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Um drama poeticamente encantador

Por Antônio Roberto Gerin

O filme AURORA (91’), direção de Friedrich Wilhelm Murnau, produção norte-americana, foi lançado em 1927, em Nova Iorque, e mesmo que sua estreia não tenha tido um acolhimento retumbante, é considerado hoje um dos grandes filmes de todos os tempos. Alguns, mais entusiasmados, o colocam entre os dez melhores. E não é uma avaliação exagerada. Afinal, temos um filme que traz uma estética inspirada no expressionismo alemão, o que dá à dor humana uma dimensão raramente vista nos cinemas. Ademais, estamos falando de um filme mudo, lançado ali no limiar do surgimento do cinema sonoro, mas tão bem dirigido e tão bem armado do ponto de vista de suas expressões visuais, que basicamente prescinde das cartelas, que são aquelas imagens congeladas que trazem escritos diálogos ou pedaços de narrativas para melhor compreensão do público. Não, não precisamos das cartelas para entender o que se passa na tela. E esta obra prima se deve ao alemão F. W. Murnau (1888-1931), um cineasta pouco conhecido fora do circuito dos amantes do cinema, mas que, mesmo morrendo jovem, aos 42 anos, em um acidente de carro em Santa Bárbara, Califórnia, já havia construído uma robusta obra cinematográfica. Ponto para o magnata de Hollywood, William Fox, que convidara Murnau, em 1926, para vir trabalhar nos Estados Unidos. Murnau não só aceita o convite, como já no ano seguinte rodaria sua obra inconfundível — Aurora (Sunrise – Song of Two Humans).

O filme traz um roteiro simples na sua concepção dramática. Um marido (George O’Brien) matuto casado com uma esposa (Janet Gaynor) submissa, vivendo felizes no interior, com o filhinho recém-nascido. Até que surge, em férias, a mulher da cidade grande (Margaret Livingston) para se tornar amante do fazendeiro. E a história entra com toda força no seu eixo dramático quando a mulher da cidade grande sugere ao amante que ele assassine a esposa e venha morar com ela, na cidade. Após forte reação, ele aceita pôr em prática a ideia da amante. Convidaria a mulher para um passeio de barco e no meio do lago simularia um acidente. A personalidade fria da amante é realçada na cena em que ela mesma vai colher os seixos que servirão de álibi para o assassino. A partir daí o filme flui numa sequência de culpas, dores, alegrias e experiências afetivas que vão construindo uma nova relação entre o marido antecipadamente arrependido e a esposa generosa. Cabe aqui fazer uma menção especial à profunda sensibilidade poética com que Murnau mistura drama e humor, mostrando-nos que a vida é feita destas duas facetas, tão volúveis quanto incontroláveis, que se interpenetram e se sustentam, dando sentido ao nosso viver.

Há muitos detalhes técnicos e artísticos que se comentar do filme. Um deles são os experimentos de sobreposição de imagens, novidade para a época, além do pioneirismo na gravação dos sons direto na película. Há que mencionar também as cenas hilárias, como a da caça ao porco fujão, a sessão de fotografias do casal, e a magistral cena da dança. Há ainda os precisos e expressivos movimentos de face e corpo dos atores que, eficientemente, nos relatam o que sentem sem que precisem da fala. No entanto, preferimos cuidar apenas de um item visual que marca esteticamente o filme e o faz ainda mais grandioso. A fotografia.

O tom soturno em contraste com o branco alucinante, quase virginal, compõe com exatidão a atmosfera do trágico que o filme sugere o tempo todo. Trata-se de um filme em preto e branco, aparentemente com poucos recursos cromáticos, não fosse a criatividade técnica de Charles Rosher. Só para registrar algumas cenas e conduzir o espectador nessa magia, registramos o momento da cozinha, no início do filme, quando o marido está vestindo o casaco, pronto para sair para mais um encontro com a amante. A cortina, a toalha da mesa e o abajur luminosamente brancos contrastam com os tons sombrios do ambiente. Após a saída do marido, entra a mulher, e sua dor de esposa abandonada é acentuada quando ela se senta à mesa e as luzes brancas da cortina, da toalha e do abajur a acolhem e a envolvem na mesma luz. Pouco depois a vemos no lado de fora, junto à porta, dando milho às galinhas, e os únicos elementos brancos são justamente as galinhas. Como último exemplo, vemos mais adiante as duas colunas da igreja misturando seu branco intenso ao branco também intenso dos cavalos estacionados em frente a esta igreja. O elemento artístico da fotografia reside justamente na contenção do branco na forma do objeto, sem se diluir no sombrio. É como se a dor e a beleza tivessem vidas próprias, independentes.

Para finalizar, nada melhor do que transcrever os letreiros do início do filme, que conjugam todos os elementos dramáticos da narrativa em um sublime invólucro poético. Diz. “Esta canção do Homem e de sua Esposa é de nenhum lugar e de todos os lugares; é possível escutá-la em qualquer lugar e em qualquer hora, pois onde quer que o sol nasça e se ponha, seja no tumulto da cidade ou sob o céu aberto da fazenda, a vida é muito semelhante; às vezes amarga, às vezes doce”. Em suma. Seja onde estivermos, seremos o mesmo. Para onde formos, levaremos a nós mesmos, posto que estaremos condenados a sermos o ser humano que somos. Na tristeza e na alegria.

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Um negro na Casa Branca

Por Antônio Roberto Gerin

O MORDOMO DA CASA BRANCA (135’), direção de Lee Daniels, EUA (2013), é mais um dos tantos filmes que apontam suas câmeras para a luta pela igualdade de direitos dos negros, nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX. E aí implica não só eles poderem ocupar os mesmos lugares nos ônibus e ganharem os mesmos salários que os brancos, como também não precisar serem mortos impunemente quando olharem para uma mulher branca passando na rua. Essa trajetória de lutas é narrada de um ponto de vista peculiar, quando passamos a conhecer a história pessoal de um negro, desde o massacre da sua família, no sul dos Estados Unidos, até chegar à Washington, onde se torna mordomo da Casa Branca e lá serve – inclusive lustrando os sapatos – a vários presidentes, desde Dwight Eisenhower, passando por Kennedy e Nixon, até Ronald Reagan. Neste longo percurso de vida, ele acompanha a tumultuada história americana das décadas de sessenta e setenta, com ênfase na questão das lutas pela igualdade de direitos entre brancos e negros. O personagem real é negro, então é esta a história que interessa contar, a história dos negros, e esta é, sabiamente, a proposta do filme.

Talvez o grande achado tenha sido conduzir a narrativa por dentro do núcleo familiar dos Gaines, cujos conflitos faziam reverberar, de forma microscópica, o que estava acontecendo nos Estados Unidos. E o que estava acontecendo, óbvio, ecoava nas paredes dos salões da Casa Branca, onde Cecil Gaines (Forest Whitaker, de presença imponente) transitava e a tudo ouvia e presenciava. Este é Cecil, um negro trabalhando na Casa Branca, assumindo atitudes de branco, que se esforçava para ser invisível, que tinha um filho engajado nas lutas de rua pelos direitos dos negros, por quem era confrontado pelas suas atitudes passivas em relação à causa negra e que, no final, acaba se dobrando à realidade das ruas. Não havia outra saída para a sociedade americana branca senão aceitar que seus filhos dividissem salas de aulas e bancos de ônibus com os filhos negros.

Uma das cenas mais contundentes se passa com a discussão entre pai e filho à respeito do famoso ator Sidney Poitier, o primeiro ator negro a ganhar um Oscar. O pai não aceitou as críticas do filho, tomando para si as dores de Sidney Poitier, a ponto de expulsar o filho de casa por não gostar do ator. Sabemos que Sidney Poitier não foi um ativista, como queria o filho de Cecil, mas junto com outros artistas negros, como Harry Belafonte e Nina Simone, usou seu prestígio para angariar dinheiro para a causa negra.

É mais um drama histórico baseado na vida real, mas a direção firme de Lee Daniels consegue nos trazer inteiros para a ficção, poupando-nos daquele vezo autobiográfico que muita das vezes acaba se sobrepondo ao ficcional, deixando a sensação de que estamos assistindo a um documentário. E vale ressaltar a atuação surpreendente da atriz “improvisada” Oprah Winfrey, no papel de Glória, esposa de Cecil. Ela consegue expressar a dor da ausência do marido que passa a maior parte do tempo fazendo horas extras na Casa Branca, e ao mesmo tempo se mantém íntegra, sabendo que aquela situação seria passageira e que um dia o marido retornaria para casa, assim que terminasse o horário de expediente.

A título de conclusão, para quem gosta do tema, sempre intrigante, indicamos o documentário que concorreu ao Oscar 2017, Eu Não Sou Seu Negro, baseado em um livro inacabado do escritor James Baldwin, Remember This House, e que retrata, com um olhar muito próximo dos fatos históricos, a trajetória de três dos maiores ícones na luta pela igualdade dos negros, Medgar Evers, Malcom X e Martin Luther King. O documentário é narrado por Samuel L. Jackson. Quanto a Gaines, mesmo que passivamente, ele contribuiu para redimensionar o negro na sociedade americana, uma sociedade cujas dificuldades de se desfazer de seus preconceitos raciais é visível e preocupante, e é por isso que, sabemos, a luta pela igualdade racial não tem hora para acabar.

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Por Antônio Roberto Gerin

Nos idos tempos de adolescência, eu também batia minha bolinha nos finais de semana. Jogava provavelmente bem na linha, mas era um pouco melhor como goleiro. E me lembro de um desses dias em que foi marcado um escanteio para o time adversário. Eu, como um gentil goleiro, fui até a várzea pegar a bola. A meio caminho de volta ao gol, eu devolvi a bola para o adversário, que já estava a postos para cobrar o escanteio. E cobrou imediatamente, tirando proveito de que eu ainda não havia chegado ao gol. Gol desguarnecido, pimba, gol! Para o adversário.

Falo disso, depois de tantos anos, ainda com raiva. Consigo resgatar o estranho sentimento de ter sido trapaceado. Enfim, meu futebol de várzea me apresentara, desde cedo, a cartilha da desonestidade.

O que se viu durante uma partida de futebol, dias atrás, em São Paulo, foi o jogador Rodrigo Caio, defensor do São Paulo Futebol Clube, time de imensa torcida e história, abordar o juiz para desfazer um equívoco de arbitragem. O juiz acabara de punir com cartão amarelo o atacante adversário, Jô, por ter ele feito um falta dura no goleiro. Quem se chocara na verdade com o goleiro, do próprio time, fora o zagueiro Rodrigo Caio. Alertado por este, o juiz desfez a punição e aplaudiu a atitude honesta do zagueiro do São Paulo. Desfazia-se, naquele instante, momentaneamente, a máxima vigente em nossa cultura de que o importante, acima de tudo, é levar vantagem. Provável o juiz de futebol nunca tivesse presenciado, ao longo de sua carreira, honestidade parecida. Enganar outrem com a omissão da verdade é um dos piores tipos de corrupção, porque é uma corrupção miudinha, difícil de perceber, difícil de provar, mas que trafega livremente no cotidiano das relações humanas, e vai, perigosamente, pervertendo estas relações.

Vamos a alguns exemplos. Você está dirigindo numa rodovia e passa por uma blitz. Provável um daqueles carros de polícia escondido atrás de uma árvore frondosa. Imediatamente você começa a dar luz alta, para avisar os motoristas, vindo na direção contrária, da presença da polícia. E estes motoristas sortudos logo agradecem a gentileza, devolvendo, frenéticos, outra luz alta. Você vai à padaria todo dia comprar pão e leite e, provável, não pede a nota fiscal. Compra uma melancia e não pede a nota fiscal. E acha que não é obrigação sua pedir. E o vendedor acha que, se você não pediu, ele não tem a obrigação de emitir. Avança sinal vermelho na última hora, já que ainda não houve tempo de o carro, parado no cruzamento adjacente, se pôr em marcha. Ou simplesmente compra, por um bom preço, notas fiscais frias para não pagar imposto de renda. Furar filas, então, é uma das nossas trapaças mais refinadas! Estas e outras inúmeras pequenas transgressões – nem tão pequenas assim! – fazem parte invisível da vida de quem acha que levar vantagem, utilizando-se de meios ilícitos, é apenas um sinal de esperteza, de inteligência privilegiada.

Somos todos herdeiros absolutos da máxima veiculada por uma propaganda de cigarro, propaganda antiga e já desconhecida da maioria das pessoas, cujo ator era justamente um famoso jogador de futebol, chamado Gérson. Ele ensinava, através da telinha da televisão, várias vezes ao dia, de forma primorosa, que o importante é levar vantagem. Por isso, o meu adversário de adolescência, ao cobrar o escanteio, sem que eu ainda tivesse chegado ao gol, estava aplicando a Lei de Gérson, onde se pressupõe que, para todo esperto tem que existir um bobo. E foi como me senti naquele dia da várzea. Um bobo. É por isso que tenho raiva dessa história até hoje. O bom mesmo é ser o esperto!

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