Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Leivison Silva

Pedro Mico é uma peça em ato único, escrita em 1957 pelo jornalista, romancista, biógrafo e dramaturgo fluminense Antônio Callado (1917-1997). Juntamente com as peças “Uma Rede para Iemanjá”, “O Tesouro de Chica da Silva” e “A Revolta da Cachaça”, Pedro Mico compõe o chamado “teatro negro” do autor. A primeira montagem de Pedro Mico aconteceu em 1958, com direção de Paulo Francis (1930-1997) e cenografia de Oscar Niemeyer (1907-2012). Estrelada por Milton Moraes (1930-1993) e Nicette Bruno, essa primeira montagem da peça causou polêmica, a começar pelo fato de um ator branco fazer o papel do protagonista negro, prática conhecida como blackface, bastante comum no teatro estadunidense até a década de 1960. Outro ponto polêmico foi a cena final, em que se sugere que os moradores de todas as favelas do Rio de Janeiro desçam dos morros e tomem as casas dos bairros chiques da cidade, o que revoltou parte da plateia. Em 1985, Pedro Mico ganhou uma versão cinematográfica dirigida por Ipojuca Pontes, a qual foi protagonizada por Edson Arantes do Nascimento (Pelé) e Tereza Rachel (1934-2016).

A peça conta a história de Pedro, um malandro carioca, negro, analfabeto e habilidoso em escalar prédios, daí ter sido apelidado pelos jornalistas de “Pedro Mico”. Pedro está escondido, com sua nova namorada, a prostituta Aparecida, em seu barraco, no morro da Catacumba, morro no qual havia uma favela de mesmo nome, na década de 1950. Um dos critérios de Pedro, ao escolher uma mulher para se relacionar amorosamente, era que ela soubesse ler, para que lesse para ele, em voz alta, as páginas policiais dos jornais. Pedro estava sendo procurado por uma série de roubos. A vizinha de Pedro Mico, Melize, é uma adolescente apaixonada por ele e fica revoltada ao ver que Pedro está com Aparecida. O irmão de Melize, Zemélio, é admirador de Pedro Mico e o avisa que a polícia descobrira seu esconderijo e que estava vindo prendê-lo. Melize, com ciúmes e por ter sido preterida, havia denunciado Pedro aos policiais. Inspirado pela história que Aparecida lhe conta sobre Zumbi dos Palmares, Pedro surpreende a todos no final da peça.

Primeira peça brasileira a utilizar uma favela como cenário, Pedro Mico é um importante marco do teatro brasileiro, uma vez que colocou um personagem negro como protagonista da ação teatral. Até então, os papéis para atores e atrizes negros eram bastante escassos. A dramaturgia nacional, até então, a fim de não contrariar o público preconceituoso, que preferia ver atores brancos em cena, relegava os artistas negros a papéis secundários, figuração ou ao acompanhamento musical. Com um protagonista negro e a maioria dos personagens principais também negros, Pedro Mico é uma peça que possibilitou uma maior representatividade do negro no teatro brasileiro.

Callado, com sua carpintaria dramática, desenvolveu um texto aparentemente leve e simples, mas no qual denuncia algumas das mazelas mais graves e profundas da sociedade brasileira, como o estigma da escravidão, o racismo e a marginalização da população negra, tanto no passado quanto no presente.

Pedro Mico é uma peça ainda atual, mesmo após mais de sessenta anos de sua estreia, que merece ser lida, relida e encenada sempre, para manter viva a reflexão sobre a importância do principal tronco étnico formador da nossa sociedade, tronco esse grande responsável pela construção da nação brasileira e determinante em nossa identidade cultural.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Leivison Silva

Casa de Bonecas é uma peça em três atos, escrita em 1879 pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). Encenada pela primeira vez no Det Kongelige Teater, em Copenhague, na Dinamarca, Casa de Bonecas causou muita polêmica na época por questionar a hipocrisia reinante nas convenções sociais do casamento e o papel da mulher na sociedade. Além das inúmeras montagens teatrais, Casa de Bonecas ganhou várias versões cinematográficas e televisivas ao longo dos anos.

A peça conta a história de Nora, uma dedicada mãe de família e dona de casa, que é tratada pelo marido, Helmer, como uma criança grande. Helmer, no entanto, ignora o fato de que foi Nora quem proveu o sustento da família na época em que ele esteve doente. Nora havia feito um empréstimo, usando o nome de seu falecido pai, e agora pagava a dívida com pequenas economias, sem que seu marido soubesse. Tudo ia bem até que o advogado Krogstad, que trabalha no mesmo banco que Helmer, se vê prestes a perder seu emprego.

Krogstad pede a Nora que interfira a seu favor junto ao marido, ameaçando contar a Helmer sobre o empréstimo que ele lhe fizera, bem como sobre Nora ter falsificado a assinatura do pai nas promissórias, já que este havia morrido dias antes de ela contrair o empréstimo. Acuada, Nora pede a Helmer que conserve o emprego de Krogstad no banco, mas ele se recusa, dizendo que o emprego será dado à senhora Cristina Linde, uma antiga amiga de escola de Nora que havia ficado viúva e viera pedir ajuda a Helmer, justo no momento em que ele será nomeado diretor do banco.

Krogstad é demitido, e não conseguindo convencer Nora a influenciar o marido a nomeá-lo para um alto cargo no banco, ele escreve uma carta a Helmer revelando tudo o que Nora fizera. Após seu reencontro com Cristina, com quem tivera um relacionamento antes desta se casar, Krogstad decide voltar atrás em sua atitude contra Nora, mas Cristina o dissuade dessa ideia, sugerindo que vira muitas coisas naquela casa e que o melhor é Helmer saber de tudo.

Na noite do baile à fantasia, Helmer recebe uma carta que contava o que Nora tinha feito e, ressentido e preocupado em manter as aparências, acusa-a de não ter princípios e a proíbe de educar os filhos. Logo em seguida, ele recebe uma carta de Krogstad, que devolve as promissórias. Helmer se acalma e perdoa Nora, mas ela já não é mais a mesma. Nora compara o comportamento de Helmer com o de seu pai e, cansada de ser tratada como uma bonequinha de luxo, devolve-lhe a aliança e decide ir embora, deixando para trás os filhos e sua posição social.

Ibsen teve a sensibilidade de antecipar uma questão que pautaria aquele final do século XIX e todo o século XX, a emancipação da mulher. O dramaturgo norueguês pode ser considerado um pioneiro do feminismo, rompendo, com Casa de Bonecas, as barreiras sociológicas de seu tempo, uma época em que a mulher não tinha vida fora do casamento. Mesmo hoje, final da segunda década do século XXI, a mulher que opta por não se casar ainda é vista por muitos homens e, pasmem, por outras mulheres, como uma coitada, já que ela não foi suficientemente boa para ser escolhida por alguém. Isso, infelizmente, ainda existe, e em todas as classes sociais.

Ibsen foi bastante hábil em trabalhar a polaridade de sua heroína que de uma menininha indefesa passou a ter que ser uma leoa para ver os seus direitos reconhecidos. No início da peça, Nora é apresentada como uma mulher frágil, fútil, infantil até, que se submete docilmente às arbitrariedades e indulgências do marido. No final, somos brindados com um forte e lúcido discurso de empoderamento feminino, com Nora tomando as rédeas de sua vida em suas mãos e disposta a enfrentar tudo e todos pelo direito de pensar e agir de acordo com a sua vontade. Um tapa na cara da sociedade machista e opressora.

Embora muitas coisas tenham mudado na relação da sociedade com a mulher, nestes cento e quarenta anos, ainda é comum ver, nos dias de hoje, a mulher ganhando menos que o homem para exercer a mesma função. A mulher sendo discriminada na hora de ser promovida no trabalho. Não podendo ela vivenciar plenamente sua sexualidade, sob pena de ser rotulada com nomes os mais chulos possíveis. Isto sem falar nas inúmeras vítimas de feminicídio que, portas adentro de lares tradicionais e politicamente corretos, têm suas vozes caladas pelas mãos de homens que se esquecem da premissa mais básica da humanidade, a de que todos nós, homens e mulheres, somos iguais. Eis a questão. Ibsen pode estar bem distante no tempo, mas seu texto, na voz de Nora, ainda ecoa fortemente.

Casa de Bonecas é um clássico do teatro mundial que vale muito a pena ser lido e encenado em todos os tempos, inclusive, e talvez, principalmente, no tempo atual, em que, a despeito de todas as conquistas das últimas décadas, muitas mulheres, diferente de Nora, ainda não têm coragem de buscar o seu lugar ao sol e, por isso, se submetem a serem tratadas pelos homens como bonecas. Ou coisa bem pior.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin.

Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Vidas que secam ao sol

Por Leivison Silva

Vidas Secas (100’), Brasil (1963), é um clássico do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), um dos mais importantes cineastas brasileiros do século XX. Baseado no aclamado romance homônimo de Graciliano Ramos (1892-1953), Vidas Secas foi indicado à Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em 1964.

O filme conta a história de uma família de retirantes composta pelo pai, Fabiano (Átila Iório), a mãe, Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), os dois filhos do casal e a cachorra Baleia, que tanto no livro quanto no filme tem mais humanidade que os dois meninos, que nem nome têm. Após uma exaustiva caminhada pelo sertão, a família encontra uma fazenda abandonada, a qual passa a ser sua moradia temporária. Fabiano consegue o emprego de vaqueiro e a família passa a viver melhor. Algum tempo depois, Fabiano é preso injustamente pelo Soldado Amarelo (Orlando Macedo), que representa aqui a figura do Estado opressor. Com o fim da estação chuvosa, a família é obrigada a encarar a estrada novamente.

Vidas Secas retrata, sem eufemismos, a miséria do sertão nordestino, a humildade, a vulnerabilidade sócio-econômica e a religiosidade de seu povo, que luta para tentar sobreviver às intempéries da seca. Um povo esquecido pelo Estado e que, apesar de viver sob o jugo do coronelismo que assola a região, mantém a esperança de ter uma vida melhor. Sinhá Vitória, por exemplo, sonha em ter uma cama com colchão de couro.

Nelson optou pelo uso de planos longos, uma fotografia crua, em preto e branco, que enaltece a violência do sol em contraste com a vegetação da caatinga. E optou também por poucos diálogos, falados com impostação teatral. O Nordeste, além de servir como cenário da ação, é retratado como um microcosmo do Brasil, com todas as suas desigualdades, contradições e incoerências.

Vidas Secas é uma prova da vitalidade do cinema brasileiro, que superou os obstáculos surgidos ao longo dos anos, dentre eles a concorrência desleal com os filmes de Hollywood, e contribuiu para a construção de uma identidade nacional, genuinamente brasileira. Um filme que coloca o dedo em feridas ainda não cicatrizadas, mesmo após terem se passado quase sessenta anos desde seu lançamento. É o mesmo povo, abandonado à própria sorte, ainda à mercê da seca e dos desmandos políticos

Simplesmente indispensável para qualquer amante de cinema, caros leitores.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin.