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 A reinvenção do velho Oeste

Por Antônio Roberto Gerin

Antes de falarmos do clássico ERA UMA VEZ NO OESTE (175’), direção de Sergio Leone, EUA/Itália (1968), cabe discorrer um pouco sobre este intruso gênero cinematográfico chamado faroeste, termo originado da expressão inglesa far west, lá onde as longínquas terras inabitadas esperam para serem ocupadas por aventureiros. A conquista do oeste, na segunda metade do século XIX, é fruto da expansão demográfica e econômica norte-americana, coincidindo com o fim da Guerra da Secessão (1861-1865). Com a política de esvaziar o Sul no pós-guerra, ainda um caldeirão socioeconômico em perigosa ebulição, suas populações foram estimuladas pelo governo de Washington a tomarem o rumo do Oeste, com promessas de terra fácil e riqueza com muito trabalho. E, óbvio, para o Oeste não foram somente os trabalhadores em busca de um novo lar. Os órfãos da guerra, os que tomaram gosto pelo manuseio das armas, e ainda os ressentidos com a vitória dos nortistas levaram para o Oeste seus rancores e seus sonhos de riqueza e, com eles, a bandidagem. Em terras distantes a Lei era ainda frágil, portanto, exposta a corrupções. É desta paisagem de aventuras, achaques a proprietários de terras, roubos de gado, morte aos índios, os bares com suas prostitutas, a posse fácil de armas, a procura por ouro e riquezas outras, sem contar a expansão das linhas férreas que ligariam o Leste ao Oeste, enfim, é deste imbróglio histórico que surgiria o faroeste, gênero cinematográfico que ajudaria a afirmar o mito da formação da nação norte-americana. E que seria uma das glórias financeiras de Hollywood por várias décadas. Nos anos 1960, já sofrendo de esgotamento, o faroeste, ao aportar na Itália, terra do espaguete, irá encontrar uma dupla do barulho que dará nova roupagem ao gênero. É deste encontro venturoso entre Sergio Leone e Ennio Morricone que o faroeste spaghetti se espalha febrilmente pelo mundo. E não há como falar de Era uma vez no Oeste sem retroceder minimamente no tempo e conhecer a “trilogia dos dólares” criada por Sergio Leone, uma feliz sequência de filmes de faroeste reinventado nos belos Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965), e no festejado O Bom, o Mau e o Feio (1966), que iriam desembocar em 1968 no espaguete ao alho e óleo Era uma Vez no Oeste.

É bom que se diga que quando se fala de faroeste fala-se de ficção, não de realidade. Isto quer dizer que a abundante violência mostrada em inúmeros filmes de bangue-bangue pertence ao mundo criativo dos roteiristas e diretores. Óbvio que houve violência no velho Oeste. Alguns de seus grandes pistoleiros ganhariam fama e se tornariam lenda, fornecendo muito caldo dramático para a construção de ótimas narrativas. Nesta transição da realidade para a ficção podemos pensar, como exemplo, em Billy The Kid. De fato, no mundo real, Billy the Kid, morto aos 21 anos, alimentaria o imaginário norte-americano com suas bravatas e fugas espetaculares. Segundo um jornal de Santa Fé, Novo México, Billy The Kid teria matado 21 homens. Na verdade, afirmam os estudiosos, fora bem menos que isso. No entanto, o que interessa é a lenda. Sua fama percorreu o tempo, e hoje, século XXI, uma de suas duas fotos conhecidas, tirada em 1878, mostrando Billy The Kid jogando críquete, tem seu valor estimado em cinco milhões de dólares! Sem falar do ressentido sulista Jesse James, famoso pela rapidez no gatilho. E Wyatt Earp, que espantosamente sobreviveria a vários tiroteios, o mais famoso deles o do Curral O. K., que viria a inspirar muitas produções. Wyatt Earp morreria de velhice aos 90 anos, de causas naturais, em 1929. Como se vê, o faroeste é um gênero que sobrevive de lendas, e como lendas não acabam, o faroeste tem motivos para permanecer ainda por muito tempo nas telas dos cinemas. E na memória dos fãs.

A estrutura narrativa de Era uma Vez no Oeste se divide em duas motivações dramáticas distintas, que caminham juntas, mas sem se tocarem, a não ser, evidente, no grande final. São elas a ambição e a vingança. Frank — o insuperável Henry Fonda — é o capataz do dono da famosa ferrovia que atravessa o Oeste rumo ao Pacífico. É pago pelo Mr. Morton (Gabriele Ferzetti) para proteger os negócios da companhia dos ataques de pistoleiros. Só que a ambição de Frank o leva para além de suas funções, criando pontos de tensão dos quais o roteiro vai, generosamente, se alimentar. Do outro lado aparece Harmônica — sempre ele, Charles Bronson —, que desembarca na estação com o único objetivo de se vingar. Só que saberemos disto, e das razões, mais adiante. Enquanto não executa seu plano, Harmônica se envolve na trama com a função de proteger Jill McBain — a exuberante Cláudia Cardinale — do facínora Frank. Frank acabara de matar a família McBain de olho em suas terras, por onde passará a ferrovia rumo ao Oeste. Nas terras de McBain, no meio do deserto, há água em abundância, necessária para as caldeiras que movem as locomotivas. Só que Frank não contava com uma surpresa. O viúvo irlandês Brett McBain (Frank Wolff) havia se casado com Jill, em segredo, um mês antes, em New Orleans, o que faz dela também uma Mcbain, portanto, herdeira. E por sorte, e azar de Frank, ela chega ao local logo depois das execuções. Frank agora precisa tirá-la também do caminho. É na proteção de Harmônica a Jill que se dará finalmente o decisivo encontro entre os dois pistoleiros, Frank e Harmônica. Mas aí já será o final do filme.

O roteiro de Era uma Vez no Oeste é aparentemente frouxo, sem conexão imediata de causa e efeito, mas trama tão bem urdida, e de consistência inquestionável, que o que poderia parecer um perigoso defeito torna-se uma surpreendente qualidade. E no meio desta aparente desconexão entre as cenas entra o terceiro protagonista, cuja função no enredo poderíamos até questionar, mas se o tirarmos, o filme, é certo, perderá parte substancial da sua carne. A introdução desta personagem permitiu a Era uma Vez no Oeste desgarrar-se de rótulos e alçar-se como um dos grandes filmes do cinema mundial, pois possibilitou aos roteiristas Sergio Donati e Sergio Leone envolverem a trama em uma tessitura complexa e ambiciosa, alcançando a proposta de fazer um compêndio das realidades do velho Oeste. A partir do momento em que o pistoleiro Cheyenne, este é o nome do terceiro protagonista, se junta a Harmônica na defesa de Jill, temos fechada a composição dramática do roteiro, portanto, sua concepção bem-sucedida.

Mas há algo em Cheyenne que vai além dos clichês dos heróis do velho Oeste. Ele é arredio, desconfiado, quase um romântico. Às vezes, um menino abandonado pelo destino. Pode-se considerar Cheyenne a mais humana das personagens criadas por Sergio Leone até então. Aliás, uma das características inovadoras do diretor foi trazer para o faroeste tipos bem humanos, ao alcance da nossa realidade. E Cheyenne seria, sem dúvida, o ponto alto desta busca. E ele está resumido nesta fala, quando se despede de Jill McBain. “Jill, você me faz lembrar minha mãe. Ela era a maior vadia de Alameda e a melhor mulher que já viveu. Seja lá quem fosse meu pai, por uma hora ou por um mês, ele deve ter sido um homem feliz”. Se Sergio Leone perseguiu o objetivo de humanizar Tuco (Eli Wallach) em O bom, o Mau e o Feio com relativo sucesso, Cheyenne proporcionou, na atuação monumental de Jason Robards, o surgimento de sua mais perfeita possibilidade, a de elevar Era uma Vez no Oeste à sua condição trágica, onde, num suspiro épico, a violência não desumaniza a história.

E cabe um necessário parêntesis para a atuação da exuberante Cláudia Cardinale. Ela trouxe para a trama a consistência da mulher como fonte de vida e de esperança em meio a uma terra de homens em constantes conflitos. Prostituta de New Orleans, chega a SweetWater (Água Doce) trazendo na personagem Jill respingos de uma Blanche DuBois. Mas diferente desta famosa personagem de Tennessee Williams, Jill desfila no meio dos homens com a segurança e a decisão que se espera da mulher que se sabe pronta para os embates da vida. E para fechar de forma pungente seu vigoroso perfil, cobre-lhe de honras e emoções a trilha sonora que Ennio Morricone soberbamente lhe oferece.

Algumas peculiaridades estéticas de Sérgio Leone chamam a atenção. O ritmo é a primeira. Nada de acelerar a cena, nada da verborragia hollywoodiana. Em Era uma Vez no Oeste foram dez minutos para apresentar os créditos iniciais, portanto, dez minutos esperando o trem chegar à estação. E sem diálogos. Enquanto as imagens vão contando a história de uma mosca e das gotas d’água pingando em um chapéu. O feio e o grotesco são outras características suas, próximas neste sentido das estéticas de um Pier Paolo Pasolini e um Bernardo Bertolucci. Seres normais, que não tomam banho, usam roupas rotas, botas empoeiradas, cabelos desgrenhados, barbados e desdentados, uma miríade de tons e feições escalavradas pelo tempo e pelo sofrimento. E mais. Sergio Leone dá aulas de tipos de revólveres, adereço assumidamente central em sua dramaturgia cinematográfica. Sem falar dos longos silêncios das cavalgadas e dos duelos. Os closes exaustivos fundindo-se com as paisagens em plano aberto, e mais do que tudo, a trilha sonora, desenhada para sugerir cada atmosfera, para acolher cada protagonista, numa soberba arquitetura musical a serviço da construção das cenas. As trilhas sonoras de Ennio Morricone antecediam as câmeras. Inspiravam o diretor. Guiavam os atores. E em Era uma Vez no Oeste Sergio Leone levaria esta prática ao extremo.

Outra obsessão artística de Sergio Leone eram os duelos, quase sempre o clímax dos bons faroestes. Só que o diretor pensava cuidadosamente cada cena de duelo, na busca da originalidade. É só começarmos pelo filme Por um Punhado de Dólares, quando vemos o duelo final entre Joe (Clint Eastwood) e Ramón Rojo (Gian Maria Volonté), cuja dinâmica de tempo e espaço se resume em quem primeiro carregará a arma vazia depositada no chão, diante de cada contendor. Em Por uns Dólares a Mais, Sérgio Leone avança na ousadia, caracterizada no confronto entre os dois caçadores de recompensa, o Pistoleiro sem Nome (novamente Clint Eastwood) e o Coronel Douglas (Lee Van Cleef). Talvez a melhor cena de duelo em um faroeste, mas sem necessariamente ter sido um duelo. Ao final do filme, o duelo decisivo se dará em um círculo, onde se encontram três pistoleiros, um deles, no entanto, como mero espectador. Esta observação nos leva para o próximo filme, a coroação dos duelos na filmografia spaghetti de Sergio Leone, O Bom, o Mau e o Feio, com o icônico duelo no cemitério de Sad Hill, em seu círculo central, agora com os três homens participando diretamente do jogo. Mas só na aparência. Ao tirar as balas do revólver de Tuco, Sergio Leone tira-o do duelo e resolve o impasse, permitindo o confronto direto entre o Bom (Clint Eastwood) e o Mau (Lee Van Cleef). E finalmente Era uma Vez no Oeste. Neste o duelo toma um formato épico, da vingança sagrada, onde cabem quase nove minutos de espera, com direito a flashbacks (a famosa cena do arco), em que a maldade, no seu sentido moral, é destilada na sua razão mais desumana possível. Harmônica vence Frank. O bem vence o mal. Afinal, é dever dos faroestes nos dar o prêmio da redenção, mesmo que o vencedor seja tão fora da lei (anti-herói) quanto o perdedor.

Último parêntesis. Se fizermos uma análise mais cuidadosa da trajetória de roteirização e direção dos quatro filmes que compõem a fase faroeste de Sergio Leone, vamos perceber uma interpenetração criativa entre estes filmes em sua sequência temporal, tanto do ponto de vista estético quanto da técnica. E esta é a pergunta que se pode fazer. Sem os três filmes anteriores, teria Sérgio Leone alcançado a excelência artística e técnica de Era uma Vez no Oeste? Se admitirmos que todo artista, com raríssimas exceções, passa por um processo de conhecimento e amadurecimento do seu ofício, vamos admitir que os quatro filmes têm que ser pensados em conjunto, e que caberia um estudo para identificar as interconexões entre eles. O que podemos adiantar é que, nos parece, não são poucas.

E por fim cabe falar um pouco da suntuosa parceria dos dois colegas de sala de aula, portanto, de mesma idade, Sergio Leone e Ennio Morricone. Faz-nos lembrar de outra parceria famosa, entre Ingmar Bergman e seu diretor de fotografia Sven Nykvist. Se para Bergman foi a fotografia, para Sergio Leone foi a trilha sonora que deu o diapasão estético de suas obras. Há pouco o que se falar de Ennio Morricone justamente do tanto que há para se escrever dele. É sabido que Sergio Leone fazia questão de prolongar certas cenas apenas para dar tempo de a música chegar ao seu fim. Sem nos esquecermos da sofisticada trilha sonora de O Bom, o Mau e o Feio, vamos ficar apenas em um exemplo, nos referindo a uma das mais emocionantes cenas de violência na filmografia de Sergio Leone, justo em O Bom, o Mau e o Feio, quando o feio Tuco é torturado pelo mau Angel Eyes para que revele o lugar onde está enterrada a caixa com os duzentos mil dólares. Enquanto a longa cena de cinco minutos de cruel tortura vai acontecendo lá dentro, a tristíssima melodia The Story of a Soldier vai sendo tocada pela orquestra aqui fora, no pátio. E o close fatal. Violino e violonista choram.

Em suma. Era uma Vez no Oeste é a consagração de uma trajetória feita de inspirações, ousadias, parcerias, aprendizagem e tenacidade comercial, quando Sergio Leone consegue do estúdio de Hollywood dinheiro suficiente para executar um filme de grande alcance artístico e exigente acabamento técnico. É um presente para todos aqueles que adoram filmes de faroeste, e também para aqueles que gostam de grandes filmes, independente do gênero. Sergio Leone, em poucos anos, quis fazer com Era uma Vez no Oeste um resumo de sua obra ligada ao gênero faroeste. Com certeza foi além. Ofereceu-nos um filme que retrata uma época gestada por um processo doloroso de conquistas e glórias, intrigas e superações. Sergio Leone acertou em reproduzir realidades fotografadas nas suas mais vis situações, sem se preocupar com a rígida métrica dramática. Importava-lhe o voo criativo. A exuberância visual. A atmosfera teatral. Neste sentido, sua ousadia conspirou a seu favor. E assim nasceu Era uma vez…

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Por Antônio Roberto Gerin

Percebo alguns movimentos inquietos da minha gata Jade. E não é por causa do Ioda, com quem ela já estabeleceu uma amizade cotidiana, na linha irmã mais velha. Aceita-o com carinho e se irrita quando ele não quer brincar. Vai até o corredor e chama-o com miados cada vez mais altos, subindo o tom da irritação. Até Ioda aparecer e se apresentar para as brincadeiras, de forma atabalhoada, se jogando sobre o corpo da Jade. Travam batalhas. Lançam-se um contra o outro. Ioda coloca suas patas de tigre sobre Jade, esperando que ela se espiche no chão e o acolha. Às vezes, ficam longos e demorados minutos neste jogo de quem agarra quem. Quando Ioda percebe que vai ser dominado pela força da Jade, foge um pouco mais adiante, à espera. Estira-se no chão, os olhos atentos. Arma-se, pois sabe que em seguida será atacado. Ao longe, meu cãozinho Totó observa, curioso. Não se atreve a participar da brincadeira, mas não arreda pé. Há em Totó uma confusão emocional. Ele está diante de uma fêmea e de um macho. São, para ele, códigos diferentes, o que o deixa confuso e arredio. Mas a curiosidade fala mais alto. Fica ali, carrancudo, preso à soleira da porta, observando a cena.

Jade está inquieta. Vejo-a caminhar pela casa, sem pouso. A quarentena despertou nela o antigo vício da fuga, pressinto. Voltou a ter necessidade de espreitar essa possibilidade. As portas entreabertas voltaram a chamar-lhe a atenção. E vasculha as janelas com um olhar tristonho, mas presa à sua instintiva intuição de oportunidade. Está pronta para fugir a qualquer momento.

A privação forçada da liberdade de ir e vir acaba gerando em nós efeitos colaterais. Entendo que todos, nestes momentos de pandemia, estejamos passando por isso. Criamos uma necessidade urgente de sair. Que seja pra nada, desde que saiamos! E reconquistemos o direito sagrado de sair. Talvez pelo reflexo do longo isolamento, meu e de minha mãe, a liberdade nos parece ser um bem guardado em alguma gaveta especial. Trancada a sete chaves! O terrível sentimento de que alguém, invisível, se postou à nossa porta, impedindo-nos de atravessá-la. Até podemos sair, mas esta sombria invisibilidade nos acompanhará. E Jade, me ficou claro, está ela também presa à necessidade de se expandir no espaço. O sintoma mais visível é que passou a roubar as nossas máscaras. A se apoderar delas. A destruí-las. Como se esse fosse o desejo meu e de minha mãe, na espera do dia em que não mais precisaremos nos submeter a elas.

Ao nos ver colocar a máscara, toda vez que estamos para sair, Jade nos observa com inequívoca curiosidade. Jade vê. Jade pensa. Jade maquina. Pois encontrei minha máscara preferida, em tons azuis pontilhados de vermelho, rasgada sobre o sofá. Depois outra, agora da minha mãe, que surpreendeu Jade correndo com a máscara presa à boca pela alça, subindo pelo sofá, alcançando a janela aberta, e virando-se na direção do meu quarto. Só que ela parou a meio caminho, fora do meu alcance, deitada no peitoril da janela, observando a rua, enquanto vagarosamente ia destruindo a máscara! Com a irritação de quem não pode sair! Com raiva deste símbolo de aprisionamento facial! Depois de certo tempo, apontou à janela do meu quarto, seu corpo escondido atrás da cortina. Olha atenta, desanimada e triste. A máscara estava destruída, mas seu desejo de fuga não. Sua alma inquieta ilumina seus olhos tristes deitados sobre mim, em súplica. Depois ela desce e se aninha em meu travesseiro.

Certa noite, despertei assustada. Jade não estava a meu lado, como de costume. Só Ioda, acima da minha cabeça, aninhado na ponta do outro travesseiro. Eram três horas da madrugada. Cadê Jade? Levantei-me, tomada de pressentimento. Não a encontrava pela casa. Mas vi que a porta da biblioteca estava aberta, assim como a porta (da biblioteca) que dá para o banheiro. Em cima, a janela basculante do banheiro, que dá para o corredor externo do prédio, também aberta. Minha mãe, que sempre tem o cuidado de fechar a porta, havia esquecido. E Jade, evidente, esperando dias por esta oportunidade, com certeza se aproveitou. Acordei minha mãe, abrimos a porta da sala, as luzes do corredor se acenderam com a nossa presença. Bem ao longe, a meio caminho do corredor em direção ao fundo, onde existe um pequeno jardim com folhagens cultivadas pela moradora do último apartamento, pude ver uma das minhas máscaras coloridas jogada ao chão. Ah, Jade! Chamei por ela, logo ouvi seu miado choroso, pedinte, assustado. Escondia-se entre os vasos de flores. Me esperava, tomada de medo e ansiedade. Aninhou-se em meu colo e num ataque de desespero pôs-se a me beijar e a me pedir carinho. Aconchegou-se a meu lado, na cama. Eu podia perceber sua respiração ofegante, entrecortada por breves suspiros. Às vezes, ligeiros espasmos. Até adormecer profundamente.

Leia na sequência: A Gata Abusiva (I), A Gata Triste (II)

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O mundo entre quatro paredes

Por Antônio Roberto Gerin

Antes de falar da obra de Plínio Marcos, é preciso, necessariamente, inevitavelmente, falar do homem Plínio Marcos. Nasceu em Santos, em 1935, cidade portuária, portanto, um submundo a céu aberto, onde viveu, transitando freneticamente por muitas profissões, de soldado a biscateiro, de camelô a operário, até jogador de futebol, convivendo com malandros e estivadores. É desta rica passagem pela vida que Plínio Marcos tira o sumo terrível para compor sua bela e pungente dramaturgia. Foi surpreendido ainda jovem com o primeiro sucesso quando fazia parte de uma trupe circense — era o palhaço Frajola —, e principiava ainda nos segredos da dramaturgia. Barrela é seu primeiro texto, escrito em 1958, e encenado em Santos, no ano seguinte, com grande sucesso. Teve apenas uma apresentação, pois no dia seguinte o texto seria engavetado pela censura. Plínio Marcos era homem que conhecia todos os desvãos e dores do submundo real, povoado de marginais, ladrões, estelionatários e caloteiros, prostitutas e cafetões, bichas, como se dizia à época, carregando na palavra o nojo do preconceito, enfim, uma microestrutura social desnudada por ele, mas inspirada em uma estrutura maior chamada Brasil. Plínio Marcos dizia que escrevia textos curtos, e muito depressa, porque escrevia “com raiva, com muita raiva do estado em que se encontra o povo brasileiro, da omissão dos políticos diante dos problemas”. Antes de Navalha na Carne, tinha já escrito uma de suas mais exuberantes obras, Dois Perdidos numa Noite Suja, levado ao palco em 1966, na Galeria Metrópole, em São Paulo. Mas seria Navalha na Carne, cercada de grande expectativa por seus problemas com a censura, o texto que faria Plínio Marcos romper de vez o anonimato e se consagrar como um dos grandes autores teatrais do Brasil.

Pelo simples fato de trabalhar em seus textos com temáticas tão explosivas quanto a prostituição, a cafetinagem, a miséria, o grito de dor através de palavrões, a marginalidade contraposta a um sistema de exploração, enfim, ao trazer o submundo à luz do dia, Plínio Marcos se viu envolvido em duros embates com a censura da ditadura militar, época em que, num espaço de 21 anos, o dramaturgo construiria boa parte de sua literatura dramática. Neste contexto, Navalha na Carne traduz bem a luta da cultura contra a censura, retratada nas dificuldades de se liberar o texto — luta encampada à época por Cacilda Becker e pela própria Tônia Carrero — para a montagem, primeiro, paulista, depois, carioca. Seria no Rio de Janeiro, em 1967, com direção de Fauzi Arap, Tônia Carrero no papel de Neusa Suely, que o sucesso viria com toda força. Infelizmente, esta bela festa do teatro não duraria muito tempo. Rápido o espetáculo seria censurado e o texto Navalha na Carne só voltaria aos palcos 13 anos depois.

A dinâmica teatral de Navalha na Carne se apoia em três personagens que se encontram dentro de um quarto de pensão de quinta categoria, onde mora a prostituta Neusa Suely. Ela recebe diariamente a visita do seu cafetão, Vado, que vem buscar o dinheiro que ela todos os dias deposita sobre o criado mudo. Só que hoje o dinheiro não está onde deveria estar. Vado espera Neusa Suely chegar da zona para cobrar a sua parte. No entanto, ela jura ter colocado o dinheiro sobre o criado mudo, e para provar sua inocência, desconfia de Veludo, a “bicha” que cuida da faxina dos quartos da pensão. Ela lembra ter visto o menino do bar entrar no quarto dele. De onde teria Veludo conseguido dinheiro para pagar o sexo? Veludo é chamado à presença de Neusa Suely e Vado, e assim está formado o trio de personagens, em torno dos quais girará a tensão dramática que consiste em arrancar de Veludo a confissão do roubo.

A estrutura dramática se divide, ao longo do texto, em três confrontos básicos. O primeiro se dá entre Vado e Neusa Suely, quando aquele descobre que o dinheiro devido por ela não está sobre o criado mudo. O segundo confronto, mais complexo, posto envolver três polos, ocorre quando Veludo é chamado ao quarto sob a acusação de ter roubado o dinheiro. Ameaças e agressões físicas vão aumentando a tensão na busca da confissão. O achaque direto a Veludo, que se pressupunha seria feito pelo valentão Vado, acaba, numa lógica psicológica verossímil, sendo feito por Neusa Suely, a acusada inocente que reage ao tirar a navalha da bolsa para confrontar Veludo. Resolvido o conflito, mediante a confissão de Veludo, e com a saída deste, resta agora o terceiro e definitivo confronto entre Vado e Neusa Suely, num triste desnudamento do vazio existencial das personagens que têm no imediato do cotidiano sua única razão de existir. Neste confronto, mais verbal que físico, predomina, de um lado, a humilhação do macho à fêmea que se vê desprezada com a perda da beleza juvenil, e, do outro, a mulher Neusa Suely reivindicando afeto e sexo, portanto, o que ressurge da humilhação é a mulher fazendo valer sua condição de fêmea. Nada acontecerá fora das quatro paredes. Sonhos, projetos de vida, conquistas, nada existe. A vida se resume tão somente àquele quarto imundo de uma pensão imunda.

Vale acrescentar à explanação acima que os confrontos se estruturam a partir de um jogo dinâmico de forças que se revezam, criando um sistema interessante de domínio e sujeição. Em certos momentos, o sádico e machão Vado se vê subjugado pelo fracote Veludo e, em outros momentos, pela desamparada Neusa Suely. E estas dinâmicas criam maior ritmo e força sob a batuta de um diálogo enxuto e ágil, como se cada fala fosse um cuspe na cara.

Neusa Suely é a prostituta do dia a dia. Alimenta esperanças, aceita migalhas, acomoda-se a uma relação baseada na troca desleal de afeto por dinheiro, onde sentimento e respeito são moedas sem valor algum. Guiada pelo desalento, ela ainda tenta se manter em pé, cultivando vagas esperanças de que aquele homem grosseiro ainda lhe dê algum lugar ao sol. Nem que este lugar se resuma à cama! Enquanto não realiza seus pequenos desejos, Neusa Suely pertencerá a um mundo que não existe, porque ela não cabe na normalidade social de uma sociedade preconceituosa e excludente. Portanto, a única porta de saída ainda é Vado, que absolutamente não está disposto a abri-la, posto que, se abrir, sua masculinidade correrá sérios riscos. Em sua defesa de macho, a estupidez continua sendo sua máscara. E é com esta máscara que Neusa Suely se relaciona.

Veludo não nutre esperanças quanto a ser um indivíduo pleno de todos os seus direitos, um deles, o direito à felicidade. Ele apenas dá passos pequenos, cautelosos, para não cair no abismo, já que sua única realidade é satisfazer seus desejos mais imediatos, maconha e sexo. A agressão sem consequência é o símbolo maior de sua condição de ser invisível. E sua condição miserável é algo que vem do social, simbolizada na opressão ao excluído pelo preconceito. Não sendo forte, se recusa, com brio, a fazer o papel oposto. Com suas violências impuras, em Veludo a verdade é sacrílega, sem contudo ser pecadora.

Vado vai além da esquemática configuração de poder do macho sobre a fêmea. O poder existe, mas vacilante, desprovido de respaldo moral, o que nos faz perguntar que macho seria ele fora daquelas quatro paredes. Mas ali, no quarto imundo, ele atua para subjugar, não só psicológica, mas também fisicamente, com base na cultura machista de polo dominante e inquestionável. Na agressão física não se conversa, bate-se. É a destrutiva convicção do mais forte sobre o mais fraco, seja a mulher, o negro, o homossexual. Mas não é só o caso de bater em Neusa Suely pelo fato de ela ser mulher. Tampouco por ser Veludo um veado. A dramaturgia de Plínio Marcos está recheada de subjugações físicas, inclusive entre homens heterossexuais. Tonho sobre Paco, em Dois Perdidos numa Noite Suja, é um exemplo. Aqui, no entanto, trata-se de defender o espaço miserável onde o macho, em atuação covarde, se esconde.

Outra característica da dramaturgia de Plínio Marcos é a não existência de vida pregressa. Não existe o divã da classe média. Tampouco memória. A personagem se define e atua pelo que ela é hoje, pelo que ela precisa no imediato. O aqui e agora é que importa. E se impõem. É sempre a dinâmica corrosiva de relações em torno de alguma vantagem, no caso o dinheiro, ou em torno de alguma necessidade, no caso a fome, o sexo, o vício. E como pano de fundo destas migalhas de vida existe a busca desesperada por afeto, atenção e colo. Mas aqui se trata, o afeto, de algo abstrato, portanto, não imediato. A fome, tem-se que matá-la agora. A carência afetiva, bem, esta pode esperar, quem sabe seja satisfeita em algum lugar, ao longo do tempo, num beijo casual, num sexo comprado. A única coisa que não se permite é olhar para trás.

Se falta o sentido de história, sobra a consciência de sua condição humana inserida em um mundo que pouco dá e tudo pede. E esta consciência se reflete à perfeição quando Neusa Suely se pergunta. “Será que somos gente?”. Esta nos parece ser a condução existencial da dramaturgia de Plínio Marcos. Personagens que não se encontram em lugar algum, como se não existissem fora de si. Personagens que não se reconhecem na sociedade da qual, como cidadãos, deveriam fazer parte. Transitam, exilados, pela vida.

Em suma. O imediatismo do existir tem sua relevância cênica em conflitos que giram em torno de objetos com alguma função na vida pessoal da personagem, e que se expandirão na função social, fim último do conflito. Talvez o exemplo de objeto mais clássico na dramaturgia de Plínio Marcos sejam os sapatos de Paco, em Dois Perdidos numa Noite Suja. Em Navalha na Carne, a navalha é só um símbolo de poder passageiro, posto que o poder só existirá enquanto a navalha estiver na mão. É o dinheiro aqui o objeto cênico que serve para comprar o pouco de lucidez que se pode tirar daquela realidade sem sentido. No entanto, em momento algum, já está decidido, o dinheiro preencherá o vazio gerado pela condição humana indigente da personagem. O que vem confirmar que o teatro psicológico só cabe nas camadas sociais elevadas, onde conseguir o pão de cada dia não é uma ação urgente, já que está antecipadamente garantida, portanto, cabendo espaço para as dores da alma. No teatro social de Plínio Marcos só cabem as porradas do pão nosso de cada dia. É a navalha na carne.

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