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Por Geraldo Lima                                                  

Espera.

Ouve os estalidos do capim seco cedendo à pressão dos pés trôpegos e ansiosos. Logo ele estará aí, bem à sua frente, excitado, ofegante, — um homem qualquer, do qual ela nem ao menos sabe o nome.

Ébrio e surpreso, ele aceitou o seu convite. Arrastou-o pela mão até um determinado trecho e depois lhe pediu que esperasse um pouco, que viesse logo em seguida. Deixou-o lá, escorado num poste, talvez tentando calcular os riscos daquela aventura.  Mas, ofuscado pelo álcool, não obedeceria certamente aos apelos da razão.

Há tempos tem sido assim: eles vêm aturdidos, cegos, como um animal atraído pelo cheiro da comida. São, na maioria das vezes, presa muito fácil. A rua é o lugar onde, geralmente, os captura. Bêbados, às vezes, ou simplesmente sedentos de sexo e loucura. Alheios à morte e ao inferno. Anjos e diabos. Meninos abrindo a porta do corpo pela primeira vez. Velhos queimando suas últimas reservas de energia.

Ela sempre vai à frente, é sua única exigência: seu prazer se encontra apenas nessa espera, nesse ouvir o som de passos se aproximando como se fossem os do seu algoz. É o momento em que alcança um mínimo de prazer, de gozo. Corpo e alma, no entanto, se encontram no deserto: o sol que lhe arde por dentro se apaga logo que as mãos estranhas tocam-lhe o corpo.  Não há palavras nem troca de carícias: penetram-na como se esfaqueassem um corpo inerte.  Como se executassem um ritual de sacrifício. Como se estivessem se vingando da própria fraqueza.

Saciados, vão-se.

Não se lembra mais de quando tudo começou. Se sempre foi assim, desde menina, ou se mergulhou nesse abismo depois de adulta. Também já não se lembra de quantos homens deitaram sobre seu corpo, inundando-a com seu hálito azedo, sua baba, seu esperma, seus grunhidos de porco chafurdando na lama. Pode ser que saiba de tudo, do início e dos motivos que a têm levado a agir assim, mas não se lembrar talvez seja sua única defesa.

Espera.

Deitada de costas, assiste ao horizonte sanguíneo ir, aos poucos, empalidecendo.  O dia está morrendo e isso não a comove nem um pouco. Esse quadro que outros achariam belíssimo — nuvens cor de sangue tingindo o horizonte — não lhe diz nada. Há tempos fechou os olhos para o belo. Perdeu, na verdade, a noção básica de belo e feio. Há apenas o desejo que a cega e depois se evapora como se não tivesse existido. A imagem, porém, está lá, distante, pulsando, enquanto se desfaz meticulosamente. Não a quer, entretanto, pulsando na sua mente. Não quer ser capturada pela sua beleza. Quer, sim, é viver sem memória, pois esta é a única maneira de suportar o peso de continuar a existir depois de tudo, do vazio e do asco.

Há sempre, no entanto, essa expectativa de não sair viva do breu. Aguarda o dia em que um desses homens, tomado de loucura e ira, aperte-lhe o pescoço até esvaziá-la, até fazer com que seu corpo pare de buscar a saciedade inatingível. Esse que agora vem, animado pelo álcool, talvez carregue nas mãos a arma que vai libertá-la.

Até então, a cena tem se repetido: o homem se levanta, tira a sujeira da roupa ou da pele e, assim como veio, parte, só e seco. Ela se ergue, suja e amarga. Caminha devagar, sem desejo e força, como se não pretendesse chegar mais a lugar algum. Quiçá dessa vez tudo seja diferente: um gesto, brando ou violento, pode alterar o curso da história.

Aguarda, aguarda.

A noite se aproxima célere, e logo não restará vestígio algum desse entardecer belíssimo. Não restará vestígio de nada. Será como se ela não tivesse estado ali. O capim esmagado, um galho partido, o chão úmido, nada disso será capaz de remontar os fatos. Não há mesmo necessidade de tanto esforço para recontar o que, para o mundo, nunca teve importância alguma.

O dia vai morrer. O dia, na verdade, já está morrendo. Agonia, agonia.  Já vai tarde, ela pensa. Não, ela não pensa: seria inútil.

Silêncio turvo.

Já não se ouve mais o crepitar do capim seco. Acabou-se a espera. Sente, junto ao corpo, a respiração ofegante do homem.  Está pronta. Os sentidos, aos poucos, turvam-se, e o prazer definha. Enquanto se abre e se entrega, fecha-se também protegida por uma couraça de frieza e nojo. Será, então, como das outras vezes, assim como tem acontecido com os outros homens: enquanto ele a penetra, seca e violentamente, ela experimenta a vertigem da morte.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

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Por Alex Ribeiro

Édipo Rei é uma tragédia grega escrita por Sófocles, por volta de 427 a.c., talvez sua obra mais conhecida. O nome do nosso protagonista, Édipo, está presente não só nas conversas entre intelectuais, ou nas palestras de figurões do universo acadêmico. O protagonista de Sófocles retornou ao epicentro dos debates ocidentais no século XX através da psicanálise, quando Sigmund Freud se valeu de Édipo Rei para erguer um dos pilares da teoria psicanalítica, o Complexo de Édipo. Michel Foucault, filósofo francês, também se referenciou na história do rei de Tebas para analisar as práticas jurídicas da Grécia Antiga. Já na Grécia Clássica, Aristóteles viu em Édipo Rei o modelo de Tragédia mais perfeito. Toda essa repercussão chegou aos corredores das escolas, às mesas de bares, às salas de televisão, e até mesmo aos pontos de ônibus. É claro que, no Brasil, não chega a ter o impacto de uma final de campeonato ou de novela, mas com certeza “édipo” não é uma palavra estranha aos mais diversos grupos sociais brasileiros. Com toda essa força, Édipo não deixa de estar presente nos palcos, ainda hoje, e essa presença se faz necessária. Recentemente, em Brasília, Denis Camargo (foto) dirigiu e protagonizou Édipo Rei dos Bobos, unindo, de forma belíssima, a arte da palhaçaria com a tragédia grega. Sucesso absoluto! Com toda importância que a obra impõe, chegamos a mais uma resenha sobre o texto da tragédia grega. Tragédia essa que para muitos é o embrião do teatro no ocidente e, para nós, o embrião do nosso próprio entendimento, enquanto homens e mulheres no século XXI.

A tragédia se inicia com o povo aos portões do palácio de Tebas, onde reina Édipo ao lado de sua esposa Jocasta. O povo vai até o seu rei pedir que interceda por eles, visto que um grande mal, por castigo divino, cai sobre a cidade. O assassinato de Laio, o rei a quem pertencia o trono antes de Édipo, causa a insatisfação dos deuses, que querem justiça para esse crime. Assim como no passado, quando Édipo livrou Tebas da Esfinge, decifrando seu enigma, o povo esperava de seu rei alguma atitude que pudesse identificar o assassino, puni-lo, e consequentemente livrar a cidade da maldição. Édipo se prontifica, apaixonadamente, a destruir aquele que esteja causando o padecimento do seu povo. Mas o primeiro impasse que se apresenta é o desconhecimento do autor do crime. Laio fora assassinado longe de Tebas.

Creonte, cunhado e amigo de Laio, sugere que se consulte um adivinho, o velho e cego Tirésias. Ele poderia revelar quem foi o assassino de Laio. Assim, os passos da tragédia vão tomando um ritmo cada vez mais intenso e rápido. Tirésias chega às portas do palácio para ouvir de Édipo qual o vaticínio ele pretende obter. Mas se surpreende quando o rei pede que lhe seja revelado o nome do assassino do seu antecessor. O velho se recusa a dizer, sabendo que suas palavras causariam um grande mal a Édipo. Mas o rei insiste, e ouve as palavras que lhe roubariam os  últimos momentos de paz. Fora ele, Édipo, que assassinara o Rei Laio antes mesmo que chegasse a Tebas. Tais palavras deixam todos os presentes atônitos. Édipo, então, nega com veemência, não aceita que as palavras de Tirésias sejam verdade. E para ele não faziam sentido, tendo em vista que não se lembrava de ter matado nenhum rei. Acusado e se sentindo injustiçado, Édipo passa a acusar Creonte de tentar levar o povo contra o seu rei. Diante das acusações, Creonte afirma  inocência, e continua leal ao rei, mesmo que seja desacreditado. O conflito só diminui com a intervenção de Jocasta, que vem ao palco para verificar de que se tratava aquela contenda.

Dois vaticínios do passado explicam tamanha confusão. Quando Laio e Jocasta tiveram seu único filho, foram ao oráculo saber o que ele diria sobre a criança. E ficaram estarrecidos. O oráculo profetizou que a criança mataria o pai e se casaria com a mãe. Mesmo com resistência de Jocasta, Laio ordenou que um dos seus servos levasse a criança e a atirasse do alto de um monte. O segundo vaticínio foi dado a Édipo quando era jovem. O oráculo lhe disse que mataria seu pai e desposaria sua mãe. Com horror, ele fugira de casa. Essa fuga resultaria na sua chegada a Tebas, onde decifrou o enigma da esfinge, logo após a morte de Laio.

A semelhança entre os dois vaticínios não é puro acaso. Em posse das informações sobre o que o oráculo disse a Laio, Édipo já suspeita que podia ser filho de Laio e de sua mulher Jocasta, com quem está casado e tem quatro filhos. Mas tenta desacreditar do oráculo. Uma última esperança resta ainda a ele. Jocasta, sua mãe e esposa, pede que ele convoque imediatamente o servo que sobreviveu ao ataque que resultou no assassinato de Laio. O servo, ao ver Édipo, reconhece a face do assassino. Relata aos presentes a morte do antigo rei com detalhes, detalhes estes que o próprio Édipo também se recorda, chegando, enfim, a conclusão de que fora ele o assassino de Laio. Mas como poderia ser? A verdade é que aquele que fora designado a levar o menino para a morte, não cumpriu sua missão. Deu a criança de presente a um pastor que por sua vez levou-o ao seu rei, Pólibo, que não podendo ter filhos, adota o menino abandonado. Édipo cresceu como filho de sangue, mas não o era. Uma sucessão de equívocos o trouxe de volta para a terra natal.

Tudo está claro, mas o sofrimento que acomete o palácio é aterrorizante. O sangue paterno fora derramado e a mãe desposada pelo próprio filho. Repentinamente, Édipo se descobre pai e irmão de seus filhos, esposo e filho de sua mãe. O povo compreende a ira dos deuses. Jocasta se mata no palácio. E Édipo resolve se punir arrancando os próprios olhos. A Creonte é designado o trono e a missão de apaziguar a ira dos deuses e o desespero do povo tebano. Ele vê a figura horrorosa de Édipo aos frangalhos, suplicando que permita sua partida para o ermo. Assim se encerra a tragédia edípica.

Édipo Rei é sem dúvida uma das obras teatrais mais importantes de todos os tempos. Por ela podemos observar as mais diversas facetas humanas em análises clássicas ou contemporâneas. A sobrevivência dos versos de Sófocles, assim como os de Ésquilo e Eurípedes, possibilitou que toda uma tradição dramatúrgica pudesse ser retomada e ampliada muitos séculos depois. Esse é o papel da memória e da história, permitir que saibamos quem somos e de onde viemos. Essa mesma memória que permitiu ao Rei Édipo saber quão trágicas foram suas escolhas. É por isso, caro leitor, que conhecer a nossa própria história nos permite escolher equilibradamente e nos posicionarmos diante da vida. Já a atitude de ignorar, essa nos leva à tragédia de nós mesmos. Assim como Édipo.

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A consciência nos torna vulneráveis

Por Antônio Roberto Gerin

Abajur Lilás faz parte das consideradas quatro principais obras da dramaturgia de Plínio Marcos. A última a ser escrita, em 1969, quando o autor completava apenas 34 anos. No entanto, esta obra, diferente das demais, não conseguiria estrear, censurada quando os ensaios estavam já em sua fase final. A despeito de várias tentativas, Abajur Lilás só viria a ser liberada para montagem 11 anos depois, em 1980. O texto se tornaria famoso mesmo sem ter-se transformado em espetáculo. Em diversas ocasiões a classe cultural se uniria na defesa do direito de Plínio Marcos de montar seus textos. Foi com muita luta que se conseguiu a liberação de Navalha na Carne, em 1967. Mesmo assim, seria liberado com uma curiosa exigência. Que o espetáculo fosse apresentado à meia-noite. Os constantes problemas com a censura gerariam na vida pessoal de Plínio Marcos alguns transtornos financeiros. Afinal, ele tinha na arte seu ganha-pão, o que o obrigou a buscar alternativas de ganho na televisão e como colaborador em jornais e revistas. Participaria, no papel de Vitório, em 1968, da icônica telenovela da Tupi, Beto Rockfeller, de imenso sucesso. E vendia seus livros em bares e teatros, intitulando-se, sem cerimônia, camelô, aliás, profissão que exerceria em vários momentos de sua vida. Este é o homem irreverente, de criatividade ímpar, que nos revelou uma realidade subterrânea da qual só passamos a tomar conhecimento através das páginas de sua literatura. Plínio Marcos era um ícone cultural, chamava atenção pelo seu estilo de vida, e mais que isso, era aplaudido pela fantástica força humana que emergia de seus diálogos calcados em uma economia de palavras sem precedentes, marco inovador da nossa dramaturgia. “Perfeita economia dramática”, escreveria Bárbara Heliodora. Só para caracterizar sua importância intelectual, cuja sabedoria estava em viver a vida de forma independente, portanto crítica, assim diria Plínio Marcos, ao se negar a receber o prêmio Mambembe, em 1985, por seu texto teatral Madame Blavatsky: “Artista não é cavalo de corrida que tem que chegar em primeiro lugar”. Eis o nobre legado do verdadeiro artista.

Voltando ao texto Abajur Lilás, o cafetão Giro é dono do mocó onde as prostitutas Célia e Dilma recebem seus fregueses. Célia é irreverente e revoltada. Dilma se submete às humilhações por causa do filho, sua razão de viver. Giro, com inusitado faro capitalista, vê o ganho como algo que se baseia na produtividade, portanto quanto mais programas as prostitutas fizerem maiores serão os lucros. Este é o embate subjetivo do texto. O conflito se escancara quando Célia quebra de propósito o abajur lilás, levando o sovina Giro à loucura. Com a chegada de mais uma prostituta, Leninha, o desequilíbrio se acentua, elevando o tom e encaminhando a trama para o seu desfecho.

Em Abajur Lilás, mais do que em outros textos seus, Plínio Marcos escancara a prática da cafetinagem, a comercialização do corpo alheio subjugado a maus-tratos e ameaças. Se no mundo civilizado a exploração do outro é exercida de forma camuflada, no submundo de Plínio Marcos ela se escancara a céu aberto, tipificada na relação em que pisar no corpo do outro é a única forma de enxergar o horizonte. E Plínio Marcos deixa clara esta condição em Abajur Lilás, quando Giro, o perverso cafetão, chancela sua posição de explorador, enquanto Dilma denuncia sua condição de explorada. Diz Giro. “A gente é sócio, porra!”. Dilma replica. “Eu entro com o batente e tu pega a grana”.

Vale anotar que Plínio Marcos repete em Abajur Lilás, com algumas diferenças, a mesma estrutura formal de Dois Perdidos numa Noite Suja. Aqui ele divide o texto teatral em dois atos e cinco quadros, sendo três quadros para o primeiro ato e dois quadros para o segundo. E logo no primeiro quadro Plínio Marcos já desenha o embate entre Giro e Dilma, em que ficam estabelecidas as relações de poder entre o cafetão e a prostituta. O produto destas relações é a exploração materializada em humilhações e agressões físicas e morais.

Sabemos que as dinâmicas de convivência social perpassam por regras morais rígidas, cristalizadas ao longo do tempo. Mas como falar de moral em um cafofo de prostituição? Quando olhamos para um bordel, somos tomados pela certeza de que ali não há regras, tudo é permitido, a moral é apenas um quadro sem rosto esquecido no alto de uma parede. A literatura de Plínio Marcos, e Abajur Lilás em particular, desmentem esta visão. Há regras, há códigos, sim. Que serão fontes de motivação para atitudes e decisões das personagens. Veja o que diz Dilma a respeito de sua profissão. “Sou mulher da vida, mas tenho moral. Comigo é aqui. Se o freguês quiser outros babados, mando falar com tu mesmo, que é bicha”. É prostituta, mas só aceita a cópula dita normal, o papai e mamãe. É o limite. Não podemos esquecer que um bordel é uma microestrutura social, portanto, cabe ali sim a régua moral que medirá quem são os melhores e quem são os piores. Exceto para Giro, para quem a única coisa que não precisa de moral é o dinheiro.

Em dado momento, chegando o embate entre Giro e Dilma a seu limite, Plínio Marcos sente necessidade de fazer entrar Célia, a outra prostituta, companheira de quarto de Dilma. O pólo do confronto se desloca momentaneamente para Célia e Giro, em que Célia, esgrimindo uma habilidade verbal poderosa, leva Giro, descontrolado, ao enfrentamento físico. Dominada por ele, Célia é empurrada para fora do quarto. Plínio Marcos retira Célia de cena só o tempo de finalizar o embate entre Dilma e Giro, onde o filho de Dilma continua sendo o ponto central da discussão. Esta é a estratégia covarde de que se vale Giro para fragilizar sua presa. Giro, ao se retirar, deixa Dilma a sós, embalando sua tristeza na saudade do filho. O primeiro quadro cênico, com seus conflitos, está esboçado. Mas ainda falta entrar em cena o conflito principal.

No segundo quadro, Plínio Marcos mais uma vez joga suas personagens em situação emocional extrema. Ao assim fazer, ele força as personagens à ação bruta, única expressão de resistência para almas tão deformadas na sua essência humana. E Plínio Marcos escolhe Célia como a mensageira da desgraça. É o que ela diz a Dilma, referindo-se a Giro, o cafetão veado, desumanizado pelo dinheiro. “Tu tem medo? Se é isso, deixa pra mim. Faço a bicha com alegria. Antes do veado ciscar, dou-lhe um teco na lata. Mando o puto pro beleléu. Só tu entrar com a grana, o resto é meu”. O crime é um subproduto do desespero quando, em nome da libertação, perde-se de vista sua trágica consequência. E o revólver, na literatura de Plínio Marcos, tem esta função. Age como a alternativa disponível na esperança de se fazer gente. Mas como comprar a “draga” se Célia gasta todo seu dinheiro com bebida? Pois é. Ao oferecer bebida a Célia, Plínio Marcos a coloca à deriva, impotente. Em contrapartida, ao dar um filho a Dilma, Plínio Marcos a acovarda. Eis a triste constatação. Não há saída.

Ainda neste quadro, Plínio Marcos precisa ir além, ele precisa definir o ponto de tensão que irá provocar a explosão da tragédia. Primeiro introduz um conflito lateral, entre Célia e Dilma, para estabelecer o contraponto de personalidades. Traz o escarro de sangue na pia como ponto de choque entre as duas. Uma e outra se acusam de estar doente, e partem para as agressões verbais, interrompidas pela entrada passageira de Giro, que logo se retira, após dar seu recado de opressão. Um corte cênico providencial, pois Giro, ao se retirar, deixa o campo aberto para que o embate entre a revoltada Célia e a apática Dilma prepare a entrada de algo que é muito simbólico na dramaturgia de Plínio Marcos. A tensão se volta para o objeto, concretizado, neste caso, no abajur lilás. Célia joga o abajur no chão, declarando guerra a Giro. O conflito central, finalizando o segundo quadro, enfim entra em cena.

No terceiro quadro, há a amplificação da zona de conflito. É o quadro mais simples do ponto de vista da construção dramatúrgica. Mas essencial na sua função de dar fôlego extra à narrativa, caracterizando-se como o ponto de futuro desequilíbrio. Plínio introduz mais uma personagem, Leninha. É puta nova, recém-chegada, descolada, que ao revelar a Giro seu gosto por leitura, este diz. “Que mania besta essa tua”. Óbvio que Leninha não lê Machado de Assis. Lê a revista Capricho. E a gênese do conflito é o abajur, agora quebrado. Sem abajur, afinal, não pode haver leitura. Leninha encurrala Giro ao exigir um novo abajur. Diz ela. “Já vi com quem vou lidar. Com um enrolador. Prometeu de araque”. Giro estrategicamente se encolhe. Sabe que terá muito trabalho para descobrir quem quebrou seu abajur. É com este objetivo, descobrir o culpado, que se iniciará o segundo ato.

O segundo ato, mais curto, é composto apenas de dois quadros, quarto e quinto. O quarto quadro já inicia com as três mulheres sentadas, em ritmo inquisitório, diante das quais Giro se entrega às suas mais terríveis tergiversações sobre as injustiças de que é vítima, injustiça esta personalizada no abajur quebrado. Com esta manobra cênica, o autor já nos coloca no olho do furacão. E com um desafio. O espectador sabe quem quebrou o abajur.

A introdução da terceira personagem, Leninha, tem a justa finalidade de quebrar o rígido código de honra que reina no quarto. É o desafio proposto por Giro. Prefere manipular três, sabendo que uma delas caguetará. Mas sua intenção vai além. Produzir a desunião entre as putas. Desunidas, cada uma, a seu modo, se submeterá a ele. Esta é a essência do controle que Plínio Marcos tão bem arquiteta. E na busca desse objetivo, Plínio Marcos, no domínio da escrita, prepara o embate já sabendo qual será o desfecho. Mas vai devagar, sob o risco de perder o fôlego antes da hora. Para tanto, primeiro introduz a Dilma e Célia a terceira prostituta, Leninha. Diante da presença da novata, as duas reagem. E Célia decide ir embora. Tudo bem, Giro concorda, mas joga as cartas sobre a mesa. Diz a Célia. “Só que antes paga o que me deve”. “Eu te devo porra nenhuma”. “E o abajur que tu quebrou?” Esta é uma das atitudes cênicas de que Plínio Marcos mais gosta de se valer. Colocar suas personagens em becos sem saída. Plínio Marcos, num gesto cruel, não deixa suas personagens fugirem para a vida.

A questão central, que gira em torno do abajur quebrado, é marotamente resolvida por Giro. Para tanto, o objetivo é oferecer doses cavalares de pressão emocional às suas vítimas. Afinal, sem o fácil recurso do alcaguete, Giro não terá como saber qual das duas, Dilma ou Célia, quebrara o abajur. Cruelmente prepara o terreno. Vai descontar de ambas, um abajur para cada uma. Questionado, argumenta. “Claro, não sei quem foi. Desconto um de cada”. Evidente, eis a estratégia. Incitar o ato de caguetar. Portanto, desunir, desarmar, levar a tortura emocional ao limite. Alguém vai ceder. Eis o que diz Célia sobre a imundície moral do cagueta. “Se tem uma coisa que me dá nojo é cagueta. Tenho mais nojo de cagueta do que de veado”. Ao assim resolver o impasse da quebra do abajur, atribuindo financeiramente a culpa às duas, Plínio Marcos dá a solução para o conflito central, deixando o desfecho pairando no ar, sem a concretude da explosão teatral. Mas eis que entra, no final do quarto quadro, o principal golpe cênico desferido pelo autor.

Ao fim deste quarto quadro, Plínio Marcos retira todas as personagens de cena, ficando, eis o gancho, a cargo de Osvaldo, o brutamontes assexuado, a tarefa de trocar o lençol da cama, exigência da topetuda Leninha. Ao voltar para a cena vazia, com o lençol, Osvaldo destrói o quarto. Sem nenhuma motivação senão arrancar o último grito dramático. Plínio Marcos parece correr um sério risco. O novo impulso dramático se dá por conta da narrativa, através da rubrica, não do drama, através do diálogo. Mais que um risco, uma ousadia. Sem dúvida, diante do quarto todo quebrado, as atitudes de Giro irão às últimas consequências, e assim Plínio Marcos resolve o impasse estrutural de ter solucionado, ainda no quarto quadro, a quebra do abajur. Com o gesto desleal de Osvaldo, reacende, agora na fogueira do inferno, o conflito de poderes.

Mas antes de partirmos para o quinto e último quadro, cabe fazer uma observação sobre o embate entre as três mulheres, deixadas a sós em cena, após a solução do conflito da quebra do abajur, e a consequente retirada de Giro e Osvaldo. A pressão de Célia contra Giro eleva o nervosismo de Dilma e tira Leninha da neutralidade. Célia se torna uma ameaça incontornável. É a última esperança de reverterem a situação. Se não houver uma saída, a desgraça estará plantada. Vemo-nos, neste embate final entre as três mulheres, numa reunião de sindicato, em disputa acalorada entre os que defendem a greve contra o patrão explorador e os que são contra a greve pelo medo de perder o emprego. Eis o fabuloso alcance social do texto, refletindo a consciência social do autor. É trazendo este caldeirão revolucionário, a pretexto de os diálogos de Plínio Marcos proferirem muita gíria e palavrão, além de insinuação sexual, que Abajur Lilás viria a ter tantas dificuldades com a censura em plena vigência do AI-5. E a cena final, acima já mencionada, descrita em rubrica, é estupidamente icônica, quando o capanga Osvaldo, ele próprio, destrói o quarto, semeando sua possibilidade de praticar, no futuro, a maldade que lhe é inerente. Enfim, a atitude de Osvaldo destrói toda possibilidade de libertação. É a mão pesada e injusta do dominador.

O quinto quadro se inicia, como é exigido, em alta voltagem dramática. As três mulheres estão agora amarradas, sentadas cada uma em sua cadeira, diante delas um Giro disposto a arrancar a todo custo a confissão ou a delação. Eis que Plínio Marcos, trazendo os terríveis ecos da ditadura militar, em pleno ano de chumbo de 1969, nos coloca diante dos horrores da tortura. A primeira vítima é Dilma. Mas, para exaspero de Giro, Dilma se mantém inquebrantável. A questão agora não é só saber quem quebrou o abajur, e, sim, o quarto. Submetida à tortura do cigarro e do alicate, Dilma desmaia. Trazendo mais uma vez para a cena uma de suas marcas literárias, atribuindo sentimentos próprios a outrem como estratégia de manipulação e conquista de poder, Plínio Marcos coloca a sombra de Osvaldo por trás de toda esta infame tragédia. À frente do horror está sempre Giro, vestindo a casaca surrada do injustiçado, quando repete suas icônicas e mascaradas lamentações, colocando-se no altar da bondade. Diz. “Dei amizade. Recebi coices”. Evidente, na sua covardia, vira-se para a mais vulnerável, Dilma. Culpa-a, não por ter quebrado o abajur, mas por não ter delatado a culpada. Deu amizade, recebeu coice, esta é a camada subjetiva que justificará seu horrendo ato. Precisa, antes de tudo, da cagueta. Esta é a motivação destrutiva do código de honra, atitude de nobreza que não pode existir em seus domínios.

Mas o incansável Plínio Marcos continua a manipular os polos de tensão. Rearranja o conflito, voltando-se agora para Leninha, o elo frágil, recém-chegada ao cafofo, portanto, sem ter tido o tempo de construir uma relação de lealdade, diga-se, de classe, com as outras duas companheiras de quarto. Ao torturar primeiro Dilma, Plínio Marcos antecipa em Leninha a expectativa da dor, fragilizando-a. O próximo passo é apresentar a Leninha o instrumento fatal de tortura, o famigerado pau de arara. Diante deste instrumento, Leninha esmorece e delata, quebrando assim o rigoroso código de honra do submundo. Está, desta feita, cenicamente arranjado o encaminhamento para o desfecho. A revolucionária está delatada.

Interessante atentar para o discurso farisaico de Giro, um empresário do sexo que se coloca paternalmente diante de suas protegidas que ele explora, subtraindo-lhes despudoradamente a autoestima. Mesmo as que reagem não têm certeza da vilania do discurso que ouvem. Há na retórica do algoz uma sombra escura que não deixa ver a verdadeira face do engodo. A inexistência do sujeito para quem Giro direciona seu discurso dá a ele a santidade do protetor injustiçado. Esta cruel dimensão no significado das relações humanas é o que de melhor Plínio Marcos sabe manusear com sua habilidade de autor. Ele revela o ser humano não para o outro, mas para si mesmo. Ali, no cafofo, cada uma das mulheres tem consciência de sua miserável condição. No entanto, ao ganharem esta consciência tornam-se vulneráveis.

Neste diapasão, a crueldade do desfecho da obra não se atém à ação. Vai além, no discurso final de Giro, antes de ele sair de cena. É como se ele trancasse, com uma grossa parede de concreto, qualquer possibilidade de redenção. O não existir é que possibilita a razão desumana de ser. Não há alma. Há só o corpo. E no corpo, o lucro.

Em suma. Em que pese a exuberância de Dois Perdidos numa Noite Suja, é em Abajur Lilás que Plínio Marcos encontra sua mais verdadeira dramaturgia, e isto se deve a ter ele se conectado de forma ampla e consciente com o mundo que o cercava. Talvez seja nesta obra que Plínio Marcos tenha-se mostrado por completo, o Plínio das docas de Santos e o Plínio dos porões da ditadura. Deste encontro de realidades formou-se esta bela obra prima. A suntuosa identificação do artista com o seu tempo.

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