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Os monstros que habitam em nós

Por Antônio Roberto Gerin

Nem sempre é possível encontrar respostas sobre o que determinado filme quer nos dizer. Às vezes, precisamos ir além de simplesmente perguntar. É preciso espiar pela fechadura. Ver além das imagens. Investigar. Só que esta atitude exige de nós alguns esforços que nem sempre estamos dispostos a encarar. Afinal, por que temos que entender tudo que se passa diante dos nossos olhos? Por que não apenas assistir ao filme, sem precisar colocar nossos neurônios para trabalhar? E aí vem a pergunta que queremos fazer. É possível manter esta atitude de mero espectador passivo diante dos filmes de Ingmar Bergman? Não. Pelo contrário. Vamos ter que nos levantar da poltrona e nos colocar numa atitude investigativa. De inquietação. Esta é a proposta artística do diretor sueco. Uma exigência, quase. E é com este ânimo que devemos assistir a mais este filme de Bergman — que também assina o roteiro —, o quase inescrutável A HORA DO LOBO (83’), Suécia (1968). Se Bergman embaralha tudo, tira da ordem e camufla a realidade, ele o faz com o objetivo de criar abismos para que fiquemos tentados a mergulhar neles. Será que vale a pena esse mergulho? Entendemos que sim. O máximo que pode acontecer é continuarmos sem as respostas.

Johan Borg é um pintor introspectivo, com algum sucesso, que vai viver com a esposa, Alma, numa das ilhas de Frísias, na Suécia. O isolamento consentido, a penumbra que amedronta e a claridade que ofusca vão expondo a mente perturbada de Johan, colocando-o em posição de crise em relação à sua esposa. Johan, com sua mente errante, deixa Alma assustada, sem entender o que está acontecendo com o marido. Escolheram isolarem-se na ilha para serem felizes. No entanto, seres alucinatórios, feito convidados indesejáveis, vão ocupando seus lugares à mesa, povoando a mente de Johan na confusa mistura de realidades e delírios.

Vale a pena prestar atenção, ainda no começo do filme, por volta do décimo minuto, na cena em que Johan mostra à esposa seus desenhos mais secretos. O que nos é descrito por Johan — já que os desenhos não nos são mostrados — são conteúdos alucinatórios, criados por uma mente em visível estado de deterioração. E estas projeções serão confirmadas mais adiante, no formato de realidade, quando da visita de Johan e Alma ao castelo do Barão Von Merkens (Erland Josephson). Mas, antes de tudo, precisamos decidir uma coisa. E aqui reside a importância da cena acima destacada. A visita ao castelo realmente existiu? Há, de fato, um castelo na ilha? Habitado pelos fantasmagóricos Von Merkens? Esta, pois, é a questão básica do filme. Afinal, o que é realidade e o que não é realidade?

Uma das técnicas que Bergman usa para nos confundir é a não linearidade da narrativa. Ora, o que não é linear fragiliza o racional! Oferece espaços para que a dúvida tome conta da nossa percepção. Mas este, cremos, é exatamente o objetivo de Bergman. Colocar o espectador diante de sensações primitivas, frutos de vivências passadas que moldam nossa forma de sentir e reagir ao cotidiano. Não à toa, se aproximarmos a lupa, vamos perceber que há muito do Bergman menino neste filme. A impressão que nos fica é que Bergman escreveu o roteiro e concebeu o filme dentro de um armário, símbolo do terror do menino Bergman em seu reduto de castigos e punições paternas. Os espantalhos que terrificavam o menino Ingmar são agora reavivados, em sublimação artística, num dos seus filmes mais autobiográficos. É o Bergman artista acolhendo o menino Ingmar.

E o Bergman artista que quer nos confundir utiliza técnicas de filme de terror para conseguir os efeitos estéticos que deseja para expressar suas angústias pessoais.  Mas nada de querer assustar, muito menos aterrorizar. Apenas evidenciar. O que interessa é impactar o espectador para que ele se deixe aprofundar no universo psíquico conturbado de Johan. Os olhares são silenciosos, as vozes, caladas, e os passos cadenciados nos levam diretamente ao medo. Há representações de personagens levemente excessivas, portanto, misteriosamente teatrais. A maquiagem é fria, o sorriso é enigmático e a fotografia de Sven Nykvist, amedrontadora. E os movimentos de câmera, lentos e torturantes. Foi mais um passo nas aventuras artísticas de Bergman que, como ninguém, se dispõe a usar de qual seja a técnica e a estética para atingir seu objetivo maior.
Fazer do cinema arte.

E aqui retornamos ao ponto central da nossa discussão, isto é, se é mesmo possível compreender o que Bergman quer nos dizer em A Hora do Lobo. O foco da estrutura alucinatória de Johan, sabemos, gira em torno de sua antiga amante, Verônica Vogler, a quem sua alma perturbada está presa. É em torno deste núcleo alucinatório que gira a narrativa. Neste caso, a saída é definirmos várias sinopses que nos levem a entender, em parte, o filme. Depende de aceitarmos esta ou aquela pista psicológica. Vamos dizer que Verônica Vogler era uma prostituta por quem Johan se apaixonara doentiamente. E que viria a ser assassinada por motivos de ciúmes entre amantes. E vamos dizer também que os disparos, três, um deles fatal, tenham sido feitos por Johan, o que veio a causar sua desintegração psíquica. Outra sinopse. A morte do menino pode simbolizar o desaparecimento do menino Bergman. A própria Verônica Vogler pode surgir como a alegoria do anão dentro do armário, que tanto terrificara Bergman, como ele mesmo relata em sua biografia. Afinal, o armário era o ninho alucinatório dos seus castigos. Poderá o espectador, ele próprio, munido de suas percepções, fazer a sua sinopse. Pode ser um caminho tortuoso, mas que valerá a pena trilhar. Principalmente se tivermos em mente que, em se tratando de Bergman, nada é assim tão definitivo. O que nos dá a possibilidade de arriscar.

Em suma. Precisamos nos dar conta de que a razão nem sempre precisa ocupar todos os espaços do cotidiano. O que é inexplicável também é algo que pode ser apenas sentido, portanto, apreciado. Mas, lógico, para tudo existe uma tentativa de compreensão. Está em nós esta inquietação. Então, façamos o seguinte. Não vamos ficar passivos. Primeiro, vamos sentir, deixar nossas sensações nos dominarem. Depois, sim, vamos tentar elucidar os significados construídos por Bergman. Muitas são as pistas narrativas que A Hora do Lobo nos oferece, algumas até citadas acima. Basta nos dedicarmos ao esforço de procurá-las. Mas todos vão prometer uma coisa. Aceitar a ideia de que os monstros que habitam em nós são invisíveis. Por que, se visíveis, já teríamos tido a oportunidade de eliminá-los. E não precisaríamos passar a vida achando que tudo vai ser compreendido, as nossas dores e os nossos pesadelos. Engano. Continuaremos sempre a esperar pela hora do lobo, aquele exato momento entre a madrugada e o amanhecer, que é quando o lobo vai aparecer para nos livrar da nossa loucura. Só que o lobo não existe. Ele é apenas uma lenda. Que vem para nos atormentar. Sem que saibamos por quê.

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Bergman em novembro

Por Antônio Roberto Gerin

No mês de novembro, deste ano de 2018, a Cia de Teatro Assisto Porque Gosto fará uma homenagem a um dos maiores diretores da história do cinema. Estamos falando de Ernst Ingmar Bergman que estaria, neste ano, 2018, completando cem anos (1918-2007). Publicaremos em nosso blog, durante cada semana de novembro, algumas resenhas dos principais títulos da filmografia do diretor sueco. Entendemos, ademais, que o teatro foi a escola artística de Bergman que, sem a experiência e o amor tirados dos palcos, talvez não tivesse nos oferecido tantas e tantas cenas antológicas, como a cena entre a mãe, Charlotte (Ingrid Bergman) e suas duas filhas, Eva (Liv Ullmann) e Helena (Lena Nyman), em Sonata de Outono, um exemplo acabado do que é saber desenhar com tamanha perfeição uma cena tão sensível quanto cruel. Ou a cena terrível entre pai e filho, em Sarabanda. E podemos falar também de alguns filmes do diretor, cujos ingredientes, de natureza teatral, são determinantes para a evolução dramática da narrativa, citando, neste caso, como exemplo, o icônico No Limiar da Vida. Enfim, Ingmar Bergman nos prova mais uma vez que o artista tem que ser antes de tudo um artesão, caso pretenda levar sua arte aos porões da alma humana. E nisto, Bergman foi o mestre dos mestres.

Portanto, trazendo do teatro ferramentas que vão ajudá-lo na prospecção da realidade psíquica do homem, Bergman se caracteriza pela sua obsessão em lidar com as questões existenciais que atormentam a alma humana. O dilema do silêncio de Deus seja talvez a temática que mais ocupa a filmografia de Bergman, principalmente nos seus primeiros tempos, culminando, no início da década de 1960, com a chamada Trilogia do Silêncio, composta pelos filmes Através de um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio. Ora, se Deus existe, por que ele silencia? Há também outros tormentos caros a Bergman, os terrenos, aqueles que ocupam o nosso dia a dia, como a velhice e suas frustrações, a morte, o sexo e a sensualidade, a opressão e a repressão, a maternidade, a solidão, as relações familiares permeadas de dores e desesperos, enfim, podemos ir elencando inúmeras facetas que compõem este mosaico fenomenal formado por mais de cinquenta produções cinematográficas ao longo de cinco décadas dedicadas ao cinema, tendo, por trás, no papel de eminência parda, sempre, o teatro, o que fez de Bergman um artista completo.

Vamos nos abster de aprofundar ideias e opiniões sobre a obra de Ingmar Bergman, pois traremos estas discussões em treze resenhas dos filmes escolhidos abaixo. São eles Monika e o Desejo (1953), Uma Lição de Amor (1953), O Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), No Limiar da Vida (1958), A Fonte da Donzela (1960), Luz de Inverno (1963), Persona (1966), A Hora do Lobo (1968), A Paixão de Ana (1969), Gritos e Sussurros (1972), O Ovo da Serpente (1977), Face a Face (1976), Sonata de Outono (1978), Fany & Alexander (1982) e Saraband (2004).

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Amor em ritmo de comédia

Por Antônio Roberto Gerin

Na comédia, sabemos, as tramas urdidas pelo amor são tratadas como um jogo inocente e, ao mesmo tempo, inevitável. E para que este jogo prossiga, desconsideram-se, mesmo que momentaneamente, as emoções básicas que gravitam em torno do gesto de amar. Nada de ciúmes, de descontroles, de brigas irreconciliáveis. Nada de gritos e sussurros. A adesão ao riso exige o adiamento de dores e lágrimas. O que nos leva a crer que a comédia sempre estará, nestes casos, a um centímetro do trágico. E esta é a sua principal fonte de humor. Acharmos que o amor será destruído no próximo lance. Mas, habilmente, ele sobreviverá, provocando o próximo riso. Pois este será sempre o grande desafio do artista. A necessária habilidade para quem conduz a comédia. Tratar temas, a priori sérios, com humor. Mas humor que vai além do simples riso. Humor que nos coloca no limite do espanto. Pois, esta é a atitude artística do delicioso filme UMA LIÇÃO DE AMOR (100’), roteiro e direção de Ingmar Bergman, SUÉCIA (1953). Sim, caro espectador, Bergman fez algumas comédias. Leves, apesar do forte cheiro de obra prima. E Uma Lição de Amor é uma delas, onde o epicentro do riso é a tentativa de reconciliação do casal após a separação por traição. Ah, a traição, eis o prato preferido da comédia! A traição escancara qualquer relação, abre possibilidades cômicas, como uma forma de ludibriar o trágico. Caberá aos envolvidos optarem pelo que eles querem. Apenas se enganarem e, depois, se perdoarem, eis a comédia. Ou irem diretamente aos tabefes e, depois, às facas de cozinha, eis a tragédia.

O que se pergunta, então, é: como fazer uma comédia sobre o amor se, a princípio, sabemos que o amor é algo inerentemente sério quando tomado como uma atitude em direção ao outro? Como fazer humor de algo que está enraizado no nosso modo de expressar afeto e compromisso? Que não raras vezes vêm acompanhado de dores e ansiedades? Pois é. Como?

David Erneman (o sempre magnífico Gunnar Björnstrand) é um ginecologista com certa vulnerabilidade aos encantos femininos, o que torna difícil a tarefa de manter-se fiel no casamento. E, por tabela, manter o casamento. E o que era previsto, acontece. Marianne (Eva Dahlbeck), sua mulher, flagra o marido David em quarto de hotel, com a amante. O divórcio está declarado.

Só que o filme inicia sua trajetória narrativa mais adiante no tempo, estabelecendo o caminho inverso, quando os primeiros embates acontecem com a amante, a quem David pretende abandonar, com o objetivo de tentar a reconciliação com a ex-esposa. Eis como termina, comicamente, sua relação com a amante. Ela pergunta. “Então, realmente acabou?” E ele responde. “Sim. Obrigado por tudo.” E ela, ressentida, ainda retruca, mostrando a carnificina emocional do casamento. “Volte para sua esposa clemente, certamente ela está na estante esperando para você espaná-la”. E é o que David faz, seguindo a sugestão da agora ex-amante. Pega o trem, e vai atrás da mulher, na certeza de reconquistá-la. Certeza? Sim, absoluta. Não esqueça, caro espectador, que a principal obsessão da comédia é fugir ao trágico.

Só mais um pouquinho de carnificina, antes de prosseguirmos. Em trajeto à estação de trem que o levará a Copenhagen, David pergunta a seu motorista. “Sam, você nunca teve problemas com as mulheres?” E Sam, impassível, responde. “Não, desde que matei a minha noiva.”

A próxima sequência de cenas, aliás, uma longa sequência, que ocupa boa parte do filme, acontece na cabine do trem. Lá, David encontra uma mulher e um homem, já sentados. David senta-se ao lado da mulher, que está sendo cobiçada pelo homem sentado à frente dela. Parece boba esta configuração, mas é dela que Bergman tirará todo o humor para conduzir o filme a seu desfecho. Mas quem é a mulher? Ora, Marianne, a ex-esposa! Que está a caminho de Copenhagen para cair nos braços do amante, na verdade, seu ex-noivo, que ela, lá trás, deixara sozinho no altar, à sua espera, enquanto caía nos braços do amigo do noivo, ele, o próprio David, o irresistível. Eis que está preparado o alicerce cômico do filme. E todo alicerce cômico terá por base, lógico, a confusão de intenções.

A graça risível do filme está no fato de os dois se tratarem como estranhos diante do galanteador. E diante de si mesmos. Afinal, o distanciamento vai permitir que um lance farpas contra o outro sem que corram o risco de se ferirem. Como sabemos, eles não estão ali para se digladiarem, estão ali para desconsiderar as dores de cada um e cultivarem o esquecimento que os levará à atitude de perdão. Perdoar, eis o princípio do final feliz exigido por toda comédia. Ora, sem pequenos perdões diários não há casamento que se sustente. E perdoar uma traição é apenas uma atitude maior. Simples, não? A comédia é o melhor biombo para a dor.

Os diálogos entre David e Marianne, no embate da reconquista, supuram ressentimentos em forma de escárnio. A mágoa escarrada da boca treinada para o ataque, esta é a tática cômica de Bergman. Como quebrar estes ataques defensivos, este é o jogo incerto de David. À medida que o filme vai se encaminhando para o seu final, David tem a difícil tarefa de fazer com que as peças se encaixem. Sabe-se que está tudo armado (eis a comédia), resta saber se o que foi combinado será feito. As pernas ágeis da comédia talvez não sejam suficientemente rápidas para alcançarem o coração feminino atingido pela traição. É preciso dar um empurrãozinho. E é exatamente o que David faz. Dá o primeiro passo. Espera-se que Marianne faça o mesmo. Mas como ela fará isso? Sim, retornando ao drama. Na comédia, ama-se a esposa, mas não se dispensa a amante. Portanto, caro espectador, para sairmos da comédia e voltarmos para a realidade, vamos ter que dispensar a amante. Ou a esposa. Eis o verdadeiro drama.

Em suma, em se tratando de comédia, não podemos aprofundar nenhum tipo de análise. Não cabe. Portanto, vamos terminar em tom de riso. David dirá duas vezes, uma para a amante e, depois, outra vez, para a esposa. “A cama conjugal é a morte do amor.” É neste diapasão terrível que Bergman constrói sua deliciosa comédia. Podemos não concordar com David. Mas fica aí o alerta. Não oferecer, nunca, uma cama conjugal para a amante. Senão, vamos ter que traí-la com a nossa esposa. E foi exatamente isto que aconteceu com David. Que morreu pela boca. Eis a comédia!

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