Auto da Barca do Inferno

Por Leivison Silva

Auto da Barca do Inferno é um auto de moralidade, escrito em 1516, por Gil Vicente (1465-1536), o primeiro grande dramaturgo português. Apresentado pela primeira vez em 1517, o Auto da Barca do Inferno é um marco na dramaturgia em língua portuguesa. Escrito em versos e com forte viés cômico e crítica social afiada, o auto satiriza o juízo final católico, ainda tão temido por aquele mundo recém-saído da Idade Média.

A ação do Auto da Barca do Inferno acontece numa espécie de porto, onde estão ancoradas duas barcas, a do Céu, cujo comandante é o Anjo, e a do Inferno, capitaneada pelo Diabo e seu ajudante. Ao longo da narrativa, vão chegando as demais personagens. São elas: o Fidalgo com seu pajem, o Onzeneiro (equivalente a agiota atualmente), Joane (o Parvo), o Sapateiro, o Frade com sua namorada, Florença, a cafetina Brísida, o Judeu, o Corregedor, o Procurador, o Enforcado e quatro Cavaleiros. À medida que vão chegando ao porto, as personagens tentam embarcar na barca do Céu, mas são barradas pelo Anjo. Como não tiverem uma conduta reta e digna enquanto estavam vivos, agora têm que embarcar, à sua revelia, na barca do Inferno. O Diabo recebe a todos com muita ironia, sem ligar para os xingamentos e ofensas que os condenados lhe fazem. Somente os quatro Cavaleiros, que chegam ao final do auto, são admitidos pelo Anjo na barca do Céu, já que morreram nas Cruzadas contra os mouros (muçulmanos), no norte da África.

É interessante ver como Gil Vicente, através da figura irônica e divertida do Diabo, tece, com charme e bom humor, críticas implacáveis à sociedade portuguesa da época, colocando o dedo na ferida das instituições e denunciando a hipocrisia reinante e o apego exacerbado pelas coisas materiais. Exemplo disso é que cada condenado traz consigo um símbolo de sua vida na Terra, como o Fidalgo, que traz uma cadeira e o pajem, o Onzeneiro, que traz uma bolsa, e o Judeu, que traz um bode, um dos símbolos do Judaísmo. Outro personagem com essa função de denúncia/reflexão é Joane, o Parvo. Se intrometendo nas falas do Anjo e do Diabo, o Parvo faz comentários debochados sobre os recém-chegados, que tentam, em vão, argumentar que merecem embarcar na barca do Céu e não na do Inferno. A língua ferina do Parvo não poupa nem o Diabo, cutucando-o de vez em quando. A escolha dos tipos humanos também foi certeira, dando-nos um bom panorama daquela sociedade que à época se lançava ao mar rumo a terras desconhecidas.

Nesses dias escuros que vivemos, em que a Terra voltou a ser plana e as florestas são condenadas à fogueira, as críticas de Gil Vicente estão mais atuais do que nunca. É por essas e por outras razões que os clássicos, como o Auto da Barca do Inferno, não envelhecem nunca.

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Autor: Leivison Silva

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto. Cantor lírico formado no Curso Básico de Canto Erudito da Escola de Música de Brasília, com realização de trabalhos no teatro, no cinema e na música. Iniciado na arte da palhaçaria – seu palhaço chama-se Josephyno.

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