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Natal em família, conflitos renovados

Por Antônio Roberto Gerin

Pergunta-se: o que nos vem à mente ao ler o título do filme PARENTE É SERPENTE, (100’), direção de Mário Monicelli, Itália (1992)? (Silêncio). Podem imaginar, porque é exatamente isto que estão pensando! Tudo começa bem. Abraços e risos, recordações, piadinhas e esquisitices de infância, defeitos e algumas qualidades, enfim, saudades, fotografias e a ceia de Natal. Reencontro anual na casa dos pais, felicidade completa. O peru assado é tão grande que dá pra todo mundo comer. E olha que não é pouca gente. Avô e avó, nas respectivas cabeceiras da enorme mesa (estamos falando de família italiana), os irmãos e as irmãs, netos e netas, tios e primos, e os chamados agregados, os cunhados chatos e as cunhadas enxeridas, genros e noras. Família completa, pois. Todos felizes. Felizes… será? Aí é que mora o perigo. Felicidade e harmonia duram pouco, principalmente num filme italiano, sobre família italiana. Eis a comédia!

A família é tão grande que, permita-nos, vamos nos abster de elencar as personagens e respectivos atores, aliás, ótimos.

Deixem-nos fazer mais uma pergunta. Pra que serve o Natal? Ora, para reencontrar os familiares e agregados (parentes) e colocarem em dia a conversa e, principalmente, as fofocas. E também para dar e ganhar presentes. E comer leitoa assada… Nada disso. Não? Não. O Natal em família serve para renovar os conflitos. Reabastecer as emoções. Principalmente as negativas. Desenterrar as velhas mágoas. Por isso, o conselho. Nunca fiquem mais do que três dias em uma festa de natal em família. Acima disso, é correr riscos. E é o que acontece nesta saborosa comédia. Os parentes ficaram tempo demais, até o ano novo. E deu no que deu.

Parente é Serpente é uma comédia que mostra com muito humor, muito ritmo, com diálogos precisos e personagens bem definidos o reencontro de irmãos que foram passar o Natal na casa dos pais. Tudo caminhava bem, tirando, lógico, as farpas, as descaracterizações, as lembranças maldosas, as piadinhas machistas para lá de picantes (descobrem-se até traições entre cunhados!), mas isto tudo faz parte de uma relação familiar saudável, portanto, nada de novo no front. A coisa começa a pegar fogo quando a matriarca comunica aos filhos e filhas que ela e o patriarca, sofrendo este já de escleroses variadas, e ambos entrados nos oitenta, iriam morar com um deles. E que a escolha com que filho morar caberia aos próprios filhos decidirem. Caro espectador, aqui a película do filme se parte ao meio. O que já era sombra vira uma tenebrosa nuvem negra.

Todos cometeram o mesmo erro. Ficaram juntos dias demais e deixaram-se aprisionar pela ilusão dos inquebrantáveis laços familiares. Estamos diante de uma das coisas mais comuns na história das famílias, sejam quais forem suas condições sócio-econômicas. Estamos falando do envelhecimento. E com o envelhecimento, a doença. Os filhos gostam muito de serem cuidados e amados, mas não de cuidar e amar. E aí?

A comédia serve para isso. Para que olhemos de banda o que tinha que ser olhado de frente. Pelo menos no título o filme disse a que veio. Cada fio de macarrão que a família italiana “mangia” (come) é uma serpente que engolem. Pois, o título do filme não usou de meias palavras nem ficou de banda. A sorte é que tudo vira comédia, e na comédia desgraça não é levada a sério. Feliz Natal!

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A engenhosidade da trama a serviço da pura diversão

Por Antônio Roberto Gerin

Às vezes, ao decidirmos assistir a um filme, a única coisa que procuramos é distração. Um não pensar em nada. Relaxar. Há filmes que cumprem bem esta saudável missão. Afinal, não somos só intelecto, só público de clássicos, pessoas que só consomem valores incorrigivelmente artísticos. Então? Se cabe um descanso, que filme escolher? Um faroeste? Ficção científica? Uma comédia romântica? Vai uma sugestão. VERSÕES DE UM CRIME (94’), direção de Courtney Hunt, EUA (2017), um daqueles filmes de tribunal, bem ao gosto da tradição americana. Ele narra o julgamento de um rapaz, assassino do seu próprio pai. Não é o que buscamos? Um roteiro engenhoso, que nos surpreenda e nos leve por caminhos inesperados? Podem preparar a pipoca. Eis o filme.

De fato, o roteiro é engenhoso. Ele cumpre a tarefa de nos levar por caminhos nunca dantes imaginados. Ele quebra nossas resistências. Ele até nos trapaceia, bem ao estilo de uma Agatha Christie. O que nos leva a supor que, com tal roteiro em mãos, o filme poderia ser mais do que uma diversão. Caberiam ambições narrativas, estética mais ousada, o que poderia transformá-lo num clássico do gênero. Opa! Já estamos querendo pensar. Analisar. Sem essa de posarmos de crítico. Será que somos incapazes de nos dar o prazer de simplesmente achar um motivo para comer pipoca?

O filme tem duração de apenas noventa e quatro minutos. Pouco. Caberiam, talvez, mais uns preciosos quinze minutos. A pressa em contar a história coloca o filme na fronteira entre o banal chique e o suspense cult. O roteiro, apesar de ardiloso, é insuficiente. Bem estruturado nas artimanhas, mas desleixado nos diálogos. As personagens, sem tempo para se manifestarem, tornam-se um tanto rasas. Sabemos que para qualquer tipo de arte que se sirva da narrativa, para que se torne robusta, ela precisa, antes de tudo, de personagens profundas, complexas e surpreendentes. Na linha do suspense jurídico, o embate entre os advogados de defesa e de acusação soaram previsíveis, o que dificultou a criação de eletrizantes pontos de tensão, atmosfera esta aconselhável para esse tipo de filme. A retórica é arma eficaz para retroalimentar emoções. Enfim, na preocupação de não revelar o desfecho, obrigaram as personagens a se conterem, a dizerem o mínimo. Do ponto de vista da estrutura narrativa, foi um tiro no pé.

Mas nem tudo está perdido. O que faltou de ousadia existencial no roteiro, em parte foi corrigido pela excelente edição. A mão hábil do editor deu consistência viva à trama, conduzindo-a de forma satisfatória. O uso recorrente do flashback foi eficaz. Até uma das cenas iniciais, que aparentemente poderia estar sobrando, acaba tendo um peso simbólico bem preciso. A passagem da motocicleta do advogado de defesa Ramsey (Keanu Reeves) desperta os movimentos traiçoeiros de uma serpente atravessando a rodovia. Uma pequena cena arrepiante que irradiará lá na frente o seu significado.

Vamos parar por aqui. Cala-te! Antes que esta ânsia vulgar de querer transformar um bom filme em clássico acabe gerando dúvidas no espectador. Gente, não há só clássicos no mundo da filmografia. A pipoca pode ter sempre o mesmo gosto, mas não é ela que dita as regras, que vai nos dizer o que é bom e o que é ruim. A pipoca sempre servirá para qualquer tipo de filme. Portanto, se tiver vontade de comer pipoca, eis uma oportunidade para se divertir. Ou, se quer apenas se divertir, não necessariamente precisará comer pipoca.

Um adendo. Quanto às versões do crime, servem apenas para ludibriar o espectador. Versão mesmo só tem uma. O cara… Psiu! Spoiler, não!

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A violenta busca de si mesmo

Por Antônio Roberto Gerin

Quando se fala de bons filmes que esbanjam, em suas entranhas, muita violência, pensa-se logo em Quentin Tarantino. Muito bom. Mas não existe só Tarantino. Há outras boas opções nas prateleiras. E uma delas é o icônico e violento CLUBE DA LUTA (139’), direção de David Fincher, Alemanha/EUA (1999). Mesmo para os que não gostam da violência aparentemente sem sentido – todas são! -, vale encarar Clube da Luta, filme inteligente, intrigante e assustador. A violência em Tarantino jorra de memoráveis diálogos. O filme de David Fincher, apesar de também fazer jorrar sangue, tem outra pegada. É o sangue que jorra da ação premeditada, que é a ação que precisa destruir para encontrar, debaixo dos escombros, o que se procura. É Jack, o protagonista, precisando dar porradas para descobrir quem realmente ele é. E aqui está a terrível encruzilhada para se entender a proposta psicológica do filme. É um filme realista, que se extrapola na violência, na rebeldia sem causa, que contesta a ditadura do consumo sem necessidade, mas também há um outro ponto de vista, um outro caminho que o espectador poderá trilhar, como forma de entender e aceitar o filme. É transportar os significados para a irrealidade, navegar por águas abstratas, ir além das imagens reais que ativam nossas percepções de que estamos diante de manifestações psíquicas perturbadas por embates entre “eus”, o existente e o imaginário, o “eu” construído, que nos aprisiona, e o “eu” a ser desconstruído, que nos libertará. A conquista da liberdade se dará pela destruição. Será da implosão dos prédios das empresas de cartão de crédito que ressurgirá o novo Jack! Ele quer implodir os prédios. Ele precisa. Nem que seja mentalmente. Ufa! Isso é o máximo! Mas, na real, ele está destruindo o quê? O “eu” que o perturba, a ponto de não deixá-lo dormir, ou é a desesperada tentativa de encontrar (sob os escombros) o outro “eu”, o “eu” liberto, desejado, apaziguador, de onde os conflitos de existências materiais já foram removidos? Depois de tudo dito, caberá ao espectador ver o que está na tela, diante de seus olhos, ou o que está por trás da película, nos bastidores mentais de Jack.

Jack (Edward Norton, soberbo no papel), o protagonista, que também faz as vezes do narrador, recurso eficiente utilizado pelo roteiro, é um jovem e bem sucedido executivo que trabalha em uma empresa de seguros. Em dado momento de sua vida, as coisas começam a não dar certo. Vê-se às voltas com intermináveis insônias. Jack não dorme há meses, e como ele mesmo diz, na voz do narrador, “com insônia, nada é real. Tudo é longe. É tudo cópia de cópia de cópia.” E ainda sobre a sua compulsão de consumo. “Eu folheava os catálogos e me perguntava. Que tipo de porcelana me define como pessoa?” Ao buscar ajuda médica para curar a insônia, o médico foi taxativo. “Você tem que relaxar.” Jack insiste. “Me dê alguma coisa, por favor!” E o médico corta o barato de Jack. “Não, você precisa de sono natural e saudável. Masque umas raízes de valerian e faça mais exercícios.” Mas Jack continua insistindo. “Qual é! Eu estou sofrendo…” E o médico retruca. “Quer ver sofrimento? Apareça na Igreja Metodista, às terças feiras. E veja os caras com câncer testicular.” E Jack vai à Igreja Metodista, na terça à noite.

E Jack fica viciado em grupos de auto-ajuda. “Alcoólicos anônimos”, “Positividade Positiva”, “Tuberculose, agora podemos combatê-la”, “Câncer de Pele”, “Renal crônico”, enfim, estas andanças por grupos noturnos trouxeram-lhe certa paz, e o sono de volta.

Até que, em um dos encontros das terças-feiras, na Igreja Metodistas, onde todos pensavam que ele também havia perdido os seus testículos, aparece quem arruinaria todos os seus planos de recuperação pessoal. Ela, Marla Singer (Helena Bonham Carter), no grupo de homens com câncer de testículos! Como narra Jack. “Ela era uma mentirosa!”. Marla frequentava os mesmos grupos que ele, o que lhe parecia um tipo de perseguição. Como ele, ela não tinha doença alguma. E por que Marla passou a incomodá-lo? Porque a mentira de Marla apenas refletia a sua mentira. Agora, com Marla no pedaço, tudo volta à estaca zero. As malditas insônias! E Jack conclui, com humor. “Se eu realmente tivesse um tumor, eu o chamaria de Marla.”

Um dos saudáveis méritos do filme é o uso inteligente do humor. Tão inteligente, que se faz necessário. Não conseguimos imaginar a narrativa sem o riso. Por sugestão de Jack, para se ver livre de Marla, ele divide com ela os grupos de doenças. Cada um frequentará apenas os próprios grupos. E o humor se escancara quando disputam quem vai ficar com o grupo do “Câncer no Intestino”. Fica assim demonstrado como o filme, dentro da sua proposta, tendo como trampolim esta realidade cruel e irônica, vai aos poucos alçando a narrativa para a esfera do irreal, em sua dimensão de dualidade. O conflito pessoal de Jack será teleguiado por imagens absurdas da busca de si mesmo através da violência. O humor apenas prepara o caminho desse absurdo. Feito o acordo da separação dos grupos, cabe agora a Jack e Marla se despedirem para sempre. Mas está faltando algo. Ah, sim! Trocam telefones. Está fechado o acordo da loucura. Não, ainda não. Falta Tyler Durden!

Tyler Durden (Brad Pitt) entra na narrativa justamente quando Jack tem seu primeiro impulso suicida. Imagina o avião em que viajava sofrendo um terrível acidente. É assim que Jack percebe Tyler sentado na poltrona a seu lado. Tyler será, a partir de agora, seu companheiro idealizado. Mas Jack nada percebe. Mesmo quando ele diz a Tyler, admirado. “Temos valises idênticas!” Ao chegar em casa, fica sabendo que seu apartamento pegara fogo, estranhamente, por vazamento de gás. Nada restou dos seus badulaques. Sem amigo, sem parentes, procura onde ficar. Tem dois números de telefone no bolso. De Marla Singer e de Tyler Durden. Vai morar com Tyler.

Nisto se passaram uns quarenta minutos de filme. Tudo bem. Restam ainda quase duas horas! E o espectador, a partir deste ponto, vai assistir ao filme sozinho. Vai embarcar junto com Jack e Tyler em uma realidade inconsciente, em planos paralelos, quando o conflito pessoal de Jack, aprisionado por regras de consumo que oferecem a ele uma ideia errada de si mesmo, vai ser canalizado para a destruição de si, que, evidente, contempla primeiro a destruição da civilização. Afinal, é esta civilização adoecida que simboliza o que há de pior em Jack. E a única esperança de Jack é acreditar, sem o saber, que Tyler viera para ajudá-lo nesta dura empreitada da busca pelo auto-conhecimento.

Tyler vai apresentar a Jack uma nova filosofia de vida. Como diz ele a Jack. “As coisas que você possui acabam possuindo você.” Eis a cereja filosófica! E para confirmar esta doce e benigna filosofia, que exala significados profundos e insondáveis, Tyler faz a Jack o pedido enigmático. Que Jack bata nele, sem dó, o mais forte que puder. Ele justifica. Não se pode morrer sem ter ao menos uma cicatriz. É a primeira luta. E tudo que é primeiro é inesquecível. Ao final, recompondo-se do sangue, Jack diz. “Podíamos fazer isso de novo um dia desses.”. Aqui é o momento em que o filme oferece ao espectador o seu cartão de visita. Vai finalmente começar.

No minuto 43, encontram o subsolo onde o Clube da Luta é criado, com regras definidas por Tyler e Jack. Tyler, evidente, é o líder, porque ele é o produto rebelde (libertador) dessa criação imaginária de Jack. Jack, enquanto não se libertar, ainda será um produto de consumo, uma estatística sob controle, e o controle desta estatística, sabemos, é o cartão de crédito. E a primeira regra, repetida à exaustão, a senha do abre-te sésamo da violência é: “você não fala a respeito!” Óbvio, não falarmos de nós mesmos é a lei que nos condena à escuridão existencial.

O Clube tem outras regras, que se ocultam em demandas psicológicas. O Clube não é sobre ganhar ou perder. Depois da luta, não há resultado. Esta é a essência, o prazer ligado à ideia de autodestruição. De morte. Da busca pelo limite. A dor física é secundária. Quando, após a luta, lavando-se, Jack puxa um dente que se solta de sua boca, e mostra-o a Tyler, este o consola. “Ei, até a Mona Lisa está caindo aos pedaços.” Não há limite, de fato. Ainda. Porque o limite será “ouvir o som da morte.”.

E, para finalizar esta digressão, chegamos ao objetivo do Clube. Que é chegar ao fundo do poço. Ao limite extremo, onde as barreiras se desfazem. O Clube da Luta é o grande presente que Jack e Tyler oferecem à humanidade. Só que quando o Clube sai dos porões e vai para o mundo visível, ele se transforma em “Projeto Destruição”. Afinal, atingir o fundo do poço não é para qualquer um. E quando ele, em alta velocidade, numa rodovia, se joga num espetacular acidente de carro precipício abaixo, o que lhe resta exclamar? Na voz de Tyler? “Acabamos de experimentar o limite da vida!” Eis o fundo do poço. “Só depois que perdermos tudo é que estaremos livres!” Na visão redentora de Tyler, Jack tinha que passar por este processo. Para Jack, espera-se que seja o processo da cura.

O filme é baseado em livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk, que chegou a afirmar gostar mais do filme do que do próprio livro. E diz ainda o quanto foi assediado por homens e mulheres para que ele informasse onde eles poderiam encontrar estes tais clubes de luta. A repercussão do filme e o fato de ter-se tornado o retrato de uma época, os anos 1990, nos revela que a violência é sempre um ícone desfigurado de sociedades em constantes transformações. Mas é, antes de tudo, o retrato de uma realidade que precisa de catarses para se reequilibrar, e a violência parece ser o caminho mais curto para se alcançar este equilíbrio. E não interessa qual o tipo de violência. Pode ser o soco, ou um simples olhar raivoso. Uma fake news. Esta foi a sacada de Chuck Palahniuk, cujos parâmetros o filme, uma arte puramente visual, leva ao extremo. Afinal, ver o sangue jorrando choca mais do que apenas imaginá-lo jorrar. Mas, por incrível que parece, Clube da Luta é pura imaginação. Vai muito além das imagens.

O filme sobrevive, e se torna aos poucos um clássico, em função de suas muitas qualidades técnicas. O roteiro é consistente porque bebe de uma ideia consistente. A direção não teve medo de ousar, as atuações mantiveram, com extrema eficiência, o ritmo sombrio do filme. O início, no momento dos créditos, com o jogo de imagens que lembram pesadelos, acompanhadas por uma sonoplastia de pegada asfixiante, nos introduz maravilhosamente na atmosfera do filme. Mas a cereja é a edição. Uma edição que conhece profundamente a essência do filme, eis seu mérito. Controla os movimentos, determina o ritmo, quebra sequências, inserindo flashbacks ou antecipando cenas no tempo, num vai e vem de bumerangue. Um filme linear que foge, graças à edição, à própria linearidade.

Em suma. Ainda falta quase meia hora de filme quando há o encontro definitivo da revelação. Tyler força Jack a dizer o que ele próprio queria ouvir. Jack queria ser diferente, mas não conseguiria isto sozinho, e Tyler passa a ser o espelho do que Jack sonha em ser. “Tudo o que quisera ser, este sou eu.”, diz Tyler. E continua. “Eu pareço e transo do jeito que você quer parecer e transar.” E segue. “Eu sou liberado de todas as maneiras que você não é.” “As pessoas fazem isso todos os dias. Falam consigo mesmas, vêem-se como gostariam de ser.” E conclui. “Você ainda se debate um pouco, é por isso que às vezes você é você.” Aos poucos, Jack está se transformando em Tyler Durden, o seu eu definitivo. E é disto, enfim, que trata o filme. Da busca desesperada da transformação pela descoberta de si. Numa sociedade do vale tudo, ditado pelas cifras do capitalismo, a selvageria é talvez a única forma de expressão de que dispomos para tentarmos mudar alguma coisa. Só que o embate, isto o filme deixa bem claro, não está com a humanidade, está em nós. E esta é a razão por que ficamos sentados no meio fio, falando sozinhos, esbravejando, apontando o dedo no ar. Estamos apenas querendo nos enxergar.

E assim, na meia hora final, a narrativa, em vôo de cruzeiro, vai lenta e espetacularmente aterrisando rumo a seu desfecho glorioso. A revelação estará depois da última frase do filme. Que é quando Jack não fala, mas já descobriu que agora ele se chama… Tyler Durden!

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