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Por Leivison Silva

Deus lhe Pague é uma peça em três atos e um epílogo, escrita em 1932, pelo dramaturgo, professor e jornalista carioca Joracy Camargo (1898-1973). A peça foi encenada, pela primeira vez, no ano de sua publicação, no Teatro Boa Vista, em São Paulo, e tinha no elenco Procópio Ferreira (1898-1979), um dos grandes nomes do teatro brasileiro no século XX. Deus lhe Pague foi um sucesso editorial, e suas montagens, sucesso de crítica e de público, passando a fazer parte do repertório de várias companhias de teatro Brasil afora. Considerada pelos críticos a peça que deu início ao chamado “teatro social” no país, Deus lhe Pague foi também a primeira peça nacional a ser encenada fora do Brasil, ganhando, inclusive, uma adaptação para o cinema, em 1948, na Argentina. Em 1936, a Universidade de Baltimore, nos EUA, incluiu Deus lhe Pague no currículo dos estudantes de língua portuguesa.

A peça é protagonizada por Juca, um mendigo filósofo e capitalista, que enxerga a mendicância como uma profissão. Especializado em “transeuntes e portas de igreja”, ele instrui seu protegido, Barata, um novo mendigo, sobre os métodos mais eficazes de se mendigar e maximizar o lucro com as esmolas. Ao longo da peça, Juca vai contando a Barata sua trajetória e filosofando sobre sua maneira original e curiosa de enxergar a vida, e sobre o ato de dar e receber esmolas.

Juca era um operário idealista que vinha trabalhando na invenção de um tear que revolucionaria a linha de produção da fábrica onde trabalhava. Porém, o inescrupuloso diretor da fábrica fica sabendo do invento de Juca. O patrão vai até a casa do operário e ludibria Maria, esposa de Juca, com falsas promessas, para que ela lhe entregue os planos do marido. Quando Juca descobre que seus papéis com desenhos, anotações e cálculos foram surrupiados pelo patrão, tenta recuperá-los, mas o diretor da fábrica chama a polícia, que prende Juca. Maria, então, enlouquece de remorso, e termina seus dias num hospício.

Após sair da prisão, Juca passa a mendigar nas ruas, para cobrar da sociedade burguesa o que ela lhe deve. Impedido por essa mesma sociedade de gastar o dinheiro que ganha esmolando, Juca acaba por acumular uma grande fortuna. E mesmo já sendo um homem milionário, ele continua a mendigar, levando assim uma vida dupla. Com sua inteligência verbal exacerbada, Juca atrai a atenção de Nancy, uma moça que se apaixona por suas ideias, por seu modo original de ver a vida e por sua fortuna.

Nancy é cortejada por Péricles, um jovem bancário com “um futuro brilhante”, mas sem dinheiro no banco. Péricles decide então aplicar um golpe em Juca para conseguir cem contos de réis e assim conquistar o amor de Nancy. Juca entrega a quantia a Péricles, mas com sua sagacidade e poder de persuasão, consegue plantar a dúvida nos espíritos dos amantes, que desistem da fuga.

Em Deus lhe Pague, Joracy Camargo foi bastante feliz ao introduzir na dramaturgia as inquietações sociais trazidas pela incipiente industrialização brasileira, criando assim um clássico do nosso teatro, recheado de críticas sociais e reflexões pertinentes sobre o valor do dinheiro e o grande dilema que aflige a sociedade capitalista ocidental, o “ter” e o “ser”. Não é à toa que Monteiro Lobato (1882-1948) declarou à época que Joracy Camargo “é o maior filósofo do nosso teatro”.

Sabemos que antes de Deus lhe Pague houve outras obras basilares para a construção do nosso teatro, obras criadas pela genialidade de grandes mestres como Martins Pena (1815-1848), Machado de Assis (1839-1908), Artur de Azevedo (1855-1908) e Oswald de Andrade (1890-1954), só para citar alguns. E seria injusto, e até mesmo ignorância, negar a importância desses grandes nomes para a consolidação de uma dramaturgia legitimamente nacional, mas que Deus lhe Pague trouxe um novo fôlego ao teatro brasileiro, disso não há dúvida. A ação se desenrola através de diálogos filosóficos, inteligentes e de humor refinado, além do uso de flashbacks, recurso até então pouco usado por nossos dramaturgos. Com Deus lhe Pague, mais uma vez o teatro brasileiro propunha ao público refletir sobre sua realidade e questioná-la, além de lhe dar a oportunidade de se enxergar no palco.

Em suma, caros leitores, Deus lhe Pague é uma leitura necessária para quem quer conhecer um pedaço da história social do nosso país e entender o momento pelo qual estamos passando. Vale muito a pena!

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin. dramaturgo da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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Os amores que levam à solidão

Por Leivison Silva

ENTRE DOIS AMORES (160’), Estados Unidos (1985), é um clássico hollywoodiano dirigido por Sydney Pollack (1934-2008). Essa aclamada produção ganhou alguns dos principais prêmios do cinema mundial naquele ano de 1985, dentre eles o cobiçado Oscar de Melhor Filme. O roteiro de Entre Dois Amores é baseado no livro autobiográfico “Out of Africa”, no qual a escritora dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962), mais conhecida pelo seu famoso conto “A Festa de Babette”, relata o período em que morou numa fazenda no Quênia, convivendo com os nativos da região e com os neocolonizadores, britânicos em sua maioria. O enredo começa em 1913, quando Karen Dinesen (Meryl Streep, deslumbrante), uma mulher rica e solteira, pede a um amigo, o bon vivant Barão Bror Blixen (Klaus Maria Brandauer), que se case com ela. Trata-se de um casamento de conveniência entre dois amigos. Ela, para evitar a fama de solteirona, e ele, um nobre falido, para voltar a ter segurança financeira. Juntos, eles se mudam para a então África Oriental Britânica, atual Quênia, onde se casam. Para surpresa de Karen, ela rapidamente se descobre apaixonada por esse novo mundo, tão diferente de sua fria Dinamarca. Em meio aos arrogantes e preconceituosos neocolonizadores que dominam o Quênia, Karen e Bror conhecem o simpático e misterioso Denys Finch Hatton (Robert Redford), um caçador inglês com quem desenvolvem uma estreita amizade. Mas nem tudo são flores na nova vida da recém-intitulada baronesa.

Karen e Bror haviam se mudado para o Quênia para investirem em criação de gado. No entanto, Bror, sem que Karen soubesse, havia comprado uma fazenda cafeicultora próxima às Colinas de Ngong, a qual ele não tinha a menor intenção de ajudar a administrar. Em vez disso, ele esbanja o dinheiro de Karen em caçadas pela savana africana, ausentando-se por meses a fio, deixando a esposa com a responsabilidade de cuidar sozinha da problemática fazenda. Para piorar, o investimento no café demora a dar frutos. E como se isso não bastasse, Bror continua com suas aventuras extraconjugais, sem a menor preocupação de escondê-las. A triste consequência. Bror transmite sífilis para Karen, que é obrigada a retornar para a Dinamarca, para se tratar.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial, Karen retorna ao Quênia e divorcia-se de Bror. É quando então Denys passa a ter um papel mais importante em sua vida. O romance entre os dois é construído com calma, sem atropelos, até que os conflitos começam a emergir. Apesar do amor verdadeiro que surge entre os dois, Karen e Denys não conseguem compreender a natureza um do outro. Karen deseja formalizar sua relação com Denys, mas ele se mostra tão indomável quanto a África selvagem. Denys deseja apenas ser feliz com ela, um dia de cada vez, identificando-se dessa forma com o povo masai, que vive somente o presente, sem pensar no futuro.

Entre Dois Amores é narrado pela própria Karen, no caso, Meryl Streep, com um caprichado sotaque dinamarquês. Sua atuação, sensível e forte ao mesmo tempo, se sobressai diante das demais. Destaque também para Robert Redford, que construiu um charmoso Denys, e para o ator austríaco Klaus Maria Brandauer, com seu irreverente e sincero Barão Bror Blixen.

Temos aqui um filme de despedidas, onde a solidão e a espera dão a tônica da história. A certa altura, Karen diz: “É um sentimento estranho, a despedida. Há tanta inveja nisso. Os homens saem para serem testados, por coragem. E se nós somos testadas, é por paciência, por viver sem, por quão bem podemos suportar a solidão.”. E esperar pacientemente é a sina de Karen. Esperar por Bror, que se despede para suas caçadas e para se alistar na Primeira Guerra Mundial. Esperar por Denys, que se despede para vivenciar sua liberdade. O próprio título do filme em inglês, “Out of Africa”, alude à tristeza de Karen de saber que estará para sempre “fora da África”, a terra que aprendeu a amar, mas na qual não pôde mais permanecer, já que todo o seu investimento material e emocional mostraram-se fracassados.

É interessante ver como Karen, ao longo do filme, vai se transformando numa mulher forte, corajosa e nobre. Ao contrário da maioria dos neocolonizadores que habitam o Quênia, que só estão ali para explorar as riquezas locais, Karen sente profunda empatia pelos nativos. Ela canaliza seu amor maternal para o povo desse novo mundo, chegando mesmo a construir, em sua propriedade, uma escola para as crianças locais.

Um dos pontos altos de Entre Dois Amores é sua arrebatadora trilha sonora. Ao som das grandiosas músicas compostas pelo premiado compositor inglês John Barry (1933-2011), a história é contada sem pressa, com cenas contemplativas, nas quais a África é tratada como um personagem da trama. Na sequência mais bonita do filme, e uma das mais icônicas da história do cinema, vemos Karen e Denys sobrevoando a beleza selvagem da África no avião biplano de Denys. É de lavar a alma!

Toda a magia das deslumbrantes imagens da savana africana, captadas com requinte pela competente equipe de fotografia, contribui para fazer o contraponto entre a grandiosidade da natureza e a pequenez do ser humano, perdido em sua imensidão.

Entre Dois Amores é um filme belíssimo de se ver e de se ouvir. A direção segura de Sydney Pollack, aliada a uma história cativante, com diálogos poéticos e inteligentes, atuações memoráveis, uma fotografia de encher os olhos e perfeita reconstituição de época, fazem de Entre Dois Amores um épico de primeira grandeza que proporciona uma agradável experiência estética a todos aqueles que o assistem. E mais que isso! Um filme que, com poesia e elegância, nos faz refletir sobre a solidão inerente à natureza humana e sobre como é necessário percorrermos o árduo caminho para dentro de nós mesmos, para só então nos voltarmos para fora, se não mais lúcidos, ao menos mais fortalecidos para transpormos os obstáculos e acolhermos as surpresas que a vida irá nos oferecer.

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Por Leivison Silva

A Capital Federal é uma peça em três atos, subdividida em doze quadros. Essa “comédia-opereta de costumes brasileiros” foi escrita em 1897, pelo dramaturgo, poeta e jornalista maranhense Artur Azevedo (1855-1908). Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, Artur Azevedo é o responsável por sedimentar, com suas comédias de costumes, o caminho aberto por Martins Pena (1815-1848), na primeira metade do século XIX, visando à instituição de um teatro tipicamente brasileiro. A Capital Federal chegou a ganhar uma versão cinematográfica, em 1923, dirigida por Luiz de Barros (1893-1982), pioneiro do cinema nacional.

Eusébio, um fazendeiro do interior de Minas Gerais, vai ao Rio de Janeiro com sua família, em busca de Gouveia, que havia prometido se casar com Quinota, filha de Eusébio, quando esteve em São João do Sabará, passando-se por caixeiro viajante. No entanto, Gouveia fugiu para a capital federal sem cumprir a promessa. No Rio de Janeiro, Gouveia se tornou um jogador compulsivo.

A princípio, a família de Eusébio se hospeda no Grande Hotel da Capital Federal, depois se muda para uma casa. Os jecas ficam impressionados com o caos da cidade grande, suas tentações sexuais e com a supervalorização dada pela sociedade carioca à cultura francesa.

Eusébio acaba caindo nas garras de Lola, uma cortesã espanhola que mantinha um caso, por interesse, com Gouveia. Benvinda, a empregada da família de Eusébio, envolve-se com Figueiredo, um aposentado que tinha uma queda por mulatas e que acaba por transformar Benvinda numa famosa cocote.

A peça encerra-se com uma apoteose à vida rural. A família de Eusébio, incluindo Benvinda e Gouveia, desiludida com a vida na cidade grande, retorna para sua fazenda, em Minas Gerais. Em sua última fala, Eusébio expressa sua convicção de que a prosperidade e o progresso daquele Brasil da República Velha vinham, de fato, da lavoura, e não da vida frívola da cidade.

A Capital Federal é um retrato bem humorado da sociedade carioca do fin de siècle. Com graça e maestria, Artur Azevedo explora o contraste entre a vida rural e a vida urbana, através de personagens que representam tipos humanos facilmente encontrados na então capital federal do Brasil, o Rio de Janeiro, naqueles primeiros anos da República.

Os charmosos entrechos da peça são entremeados por músicas compostas por promissores talentos musicais da época, tais como Assis Pacheco, Luis Moreira e Nicolino Milano. Dessa forma, Artur de Azevedo, sintonizado com o gosto do público e com a efervescente produção de teatro musicado de seu tempo, propunha, com suas burletas e operetas, a interação de ritmos nacionais com gêneros importados, dando-nos uma amostra do variado panorama musical brasileiro naquela virada do século.

A Capital Federal é uma peça básica para a construção do humor nacional. Vale muitíssimo a pena lê-la!

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