Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Perdidos entre quatro paredes

Por Antônio Roberto Gerin 

Quando Plínio Marcos escreveu Dois Perdidos numa Noite Suja, em 1966, tinha ele já em seu currículo de dramaturgo uma trajetória de embates com a censura, com a qual teria que conviver ao longo dos 21 anos de produção literária sob o regime militar. Como ele mesmo confessa em uma de suas entrevistas, fora preso 18 vezes desde que estreara sua primeira peça, Barrela, em Santos, em 1º de novembro de 1959. Barrela subiria ao palco por apenas uma noite, já antecipadamente censurada. Navalha na Carne, 1967, talvez seja o símbolo maior desta luta. Vários artistas, entre eles Cacilda Becker, se envolveram na refrega para a liberação do texto, obrigando a que Tônia Carrero, que protagonizaria Neusa Suely, percorresse os gabinetes da ditadura para conseguir a permissão da montagem. E chegou a triste hora, ainda na década de sessenta, em que todos os textos de Plínio Marcos seriam engavetados pela censura. Diante de biografia tão conturbada, Plínio Marcos passou a se autodenominar o “autor maldito”. Era já conhecido, não só nos corredores da censura, também em algumas praças culturais, quando Dois Perdidos numa Noite Suja foi apresentado pela primeira vez, em 1966, no Bar Ponto de Encontro, na galeria Metrópole, em São Paulo, para uma pequena plateia, mas o suficiente para que o texto repercutisse além das fronteiras paulistas. Plínio se tornaria uma figura popular, e se estabelecia, com as obras escritas na década de sessenta, como um dos nossos grandes autores teatrais. Como diria Plínio Marcos, meio que jocosa meio que raivosamente, “sou o analfabeto mais premiado do país”. De fato, não gostava de estudar, cursara só o primário, mas ninguém melhor que ele soube levar para os palcos criaturas analfabetas, marginalizadas, seres invisíveis que transitaram com dignidade ímpar pela sua pungente dramaturgia. Por necessidade, vendia ele mesmo seus livros nas portas de bares e teatros. Não tinha vergonha de ser independente, amparado que estava pela profunda autoconsciência do papel de dramaturgo que ele representava. Plínio Marcos tinha fé no teatro como fonte primordial do verdadeiro grito.

Dois Perdidos numa Noite Suja traz a vida de Tonho e Paco, chapas que trabalham em um mercado onde carregam e descarregam caminhões, cujos ganhos, avulsos, mal dão para comer e dormir. Moram juntos num quarto de pensão barato, onde tudo é dividido, dores e esperanças. Neste recorte cotidiano, Plínio Marcos começa a estruturar seu texto, despejando em cortantes diálogos a história de dois párias que não enxergam saída para suas misérias. Ainda se apegam a algumas referências, no caso de Tonho, a de ter um par de sapatos novos para poder procurar emprego, e Paco, a de comprar uma flauta para substituir a que lhe fora roubada, fonte antiga de seus ganhos. Num posicionamento dramático eficiente, Plínio Marcos coloca-os no extremo do corredor, onde há apenas uma porta de saída. Porém, lacrada.

Plínio Marcos conhecia muito bem as microestruturas de poder que se estabeleciam cotidianamente entre essas pessoas invisíveis que vagavam pela noite em busca de um pouco de vida. Mesmo entre os miseráveis, sempre tem quem manda e quem obedece; quem subjuga e quem é subjugado; quem explora, e os que são explorados. É do humano, portanto, não tem nada a ver com outras estruturas de poder baseadas no dinheiro. E Plínio Marcos traz essas microestruturas na forma inteligente com que manipula os diálogos. A configuração das falas que predomina no texto, onde quem finaliza o jogo de disputa verbal é quem detém o poder, pode ser exemplificado na sequência Paco-Tonho-Paco. Já no segundo ato, quando Tonho, de posse do revólver, passa a dominar, a configuração se inverte e a última fala poderosa passa a ser de Tonho. Vamos a um exemplo na configuração Paco-Tonho-Paco. Paco começa. “Pensando morreu um burro”. “Que devia ser seu pai”. “Que dormia com sua mãe”. Neste instante, acuado pelo poder emanado do manejo verbal de Paco, levado ao extremo, quando não há mais ar para respirar, então Tonho recua, muda de assunto, geralmente buscando dentro de si um sentimento ruim, de derrota. Como se vê, o poder momentâneo está com quem dá o último golpe. Como no ringue. Quem está apanhando corre para as cordas. E Tonho o faz com certa frequência. Paco o domina, no gogó. Restará a Tonho o revólver para reverter o jogo.

A estrutura formal planejada por Plínio Marcos para dar fluxo à narrativa traz uma curiosidade. Foge um pouco ao padrão esquemático de atos e cenas. O texto se divide em dois atos, até aí tudo bem. Só que o primeiro ato, bem mais longo, é composto de cinco quadros, o que não ocorre com o segundo ato, que não apresenta qualquer tipo de divisão, transformando-se numa longa cena, sem interrupção de tempo e espaço. Como se Plínio Marcos reservasse uma sala especial para desenvolver a parte mais sensível e crucial do texto.

O primeiro quadro do ato um já começa com a apresentação do primeiro objeto que comporá o conflito da trama. A gaita. E começa em alto tom, com as agressões físicas do forte Tonho ao impertinente Paco que, a despeito dos reiterados pedidos de Tonho, não para de tocar a gaita. Mas o que importa é o segundo objeto, o mais importante deste texto teatral, que definirá a trama e impulsionará toda a tensão em direção a seu desfecho. É visível a preocupação de Plínio Marcos em construir, já nesta unidade, a armadilha dramática. O desenho da personalidade de Tonho é tosco e ao mesmo tempo nuclear. Está insatisfeito com seu emprego de chapa no mercado, é estudado e sonha com a possibilidade de arranjar um emprego melhor, em algum escritório. Só há um obstáculo. Ele não tem sapatos apresentáveis. Quem tem a posse de um par de sapatos bacana é Paco. E aqui Plínio Marcos habilmente introduz o limite no relacionamento entre os dois, o que permitirá a explosão vigorosa do conflito. Ao negar à relação entre os dois pobres coitados qualquer possibilidade de solidariedade, o autor dá fôlego à tragédia.

O segundo quadro começa novamente com a desavença em torno da gaita, mas logo abandonada para introduzir outra problemática, o Negrão, sujeito mal encarado, a quem Tonho teria tirado a vez no descarregamento de um caminhão. O assustador Negrão passou a cobrar de Tonho a metade do dinheiro recebido do dono do caminhão, e o recado, de forma manipulativa, é trazido por Paco. Neste quadro aparece a fala tão querida a Plínio Marcos, quando Paco diz. “Não força a paciência. Você nunca vai ser ninguém”. Plínio Marcos se sente impotente em inserir suas personagens no mundo visível, como cidadãos funcionais pertencentes a um meio capitalista produtivo. Sente-se tão impotente, vê tão pouca perspectiva, que prefere se ocupar do instante das personagens, daquilo que é essencial naquele momento, para não dar a elas a consciência de sua invisibilidade. E a frase acima, evidente, conduz a trama para o olho do conflito. Os sapatos de Paco são a única forma de Tonho ser alguém na vida. Esta é a saída, esta será sua obsessão, transformando o embate em torno dos sapatos no núcleo poderoso do texto. O conflito está entronizado. E finaliza o quadro com a ameaça do Negrão que, segundo palavras de Paco, quer “enrabar” Tonho. Com este verbo, Plínio Marcos introduz mais uma recorrente temática em sua dramaturgia. A posse do corpo do outro.

Neste terceiro quadro, Plínio Marcos estrutura a narrativa em torno de uma possível cafetinagem, nome usado nas quebradas do submundo, que é a exploração ou comércio carnal alheio. É ilegal, é crime. Relação de negócio comum no submundo de Plínio Marcos, onde toma formas desumanas, e onde a autoestima é totalmente destruída. As prostitutas surgem em seus textos como as principais vítimas desta mórbida relação, obrigadas que estão, em troca de proteção e afeto, a ceder parte do seu ganho a quem as protege. Esta relação surge como temática central em Navalha na Carne, com a subjugação humilhante de Neusa Suely a Vado, e chegará ao limite do absurdo em Abajur Lilás. E vai surgir ainda mais escancarado em seu romance Querô, uma Reportagem Maldita, só que desta vez estruturada na relação de bandidagem, e que serve de motivação existencial para preparar a tragédia, que é quando Querô, na busca de si mesmo, se recusa a se submeter à humilhação da posse pelo outro.

Em Dois Perdidos numa Noite Suja, a relação de posse não está no centro do conflito, serve apenas para fechar mais uma das portas de possibilidade de ganho. Para evitar o achaque do Negrão, Tonho evita ir ao mercado. Sem trabalho, a pressão de tomar atitude para ser alguém na vida aumenta. Mas Paco, numa linguagem muito precisa, parece enterrar de vez os sonhos de Tonho de “ser alguém”. Diz, em relação aos achaques do Negrão. “Não vai ser mole. Se antes de você trabalhar pra homem, não dava, agora então é que não dá mesmo”. E vai além, referindo-se a Tonho. “Seu apelido lá no mercado agora é Boneca do Negrão”. E incita-o a se livrar da triste condição. “Acho que você devia brigar com o Negrão”. Só que Tonho sabe que esse embate sem fim terminará em morte. E então Paco sela o destino. “Mata ele”.

Uma das armadilhas emocionais montada por Paco é atribuir a Tonho sentimentos (inveja, medo) e atitudes (covardia) que não são dele. É nesta vileza que Paco constrói o monstro que se voltará contra ele. Esta é a dinâmica propulsora da tragédia. Na verdade, eis a clareza. Tonho não tem inveja dos sapatos de Paco, tem vergonha dos seus, rotos. E aqui Plínio Marcos introduz o terceiro objeto da trama, o revólver, que elevará a tensão e a expectativa para outro patamar, sublimando a derrota na tragédia.

No quarto quadro, aprofunda-se a consciência do nada ser, em que se vive em um mundo onde cada um é por si e não há ninguém a quem recorrer. Diante deste sentimento de estar no fundo do poço é que nasce a utilidade do revólver. “Um assalto?”, pergunta Paco. “É. Um assalto.”, responde Tonho. Interessante perceber que ao ser acuado por Paco, nasce em Tonho o dilema da maldade. E Tonho está consciente do seu passo. “Não gosto disso. Só vou entrar nessa porque não vejo outro jeito de me arrumar”. E logo se percebe. Mesmo entrando na onda do crime, há limites morais, como, por exemplo, o estupro, ação sugerida por Paco. Assim Tonho se expressa. “Eu nunca vou agarrar mulher à força”. O caráter de Tonho é, de certo modo, preservado, empurrado para o crime apenas em função da necessidade de ter um par de sapatos. Seu desejo é apenas encerrar este impasse em sua vida. Uma vez que não pode aparecer no mercado sob pena de ser achacado pelo Negrão, o que lhe resta? E assim está inoculada em Tonho a ideia inevitável do roubo.

Neste quinto quadro, para convencer de vez Tonho a entrar na onda do assalto, Paco usa de sua principal arma, a manipulação de fatos reais. Ele está doido para assaltar, só que disfarça, jogando, em mais uma de suas artimanhas, este desejo no colo de Tonho, fragilizado ao se encontrar em situação extrema. Paco espertamente fecha seu universo de possibilidades para uma única saída, o assalto. Assim diz para Tonho, quando este sugere que ele vá sozinho. “Mas você que está a perigo. O Negrão não te esquece”. E o fato relevante momentâneo na relação dos dois é que Paco, estrategicamente, se submete ao mando de Tonho para conseguir convencê-lo da empreitada. Aceita as condições de Tonho. Tonho, sentindo-se seguro, no comando, cai na armadilha do esperto Paco. E assim partem para a aventura, gerando o imbróglio dramático de que se ocupará o segundo ato.

O segundo ato começa em alta voltagem, quando as personagens retornam do assalto a um casal, no parque, e estão com a adrenalina a toda. E é este cenário emocional que faz com que as personagens, antes já pinceladas, agora se revelem em toda sua crueza. E função. Enquanto Paco eleva o tom, sentindo-se o maioral, tratando-se como “Paco Maluco, o Perigoso”, Tonho se rebela contra a tirania verbal e as atitudes imorais do companheiro. Já se percebe a transformação. É como se agora, ao assaltar, o interior ficasse definitivamente para trás, com seu romantismo e suas complacências. O Tonho está pronto para dar o salto definitivo. Mas ainda reage à ideia de ingressar na criminalidade. Diz. “Eu quero ser como todo mundo, ter um emprego de gente, trabalhar”. É seu último suspiro.

Até que se chegue ao desfecho, há o lance espetacular da dramaturgia de Plínio Marcos que, com certeza, respirava, àquela época, os fortes ventos do existencialismo, ao feitio de O Estrangeiro, de Albert Camus. Tonho arriscara seus princípios morais em um assalto tão somente para ter um par de sapatos decente para calçar e assim buscar um emprego condizente com seu nível de rapaz estudado. Só que ele descobre que os pés do rapaz de quem roubara os sapatos eram menores que os seus. Não havia atentado para esta possibilidade. Os sapatos roubados não lhe serviam! Volta assim à estaca zero. Confrontado pelas últimas provocações de Paco, levadas ao extremo, Tonho então pega o revólver e aponta. Vê então a valentia de Paco Maluco se esfumar na covardia do medo, possibilitando que Tonho, no comando total, se apodere da linguagem de Paco. Este é o belo efeito da transformação que Plínio Marcos nos oferece. É com esta linguagem, que se configura no título que Paco havia se atribuído, que Tonho dá vazão, de vez, à mudança. Agora ele é o “Tonho Maluco, o Perigoso”. Nada mais existencial.

Antes de finalizar, façamos aqui um pequeno parágrafo para um breve parêntesis. Vale observar que, apesar do poderio manipulativo de Paco, que o coloca em vantagem sobre Tonho, é ele, Paco, quem está preso emocionalmente ao outro. Não o contrário, como poderia parecer. E aqui reside, digamos, a burrice de Paco. Não tendo consciência desta prisão emocional, mas tentando intuitivamente se libertar dela, ele passa, detentor de um inteligência verbal irresistível, a tripudiar seu algoz, do qual, como ficará evidente, não consegue se libertar. Paco vê em Tonho um sonho humano para si próprio. Sem o perceber, querendo destruir sua imagem de sonho, Paco aciona a dialética da tragédia. Esta eficiente construção dramatúrgica de Plínio Marcos é que vai possibilitar a transformação pessoal de Tonho. E dar o desfecho pretendido pelo autor.

Como conclusão, vamos aqui construir uma alegoria. Supor que Tonho, chegado do interior, ainda impregnado de inocência e romantismo, seja uma bela escultura em madeira. Paco, um ser desprezível, sem pai nem origem, inteligente e descolado, perspicaz e manipulador, diante desta singela figura esculpida em madeira, se propõe a destruí-la. Para isso, transforma-se em cupim. E vorazmente vai comendo a madeira e aos poucos desfigurando a imagem. É neste ritmo dramático, em que a cada fala brutal de Paco um pedacinho da madeira se decompõe, que o texto vai se configurando como uma alegoria da transformação. Ao chegar ao fim, a bela imagem já não mais existe. Em seu lugar há uma outra, maldosamente esculpida por Paco. Mas, como um doutor Frankenstein, Paco também é consumido pela própria obra. Esta é a essência magnífica do texto de Plínio Marcos.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

A intensa dor humana

Por Antônio Roberto Gerin

Em relação a seu primeiro texto teatral, Barrela, 1958, Plínio Marcos escreveria: “Juro por essa luz que me ilumina que nunca havia me ocorrido a ideia de escrever uma peça”. Plínio Marcos diz que sequer conhecia a grande dramaturgia nacional, tampouco a universal. Portanto, jamais, até então, passara-lhe pela cabeça ser dramaturgo. No entanto, impulsionado por um fato real, lido em jornal, sobre os crimes cometidos por um rapaz que se vingava dos malandros que o haviam currado quando estivera na prisão, Plínio Marcos, de tal modo impressionado com o ocorrido, viu-se na necessidade urgente de escrever algo a respeito. Despejaria no papel, em forma de diálogos, tudo o que sentia, com a visceralidade de quem se colocava no lugar do seviciado. Mal sabia ele que, ao optar pela forma dramática de escrita, estaria gestando sua primeira obra prima teatral. Ao mostrar o texto para Patrícia Galvão, aquela mesma, Pagu, a intelectual que se tornara o símbolo do movimento modernista de 1922, e que à época, 1958, morava em Santos, o jovem Plínio Marcos receberia dela o elogio de que seus diálogos eram tão vigorosos quanto os de Nelson Rodrigues. Com o incentivo de Pagu, Barrela estrearia em 1º de novembro de 1959, no Centro Português de Santos, por uma noite apenas, uma vez que o texto já havia sido previamente censurado. Do inebriante sucesso da estreia lembra-se o autor. “Ainda trago comigo os sons dos aplausos daquela noite”. Sequer poderia imaginar o que o esperava na década seguinte, com suas obras primas que sacudiriam o cenário cultural, levando seus inovadores textos a serem esmagados, por anos a fio, pelos coturnos da ditadura militar. Como reação ao sucesso daquela noite de 1959, Plínio Marcos se viu em meio a um tiroteio de calúnias, sendo um dos rótulos preferidos chamá-lo de comunista. Vale lembrar que estes chavões autoritários pertenciam ao ano de 1959, bem antes de 1964 — ano em que se instaurou no Brasil a ditadura militar —, o que nos leva a supor que o ovo da serpente demoraria um bom tempo para ser chocado. Plínio Marcos ainda tentou levar Barrela para os palcos em 1968, mas o texto seria censurado após dois meses de ensaio. A personalidade independente de Plínio Marcos, protegida por sua irreverente persistência, fez com que ele não se dobrasse ao destino. E ao assim proceder, fez-se o artista genial.

Barrela compõe-se de uma única cena, sem interrupção de tempo e espaço. A trama se passa em uma cela de prisão, onde dormem seis presos, Tirica, Portuga, Bahia, Fumaça, Louco e Bereco, quando então Portuga, já madrugada, assustado por algum pesadelo, começa a gritar e acorda todo mundo. A partir deste fato corriqueiro, a trama vai se deixando levar por uma estrutura muito bem delineada por Plínio Marcos, afinal, ele sabia exatamente o que queria dizer e aonde chegar. Portanto, sustentado por uma evolução dramática verossímil, o encaminhamento feliz da trama segue firme rumo a seu desfecho, quando chega a hora de entrar na cela o novo preso, o Garoto, o principal alvo dramático do autor. Nada estava programado para acontecer naquela minúscula cela de prisão, até que a caneta frenética de Plínio Marcos se utilizasse de um mote poderosíssimo, a sexualidade, para dar vazão aos instintos mais brutais do ser humano. Plínio Marcos, com sua natural habilidade, conseguiu chegar aonde pretendia. Seria Barrela seu inesperado encontro com o teatro.

Vale lembrar, antes de entrarmos propriamente na análise do texto teatral, que quando Plínio Marcos declarara ter ele sentido incontida necessidade de escrever sobre o fato real ocorrido com o rapaz, e que tanto o impressionara, a compulsão pela escrita o levaria diretamente para o teatro, como única forma artística plausível para se chegar à catarse da dor. Ele precisava da força mimética do drama, posto que a realidade estava ali, urgindo para ser contada. Isto prova que todo conteúdo precisa da exata forma para se transformar em arte, e este é um dos mistérios que envolve o ofício do artista. Eis uma condição que a arte impõe e que merecia de especialistas profundas especulações. O processo artístico, ao ser espontâneo, nasce com a benção da beleza e da verdade.

E ainda complementando a análise acima, cabe lembrar que muitos anos depois Plínio Marcos retomaria a tragédia da curra, que é quando todos estupram um, ao escrever, talvez com o espírito já pacificado, e se valendo agora da narrativa, portanto, o romance, para escrever Querô, Uma Reportagem Maldita. Nesta premiada obra, ele revisita de forma mais demorada e explícita a dor da curra sofrida pelo rapaz anos atrás. É perceptível que a demanda interna do artista era outra e, portanto, outra seria a forma a ser utilizada.

A principal habilidade de Plínio Marcos, e que concorreu para o belo resultado final da obra, foi ter o autor paciência para introduzir a temática principal da narrativa, a barrela (gíria para curra). Antes, tomando mais de dois terços do texto, o autor trabalha um outro conflito, também de base sexual, e que logo se saberia, fora fruto também de uma curra. Este fato, acorrido no passado, prepara a entrada do grande e doloroso evento.

Portuga traz à tona o abuso sofrido por Tirica, na infância, no reformatório. Em torno da raivosa disputa entre Tirica e Portuga circulam Fumaça e Bahia, cujas funções na estrutura são, como se diz na gíria, botar lenha na fogueira. E fazendo o coro de uma voz só, mas totalmente eficiente, o Louco, que nos momentos de maior tensão, incendiando a libido, apenas repete “enraba, enraba!”. E do outro lado Bereco, o chefe, tentando frear a tensão. Ao estabelecer estas dinâmicas, Plínio Marcos não vai precisar recorrer a artimanhas de carpintaria dramática para solucionar o desfecho. Quando o garoto entrar na cela, a adrenalina e a testosterona estarão acumuladas no limite da agressividade, bastando apenas dar encaminhamento ao ato máximo. Esta é a estrutura eficiente adotada por Plínio Marcos em seu texto teatral.

A luta intestinal, por envolver vários contendores, é desenhada por uma estrutura de poder necessariamente frágil, e ao mesmo tempo ágil, posto que muda de intensidade e de polos o tempo todo, deixando pelo caminho o rastro previsível da tragédia. Plínio Marcos sabidamente tinha plena consciência dessas nuances nas disputas pela supremacia do mais forte e do mais esperto, explicitamente típicas nos meios da malandragem, e que o autor tão bem conhecia. Tanto que o texto se define pela seguinte fala da personagem Bahia, que se posiciona num dos lados da contenda. Assim diz Bahia a Tirica quando este jura Portuga de morte por ter colocado em cheque sua sexualidade: “Vê lá. Se não confirma, se dana. Não vai fazer nome de homem nunca mais”. Está esculpida nesta frase a marca da reviravolta na trama. Estava decidido. Para recuperar sua imagem de macho, Tirica teria que matar Portuga. E Plínio Marcos nos avisa desta sina pouco adiante, pela voz de ameaça de Tirica quando Portuga diz pretender no dia seguinte mudar de cela para se livrar das ameaças do outro. Diz Tirica, anunciando os fatos. “Ainda vai correr muita água debaixo da ponte, antes de chegar amanhã”.

Ao dizer a frase acima, é introduzido na cena teatral o objeto que corporificará a ameaça, projetada na realidade objetiva, não na introspecção da alma. A alma apenas é avisada do que vai acontecer, como se ela, com sua história carregada de misérias e dores, estivesse apenas à espera de ser vingada. A alma transfere para o corpo toda a responsabilidade do crime e esta atitude é uma marca na dramaturgia de Plínio Marcos. É o cabo da colher que Tirica, mordiscando sua vingança, vai afiando no cimento da cela, até transformá-lo em estilete. O crime se anuncia. “O ferro já está quase afiado”, diz Tirica a Portuga. Veja que Plínio Marcos desloca lentamente a cena para seu limite. Deixa tudo bem armado, mas pedindo um novo fôlego dramático, sem o qual o texto cairia em triste impasse. Mas Plínio Marcos, mesmo que intuitivamente, previa este impasse. Aliás, precisava dele. Então, como que um deus ex machina, sob o ranger do ferrolho, entra o Garoto.

Em suma. Plínio Marcos, moldado pelo sucesso inesperado, que o fez levar ao extremo a sua arte, angariando o respeito e a admiração de todos, cooptando em torno de si a classe artística na defesa de seus textos censurados, acabou desenvolvendo no homem artista uma certa autopercepção de genialidade e sentido de seu fazer artístico, inclusive se colocando numa posição de superioridade, escapulindo às vezes uma vaidade despropositada. Este era Plínio Marcos, vivendo como uma personagem dentro da sua arte. Confundia-se nela como inspiração de vida. Quando perguntado pelo amigo Nelson Rodrigues por que se achava o melhor autor de teatro do Brasil, o espirituoso dramaturgo santista não deixou por menos. Assim respondeu a Nelson Rodrigues, numa atitude de pretensa espontaneidade. “Por que eu copio os seus defeitos”. Sim, para construir a sua arte, Plínio Marcos não fez outra coisa senão copiar defeitos. Trazer à luz as imperfeições. Revelar o que permanecia oculto. Barrela seria só o começo da construção de sua genial dramaturgia.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

 A reinvenção do velho Oeste

Por Antônio Roberto Gerin

Antes de falarmos do clássico ERA UMA VEZ NO OESTE (175’), direção de Sergio Leone, EUA/Itália (1968), cabe discorrer um pouco sobre este intruso gênero cinematográfico chamado faroeste, termo originado da expressão inglesa far west, lá onde as longínquas terras inabitadas esperam para serem ocupadas por aventureiros. A conquista do oeste, na segunda metade do século XIX, é fruto da expansão demográfica e econômica norte-americana, coincidindo com o fim da Guerra da Secessão (1861-1865). Com a política de esvaziar o Sul no pós-guerra, ainda um caldeirão socioeconômico em perigosa ebulição, suas populações foram estimuladas pelo governo de Washington a tomarem o rumo do Oeste, com promessas de terra fácil e riqueza com muito trabalho. E, óbvio, para o Oeste não foram somente os trabalhadores em busca de um novo lar. Os órfãos da guerra, os que tomaram gosto pelo manuseio das armas, e ainda os ressentidos com a vitória dos nortistas levaram para o Oeste seus rancores e seus sonhos de riqueza e, com eles, a bandidagem. Em terras distantes a Lei era ainda frágil, portanto, exposta a corrupções. É desta paisagem de aventuras, achaques a proprietários de terras, roubos de gado, morte aos índios, os bares com suas prostitutas, a posse fácil de armas, a procura por ouro e riquezas outras, sem contar a expansão das linhas férreas que ligariam o Leste ao Oeste, enfim, é deste imbróglio histórico que surgiria o faroeste, gênero cinematográfico que ajudaria a afirmar o mito da formação da nação norte-americana. E que seria uma das glórias financeiras de Hollywood por várias décadas. Nos anos 1960, já sofrendo de esgotamento, o faroeste, ao aportar na Itália, terra do espaguete, irá encontrar uma dupla do barulho que dará nova roupagem ao gênero. É deste encontro venturoso entre Sergio Leone e Ennio Morricone que o faroeste spaghetti se espalha febrilmente pelo mundo. E não há como falar de Era uma vez no Oeste sem retroceder minimamente no tempo e conhecer a “trilogia dos dólares” criada por Sergio Leone, uma feliz sequência de filmes de faroeste reinventado nos belos Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965), e no festejado O Bom, o Mau e o Feio (1966), que iriam desembocar em 1968 no espaguete ao alho e óleo Era uma Vez no Oeste.

É bom que se diga que quando se fala de faroeste fala-se de ficção, não de realidade. Isto quer dizer que a abundante violência mostrada em inúmeros filmes de bangue-bangue pertence ao mundo criativo dos roteiristas e diretores. Óbvio que houve violência no velho Oeste. Alguns de seus grandes pistoleiros ganhariam fama e se tornariam lenda, fornecendo muito caldo dramático para a construção de ótimas narrativas. Nesta transição da realidade para a ficção podemos pensar, como exemplo, em Billy The Kid. De fato, no mundo real, Billy the Kid, morto aos 21 anos, alimentaria o imaginário norte-americano com suas bravatas e fugas espetaculares. Segundo um jornal de Santa Fé, Novo México, Billy The Kid teria matado 21 homens. Na verdade, afirmam os estudiosos, fora bem menos que isso. No entanto, o que interessa é a lenda. Sua fama percorreu o tempo, e hoje, século XXI, uma de suas duas fotos conhecidas, tirada em 1878, mostrando Billy The Kid jogando críquete, tem seu valor estimado em cinco milhões de dólares! Sem falar do ressentido sulista Jesse James, famoso pela rapidez no gatilho. E Wyatt Earp, que espantosamente sobreviveria a vários tiroteios, o mais famoso deles o do Curral O. K., que viria a inspirar muitas produções. Wyatt Earp morreria de velhice aos 90 anos, de causas naturais, em 1929. Como se vê, o faroeste é um gênero que sobrevive de lendas, e como lendas não acabam, o faroeste tem motivos para permanecer ainda por muito tempo nas telas dos cinemas. E na memória dos fãs.

A estrutura narrativa de Era uma Vez no Oeste se divide em duas motivações dramáticas distintas, que caminham juntas, mas sem se tocarem, a não ser, evidente, no grande final. São elas a ambição e a vingança. Frank — o insuperável Henry Fonda — é o capataz do dono da famosa ferrovia que atravessa o Oeste rumo ao Pacífico. É pago pelo Mr. Morton (Gabriele Ferzetti) para proteger os negócios da companhia dos ataques de pistoleiros. Só que a ambição de Frank o leva para além de suas funções, criando pontos de tensão dos quais o roteiro vai, generosamente, se alimentar. Do outro lado aparece Harmônica — sempre ele, Charles Bronson —, que desembarca na estação com o único objetivo de se vingar. Só que saberemos disto, e das razões, mais adiante. Enquanto não executa seu plano, Harmônica se envolve na trama com a função de proteger Jill McBain — a exuberante Cláudia Cardinale — do facínora Frank. Frank acabara de matar a família McBain de olho em suas terras, por onde passará a ferrovia rumo ao Oeste. Nas terras de McBain, no meio do deserto, há água em abundância, necessária para as caldeiras que movem as locomotivas. Só que Frank não contava com uma surpresa. O viúvo irlandês Brett McBain (Frank Wolff) havia se casado com Jill, em segredo, um mês antes, em New Orleans, o que faz dela também uma Mcbain, portanto, herdeira. E por sorte, e azar de Frank, ela chega ao local logo depois das execuções. Frank agora precisa tirá-la também do caminho. É na proteção de Harmônica a Jill que se dará finalmente o decisivo encontro entre os dois pistoleiros, Frank e Harmônica. Mas aí já será o final do filme.

O roteiro de Era uma Vez no Oeste é aparentemente frouxo, sem conexão imediata de causa e efeito, mas trama tão bem urdida, e de consistência inquestionável, que o que poderia parecer um perigoso defeito torna-se uma surpreendente qualidade. E no meio desta aparente desconexão entre as cenas entra o terceiro protagonista, cuja função no enredo poderíamos até questionar, mas se o tirarmos, o filme, é certo, perderá parte substancial da sua carne. A introdução desta personagem permitiu a Era uma Vez no Oeste desgarrar-se de rótulos e alçar-se como um dos grandes filmes do cinema mundial, pois possibilitou aos roteiristas Sergio Donati e Sergio Leone envolverem a trama em uma tessitura complexa e ambiciosa, alcançando a proposta de fazer um compêndio das realidades do velho Oeste. A partir do momento em que o pistoleiro Cheyenne, este é o nome do terceiro protagonista, se junta a Harmônica na defesa de Jill, temos fechada a composição dramática do roteiro, portanto, sua concepção bem-sucedida.

Mas há algo em Cheyenne que vai além dos clichês dos heróis do velho Oeste. Ele é arredio, desconfiado, quase um romântico. Às vezes, um menino abandonado pelo destino. Pode-se considerar Cheyenne a mais humana das personagens criadas por Sergio Leone até então. Aliás, uma das características inovadoras do diretor foi trazer para o faroeste tipos bem humanos, ao alcance da nossa realidade. E Cheyenne seria, sem dúvida, o ponto alto desta busca. E ele está resumido nesta fala, quando se despede de Jill McBain. “Jill, você me faz lembrar minha mãe. Ela era a maior vadia de Alameda e a melhor mulher que já viveu. Seja lá quem fosse meu pai, por uma hora ou por um mês, ele deve ter sido um homem feliz”. Se Sergio Leone perseguiu o objetivo de humanizar Tuco (Eli Wallach) em O bom, o Mau e o Feio com relativo sucesso, Cheyenne proporcionou, na atuação monumental de Jason Robards, o surgimento de sua mais perfeita possibilidade, a de elevar Era uma Vez no Oeste à sua condição trágica, onde, num suspiro épico, a violência não desumaniza a história.

E cabe um necessário parêntesis para a atuação da exuberante Cláudia Cardinale. Ela trouxe para a trama a consistência da mulher como fonte de vida e de esperança em meio a uma terra de homens em constantes conflitos. Prostituta de New Orleans, chega a SweetWater (Água Doce) trazendo na personagem Jill respingos de uma Blanche DuBois. Mas diferente desta famosa personagem de Tennessee Williams, Jill desfila no meio dos homens com a segurança e a decisão que se espera da mulher que se sabe pronta para os embates da vida. E para fechar de forma pungente seu vigoroso perfil, cobre-lhe de honras e emoções a trilha sonora que Ennio Morricone soberbamente lhe oferece.

Algumas peculiaridades estéticas de Sérgio Leone chamam a atenção. O ritmo é a primeira. Nada de acelerar a cena, nada da verborragia hollywoodiana. Em Era uma Vez no Oeste foram dez minutos para apresentar os créditos iniciais, portanto, dez minutos esperando o trem chegar à estação. E sem diálogos. Enquanto as imagens vão contando a história de uma mosca e das gotas d’água pingando em um chapéu. O feio e o grotesco são outras características suas, próximas neste sentido das estéticas de um Pier Paolo Pasolini e um Bernardo Bertolucci. Seres normais, que não tomam banho, usam roupas rotas, botas empoeiradas, cabelos desgrenhados, barbados e desdentados, uma miríade de tons e feições escalavradas pelo tempo e pelo sofrimento. E mais. Sergio Leone dá aulas de tipos de revólveres, adereço assumidamente central em sua dramaturgia cinematográfica. Sem falar dos longos silêncios das cavalgadas e dos duelos. Os closes exaustivos fundindo-se com as paisagens em plano aberto, e mais do que tudo, a trilha sonora, desenhada para sugerir cada atmosfera, para acolher cada protagonista, numa soberba arquitetura musical a serviço da construção das cenas. As trilhas sonoras de Ennio Morricone antecediam as câmeras. Inspiravam o diretor. Guiavam os atores. E em Era uma Vez no Oeste Sergio Leone levaria esta prática ao extremo.

Outra obsessão artística de Sergio Leone eram os duelos, quase sempre o clímax dos bons faroestes. Só que o diretor pensava cuidadosamente cada cena de duelo, na busca da originalidade. É só começarmos pelo filme Por um Punhado de Dólares, quando vemos o duelo final entre Joe (Clint Eastwood) e Ramón Rojo (Gian Maria Volonté), cuja dinâmica de tempo e espaço se resume em quem primeiro carregará a arma vazia depositada no chão, diante de cada contendor. Em Por uns Dólares a Mais, Sérgio Leone avança na ousadia, caracterizada no confronto entre os dois caçadores de recompensa, o Pistoleiro sem Nome (novamente Clint Eastwood) e o Coronel Douglas (Lee Van Cleef). Talvez a melhor cena de duelo em um faroeste, mas sem necessariamente ter sido um duelo. Ao final do filme, o duelo decisivo se dará em um círculo, onde se encontram três pistoleiros, um deles, no entanto, como mero espectador. Esta observação nos leva para o próximo filme, a coroação dos duelos na filmografia spaghetti de Sergio Leone, O Bom, o Mau e o Feio, com o icônico duelo no cemitério de Sad Hill, em seu círculo central, agora com os três homens participando diretamente do jogo. Mas só na aparência. Ao tirar as balas do revólver de Tuco, Sergio Leone tira-o do duelo e resolve o impasse, permitindo o confronto direto entre o Bom (Clint Eastwood) e o Mau (Lee Van Cleef). E finalmente Era uma Vez no Oeste. Neste o duelo toma um formato épico, da vingança sagrada, onde cabem quase nove minutos de espera, com direito a flashbacks (a famosa cena do arco), em que a maldade, no seu sentido moral, é destilada na sua razão mais desumana possível. Harmônica vence Frank. O bem vence o mal. Afinal, é dever dos faroestes nos dar o prêmio da redenção, mesmo que o vencedor seja tão fora da lei (anti-herói) quanto o perdedor.

Último parêntesis. Se fizermos uma análise mais cuidadosa da trajetória de roteirização e direção dos quatro filmes que compõem a fase faroeste de Sergio Leone, vamos perceber uma interpenetração criativa entre estes filmes em sua sequência temporal, tanto do ponto de vista estético quanto da técnica. E esta é a pergunta que se pode fazer. Sem os três filmes anteriores, teria Sérgio Leone alcançado a excelência artística e técnica de Era uma Vez no Oeste? Se admitirmos que todo artista, com raríssimas exceções, passa por um processo de conhecimento e amadurecimento do seu ofício, vamos admitir que os quatro filmes têm que ser pensados em conjunto, e que caberia um estudo para identificar as interconexões entre eles. O que podemos adiantar é que, nos parece, não são poucas.

E por fim cabe falar um pouco da suntuosa parceria dos dois colegas de sala de aula, portanto, de mesma idade, Sergio Leone e Ennio Morricone. Faz-nos lembrar de outra parceria famosa, entre Ingmar Bergman e seu diretor de fotografia Sven Nykvist. Se para Bergman foi a fotografia, para Sergio Leone foi a trilha sonora que deu o diapasão estético de suas obras. Há pouco o que se falar de Ennio Morricone justamente do tanto que há para se escrever dele. É sabido que Sergio Leone fazia questão de prolongar certas cenas apenas para dar tempo de a música chegar ao seu fim. Sem nos esquecermos da sofisticada trilha sonora de O Bom, o Mau e o Feio, vamos ficar apenas em um exemplo, nos referindo a uma das mais emocionantes cenas de violência na filmografia de Sergio Leone, justo em O Bom, o Mau e o Feio, quando o feio Tuco é torturado pelo mau Angel Eyes para que revele o lugar onde está enterrada a caixa com os duzentos mil dólares. Enquanto a longa cena de cinco minutos de cruel tortura vai acontecendo lá dentro, a tristíssima melodia The Story of a Soldier vai sendo tocada pela orquestra aqui fora, no pátio. E o close fatal. Violino e violonista choram.

Em suma. Era uma Vez no Oeste é a consagração de uma trajetória feita de inspirações, ousadias, parcerias, aprendizagem e tenacidade comercial, quando Sergio Leone consegue do estúdio de Hollywood dinheiro suficiente para executar um filme de grande alcance artístico e exigente acabamento técnico. É um presente para todos aqueles que adoram filmes de faroeste, e também para aqueles que gostam de grandes filmes, independente do gênero. Sergio Leone, em poucos anos, quis fazer com Era uma Vez no Oeste um resumo de sua obra ligada ao gênero faroeste. Com certeza foi além. Ofereceu-nos um filme que retrata uma época gestada por um processo doloroso de conquistas e glórias, intrigas e superações. Sergio Leone acertou em reproduzir realidades fotografadas nas suas mais vis situações, sem se preocupar com a rígida métrica dramática. Importava-lhe o voo criativo. A exuberância visual. A atmosfera teatral. Neste sentido, sua ousadia conspirou a seu favor. E assim nasceu Era uma vez…

   Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.