramática. O desenho da personalidade de Tonho é tosco e ao mesmo tempo nuclear. Está insatisfeito com seu emprego de chapa no mercado, é estudado e sonha com a possibilidade de arranjar um emprego melhor, em algum escritório. Só há um obstáculo. Ele não tem sapatos apresentáveis. Quem tem a posse de um par de sapatos bacana é Paco. E aqui Plínio Marcos habilmente introduz o limite no relacionamento entre os dois, o que permitirá a explosão vigorosa do conflito. Ao negar à relação entre os dois pobres coitados qualquer possibilidade de solidariedade, o autor dá fôlego à tragédia.

O segundo quadro começa novamente com a desavença em torno da gaita, mas logo abandonada para introduzir outra problemática, o Negrão, sujeito mal encarado, a quem Tonho teria tirado a vez no descarregamento de um caminhão. O assustador Negrão passou a cobrar de Tonho a metade do dinheiro recebido do dono do caminhão, e o recado, de forma manipulativa, é trazido por Paco. Neste quadro aparece a fala tão querida a Plínio Marcos, quando Paco diz. “Não força a paciência. Você nunca vai ser ninguém”. Plínio Marcos se sente impotente em inserir suas personagens no mundo visível, como cidadãos funcionais pertencentes a um meio capitalista produtivo. Sente-se tão impotente, vê tão pouca perspectiva, que prefere se ocupar do instante das personagens, daquilo que é essencial naquele momento, para não dar a elas a consciência de sua invisibilidade. E a frase acima, evidente, conduz a trama para o olho do conflito. Os sapatos de Paco são a única forma de Tonho ser alguém na vida. Esta é a saída, esta será sua obsessão, transformando o embate em torno dos sapatos no núcleo poderoso do texto. O conflito está entronizado. E finaliza o quadro com a ameaça do Negrão que, segundo palavras de Paco, quer “enrabar” Tonho. Com este verbo, Plínio Marcos introduz mais uma recorrente temática em sua dramaturgia. A posse do corpo do outro.

Neste terceiro quadro, Plínio Marcos estrutura a narrativa em torno de uma possível cafetinagem, nome usado nas quebradas do submundo, que é a exploração ou comércio carnal alheio. É ilegal, é crime. Relação de negócio comum no submundo de Plínio Marcos, onde toma formas desumanas, e onde a autoestima é totalmente destruída. As prostitutas surgem em seus textos como as principais vítimas desta mórbida relação, obrigadas que estão, em troca de proteção e afeto, a ceder parte do seu ganho a quem as protege. Esta relação surge como temática central em Navalha na Carne, com a subjugação humilhante de Neusa Suely a Vado, e chegará ao limite do absurdo em Abajur Lilás. E vai surgir ainda mais escancarado em seu romance Querô, uma Reportagem Maldita, só que desta vez estruturada na relação de bandidagem, e que serve de motivação existencial para preparar a tragédia, que é quando Querô, na busca de si mesmo, se recusa a se submeter à humilhação da posse pelo outro.

Em Dois Perdidos numa Noite Suja, a relação de posse não está no centro do conflito, serve apenas para fechar mais uma das portas de possibilidade de ganho. Para evitar o achaque do Negrão, Tonho evita ir ao mercado. Sem trabalho, a pressão de tomar atitude para ser alguém na vida aumenta. Mas Paco, numa linguagem muito precisa, parece enterrar de vez os sonhos de Tonho de “ser alguém”. Diz, em relação aos achaques do Negrão. “Não vai ser mole. Se antes de você trabalhar pra homem, não dava, agora então é que não dá mesmo”. E vai além, referindo-se a Tonho. “Seu apelido lá no mercado agora é Boneca do Negrão”. E incita-o a se livrar da triste condição. “Acho que você devia brigar com o Negrão”. Só que Tonho sabe que esse embate sem fim terminará em morte. E então Paco sela o destino. “Mata ele”.

Uma das armadilhas emocionais montada por Paco é atribuir a Tonho sentimentos (inveja, medo) e atitudes (covardia) que não são dele. É nesta vileza que Paco constrói o monstro que se voltará contra ele. Esta é a dinâmica propulsora da tragédia. Na verdade, eis a clareza. Tonho não tem inveja dos sapatos de Paco, tem vergonha dos seus, rotos. E aqui Plínio Marcos introduz o terceiro objeto da trama, o revólver, que elevará a tensão e a expectativa para outro patamar, sublimando a derrota na tragédia.

No quarto quadro, aprofunda-se a consciência do nada ser, em que se vive em um mundo onde cada um é por si e não há ninguém a quem recorrer. Diante deste sentimento de estar no fundo do poço é que nasce a utilidade do revólver. “Um assalto?”, pergunta Paco. “É. Um assalto.”, responde Tonho. Interessante perceber que ao ser acuado por Paco, nasce em Tonho o dilema da maldade. E Tonho está consciente do seu passo. “Não gosto disso. Só vou entrar nessa porque não vejo outro jeito de me arrumar”. E logo se percebe. Mesmo entrando na onda do crime, há limites morais, como, por exemplo, o estupro, ação sugerida por Paco. Assim Tonho se expressa. “Eu nunca vou agarrar mulher à força”. O caráter de Tonho é, de certo modo, preservado, empurrado para o crime apenas em função da necessidade de ter um par de sapatos. Seu desejo é apenas encerrar este impasse em sua vida. Uma vez que não pode aparecer no mercado sob pena de ser achacado pelo Negrão, o que lhe resta? E assim está inoculada em Tonho a ideia inevitável do roubo.

Neste quinto quadro, para convencer de vez Tonho a entrar na onda do assalto, Paco usa de sua principal arma, a manipulação de fatos reais. Ele está doido para assaltar, só que disfarça, jogando, em mais uma de suas artimanhas, este desejo no colo de Tonho, fragilizado ao se encontrar em situação extrema. Paco espertamente fecha seu universo de possibilidades para uma única saída, o assalto. Assim diz para Tonho, quando este sugere que ele vá sozinho. “Mas você que está a perigo. O Negrão não te esquece”. E o fato relevante momentâneo na relação dos dois é que Paco, estrategicamente, se submete ao mando de Tonho para conseguir convencê-lo da empreitada. Aceita as condições de Tonho. Tonho, sentindo-se seguro, no comando, cai na armadilha do esperto Paco. E assim partem para a aventura, gerando o imbróglio dramático de que se ocupará o segundo ato.

O segundo ato começa em alta voltagem, quando as personagens retornam do assalto a um casal, no parque, e estão com a adrenalina a toda. E é este cenário emocional que faz com que as personagens, antes já pinceladas, agora se revelem em toda sua crueza. E função. Enquanto Paco eleva o tom, sentindo-se o maioral, tratando-se como “Paco Maluco, o Perigoso”, Tonho se rebela contra a tirania verbal e as atitudes imorais do companheiro. Já se percebe a transformação. É como se agora, ao assaltar, o interior ficasse definitivamente para trás, com seu romantismo e suas complacências. O Tonho está pronto para dar o salto definitivo. Mas ainda reage à ideia de ingressar na criminalidade. Diz. “Eu quero ser como todo mundo, ter um emprego de gente, trabalhar”. É seu último suspiro.

Até que se chegue ao desfecho, há o lance espetacular da dramaturgia de Plínio Marcos que, com certeza, respirava, àquela época, os fortes ventos do existencialismo, ao feitio de O Estrangeiro, de Albert Camus. Tonho arriscara seus princípios morais em um assalto tão somente para ter um par de sapatos decente para calçar e assim buscar um emprego condizente com seu nível de rapaz estudado. Só que ele descobre que os pés do rapaz de quem roubara os sapatos eram menores que os seus. Não havia atentado para esta possibilidade. Os sapatos roubados não lhe serviam! Volta assim à estaca zero. Confrontado pelas últimas provocações de Paco, levadas ao extremo, Tonho então pega o revólver e aponta. Vê então a valentia de Paco Maluco se esfumar na covardia do medo, possibilitando que Tonho, no comando total, se apodere da linguagem de Paco. Este é o belo efeito da transformação que Plínio Marcos nos oferece. É com esta linguagem, que se configura no título que Paco havia se atribuído, que Tonho dá vazão, de vez, à mudança. Agora ele é o “Tonho Maluco, o Perigoso”. Nada mais existencial.

Antes de finalizar, façamos aqui um pequeno parágrafo para um breve parêntesis. Vale observar que, apesar do poderio manipulativo de Paco, que o coloca em vantagem sobre Tonho, é ele, Paco, quem está preso emocionalmente ao outro. Não o contrário, como poderia parecer. E aqui reside, digamos, a burrice de Paco. Não tendo consciência desta prisão emocional, mas tentando intuitivamente se libertar dela, ele passa, detentor de um inteligência verbal irresistível, a tripudiar seu algoz, do qual, como ficará evidente, não consegue se libertar. Paco vê em Tonho um sonho humano para si próprio. Sem o perceber, querendo destruir sua imagem de sonho, Paco aciona a dialética da tragédia. Esta eficiente construção dramatúrgica de Plínio Marcos é que vai possibilitar a transformação pessoal de Tonho. E dar o desfecho pretendido pelo autor.

Como conclusão, vamos aqui construir uma alegoria. Supor que Tonho, chegado do interior, ainda impregnado de inocência e romantismo, seja uma bela escultura em madeira. Paco, um ser desprezível, sem pai nem origem, inteligente e descolado, perspicaz e manipulador, diante desta singela figura esculpida em madeira, se propõe a destruí-la. Para isso, transforma-se em cupim. E vorazmente vai comendo a madeira e aos poucos desfigurando a imagem. É neste ritmo dramático, em que a cada fala brutal de Paco um pedacinho da madeira se decompõe, que o texto vai se configurando como uma alegoria da transformação. Ao chegar ao fim, a bela imagem já não mais existe. Em seu lugar há uma outra, maldosamente esculpida por Paco. Mas, como um doutor Frankenstein, Paco também é consumido pela própria obra. Esta é a essência magnífica do texto de Plínio Marcos.

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A intensa dor humana

Por Antônio Roberto Gerin

Em relação a seu primeiro texto teatral, Barrela, 1958, Plínio Marcos escreveria: “Juro por essa luz que me ilumina que nunca havia me ocorrido a ideia de escrever uma peça”. Plínio Marcos diz que sequer conhecia a grande dramaturgia nacional, tampouco a universal. Portanto, jamais, até então, passara-lhe pela cabeça ser dramaturgo. No entanto, impulsionado por um fato real, lido em jornal, sobre os crimes cometidos por um rapaz que se vingava dos malandros que o haviam currado quando estivera na prisão, Plínio Marcos, de tal modo impressionado com o ocorrido, viu-se na necessidade urgente de escrever algo a respeito. Despejaria no papel, em forma de diálogos, tudo o que sentia, com a visceralidade de quem se colocava no lugar do seviciado. Mal sabia ele que, ao optar pela forma dramática de escrita, estaria gestando sua primeira obra prima teatral. Ao mostrar o texto para Patrícia Galvão, aquela mesma, Pagu, a intelectual que se tornara o símbolo do movimento modernista de 1922, e que à época, 1958, morava em Santos, o jovem Plínio Marcos receberia dela o elogio de que seus diálogos eram tão vigorosos quanto os de Nelson Rodrigues. Com o incentivo de Pagu, Barrela estrearia em 1º de novembro de 1959, no Centro Português de Santos, por uma noite apenas, uma vez que o texto já havia sido previamente censurado. Do inebriante sucesso da estreia lembra-se o autor. “Ainda trago comigo os sons dos aplausos daquela noite”. Sequer poderia imaginar o que o esperava na década seguinte, com suas obras primas que sacudiriam o cenário cultural, levando seus inovadores textos a serem esmagados, por anos a fio, pelos coturnos da ditadura militar. Como reação ao sucesso daquela noite de 1959, Plínio Marcos se viu em meio a um tiroteio de calúnias, sendo um dos rótulos preferidos chamá-lo de comunista. Vale lembrar que estes chavões autoritários pertenciam ao ano de 1959, bem antes de 1964 — ano em que se instaurou no Brasil a ditadura militar —, o que nos leva a supor que o ovo da serpente demoraria um bom tempo para ser chocado. Plínio Marcos ainda tentou levar Barrela para os palcos em 1968, mas o texto seria censurado após dois meses de ensaio. A personalidade independente de Plínio Marcos, protegida por sua irreverente persistência, fez com que ele não se dobrasse ao destino. E ao assim proceder, fez-se o artista genial.

Barrela compõe-se de uma única cena, sem interrupção de tempo e espaço. A trama se passa em uma cela de prisão, onde dormem seis presos, Tirica, Portuga, Bahia, Fumaça, Louco e Bereco, quando então Portuga, já madrugada, assustado por algum pesadelo, começa a gritar e acorda todo mundo. A partir deste fato corriqueiro, a trama vai se deixando levar por uma estrutura muito bem delineada por Plínio Marcos, afinal, ele sabia exatamente o que queria dizer e aonde chegar. Portanto, sustentado por uma evolução dramática verossímil, o encaminhamento feliz da trama segue firme rumo a seu desfecho, quando chega a hora de entrar na cela o novo preso, o Garoto, o principal alvo dramático do autor. Nada estava programado para acontecer naquela minúscula cela de prisão, até que a caneta frenética de Plínio Marcos se utilizasse de um mote poderosíssimo, a sexualidade, para dar vazão aos instintos mais brutais do ser humano. Plínio Marcos, com sua natural habilidade, conseguiu chegar aonde pretendia. Seria Barrela seu inesperado encontro com o teatro.

Vale lembrar, antes de entrarmos propriamente na análise do texto teatral, que quando Plínio Marcos declarara ter ele sentido incontida necessidade de escrever sobre o fato real ocorrido com o rapaz, e que tanto o impressionara, a compulsão pela escrita o levaria diretamente para o teatro, como única forma artística plausível para se chegar à catarse da dor. Ele precisava da força mimética do drama, posto que a realidade estava ali, urgindo para ser contada. Isto prova que todo conteúdo precisa da exata forma para se transformar em arte, e este é um dos mistérios que envolve o ofício do artista. Eis uma condição que a arte impõe e que merecia de especialistas profundas especulações. O processo artístico, ao ser espontâneo, nasce com a benção da beleza e da verdade.

E ainda complementando a análise acima, cabe lembrar que muitos anos depois Plínio Marcos retomaria a tragédia da curra, que é quando todos estupram um, ao escrever, talvez com o espírito já pacificado, e se valendo agora da narrativa, portanto, o romance, para escrever Querô, Uma Reportagem Maldita. Nesta premiada obra, ele revisita de forma mais demorada e explícita a dor da curra sofrida pelo rapaz anos atrás. É perceptível que a demanda interna do artista era outra e, portanto, outra seria a forma a ser utilizada.

A principal habilidade de Plínio Marcos, e que concorreu para o belo resultado final da obra, foi ter o autor paciência para introduzir a temática principal da narrativa, a barrela (gíria para curra). Antes, tomando mais de dois terços do texto, o autor trabalha um outro conflito, também de base sexual, e que logo se saberia, fora fruto também de uma curra. Este fato, acorrido no passado, prepara a entrada do grande e doloroso evento.

Portuga traz à tona o abuso sofrido por Tirica, na infância, no reformatório. Em torno da raivosa disputa entre Tirica e Portuga circulam Fumaça e Bahia, cujas funções na estrutura são, como se diz na gíria, botar lenha na fogueira. E fazendo o coro de uma voz só, mas totalmente eficiente, o Louco, que nos momentos de maior tensão, incendiando a libido, apenas repete “enraba, enraba!”. E do outro lado Bereco, o chefe, tentando frear a tensão. Ao estabelecer estas dinâmicas, Plínio Marcos não vai precisar recorrer a artimanhas de carpintaria dramática para solucionar o desfecho. Quando o garoto entrar na cela, a adrenalina e a testosterona estarão acumuladas no limite da agressividade, bastando apenas dar encaminhamento ao ato máximo. Esta é a estrutura eficiente adotada por Plínio Marcos em seu texto teatral.

A luta intestinal, por envolver vários contendores, é desenhada por uma estrutura de poder necessariamente frágil, e ao mesmo tempo ágil, posto que muda de intensidade e de polos o tempo todo, deixando pelo caminho o rastro previsível da tragédia. Plínio Marcos sabidamente tinha plena consciência dessas nuances nas disputas pela supremacia do mais forte e do mais esperto, explicitamente típicas nos meios da malandragem, e que o autor tão bem conhecia. Tanto que o texto se define pela seguinte fala da personagem Bahia, que se posiciona num dos lados da contenda. Assim diz Bahia a Tirica quando este jura Portuga de morte por ter colocado em cheque sua sexualidade: “Vê lá. Se não confirma, se dana. Não vai fazer nome de homem nunca mais”. Está esculpida nesta frase a marca da reviravolta na trama. Estava decidido. Para recuperar sua imagem de macho, Tirica teria que matar Portuga. E Plínio Marcos nos avisa desta sina pouco adiante, pela voz de ameaça de Tirica quando Portuga diz pretender no dia seguinte mudar de cela para se livrar das ameaças do outro. Diz Tirica, anunciando os fatos. “Ainda vai correr muita água debaixo da ponte, antes de chegar amanhã”.

Ao dizer a frase acima, é introduzido na cena teatral o objeto que corporificará a ameaça, projetada na realidade objetiva, não na introspecção da alma. A alma apenas é avisada do que vai acontecer, como se ela, com sua história carregada de misérias e dores, estivesse apenas à espera de ser vingada. A alma transfere para o corpo toda a responsabilidade do crime e esta atitude é uma marca na dramaturgia de Plínio Marcos. É o cabo da colher que Tirica, mordiscando sua vingança, vai afiando no cimento da cela, até transformá-lo em estilete. O crime se anuncia. “O ferro já está quase afiado”, diz Tirica a Portuga. Veja que Plínio Marcos desloca lentamente a cena para seu limite. Deixa tudo bem armado, mas pedindo um novo fôlego dramático, sem o qual o texto cairia em triste impasse. Mas Plínio Marcos, mesmo que intuitivamente, previa este impasse. Aliás, precisava dele. Então, como que um deus ex machina, sob o ranger do ferrolho, entra o Garoto.

Em suma. Plínio Marcos, moldado pelo sucesso inesperado, que o fez levar ao extremo a sua arte, angariando o respeito e a admiração de todos, cooptando em torno de si a classe artística na defesa de seus textos censurados, acabou desenvolvendo no homem artista uma certa autopercepção de genialidade e sentido de seu fazer artístico, inclusive se colocando numa posição de superioridade, escapulindo às vezes uma vaidade despropositada. Este era Plínio Marcos, vivendo como uma personagem dentro da sua arte. Confundia-se nela como inspiração de vida. Quando perguntado pelo amigo Nelson Rodrigues por que se achava o melhor autor de teatro do Brasil, o espirituoso dramaturgo santista não deixou por menos. Assim respondeu a Nelson Rodrigues, numa atitude de pretensa espontaneidade. “Por que eu copio os seus defeitos”. Sim, para construir a sua arte, Plínio Marcos não fez outra coisa senão copiar defeitos. Trazer à luz as imperfeições. Revelar o que permanecia oculto. Barrela seria só o começo da construção de sua genial dramaturgia.

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