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 A reinvenção do velho Oeste

Por Antônio Roberto Gerin

Antes de falarmos do clássico ERA UMA VEZ NO OESTE (175’), direção de Sergio Leone, EUA/Itália (1968), cabe discorrer um pouco sobre este intruso gênero cinematográfico chamado faroeste, termo originado da expressão inglesa far west, lá onde as longínquas terras inabitadas esperam para serem ocupadas por aventureiros. A conquista do oeste, na segunda metade do século XIX, é fruto da expansão demográfica e econômica norte-americana, coincidindo com o fim da Guerra da Secessão (1861-1865). Com a política de esvaziar o Sul no pós-guerra, ainda um caldeirão socioeconômico em perigosa ebulição, suas populações foram estimuladas pelo governo de Washington a tomarem o rumo do Oeste, com promessas de terra fácil e riqueza com muito trabalho. E, óbvio, para o Oeste não foram somente os trabalhadores em busca de um novo lar. Os órfãos da guerra, os que tomaram gosto pelo manuseio das armas, e ainda os ressentidos com a vitória dos nortistas levaram para o Oeste seus rancores e seus sonhos de riqueza e, com eles, a bandidagem. Em terras distantes a Lei era ainda frágil, portanto, exposta a corrupções. É desta paisagem de aventuras, achaques a proprietários de terras, roubos de gado, morte aos índios, os bares com suas prostitutas, a posse fácil de armas, a procura por ouro e riquezas outras, sem contar a expansão das linhas férreas que ligariam o Leste ao Oeste, enfim, é deste imbróglio histórico que surgiria o faroeste, gênero cinematográfico que ajudaria a afirmar o mito da formação da nação norte-americana. E que seria uma das glórias financeiras de Hollywood por várias décadas. Nos anos 1960, já sofrendo de esgotamento, o faroeste, ao aportar na Itália, terra do espaguete, irá encontrar uma dupla do barulho que dará nova roupagem ao gênero. É deste encontro venturoso entre Sergio Leone e Ennio Morricone que o faroeste spaghetti se espalha febrilmente pelo mundo. E não há como falar de Era uma vez no Oeste sem retroceder minimamente no tempo e conhecer a “trilogia dos dólares” criada por Sergio Leone, uma feliz sequência de filmes de faroeste reinventado nos belos Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965), e no festejado O Bom, o Mau e o Feio (1966), que iriam desembocar em 1968 no espaguete ao alho e óleo Era uma Vez no Oeste.

É bom que se diga que quando se fala de faroeste fala-se de ficção, não de realidade. Isto quer dizer que a abundante violência mostrada em inúmeros filmes de bangue-bangue pertence ao mundo criativo dos roteiristas e diretores. Óbvio que houve violência no velho Oeste. Alguns de seus grandes pistoleiros ganhariam fama e se tornariam lenda, fornecendo muito caldo dramático para a construção de ótimas narrativas. Nesta transição da realidade para a ficção podemos pensar, como exemplo, em Billy The Kid. De fato, no mundo real, Billy the Kid, morto aos 21 anos, alimentaria o imaginário norte-americano com suas bravatas e fugas espetaculares. Segundo um jornal de Santa Fé, Novo México, Billy The Kid teria matado 21 homens. Na verdade, afirmam os estudiosos, fora bem menos que isso. No entanto, o que interessa é a lenda. Sua fama percorreu o tempo, e hoje, século XXI, uma de suas duas fotos conhecidas, tirada em 1878, mostrando Billy The Kid jogando críquete, tem seu valor estimado em cinco milhões de dólares! Sem falar do ressentido sulista Jesse James, famoso pela rapidez no gatilho. E Wyatt Earp, que espantosamente sobreviveria a vários tiroteios, o mais famoso deles o do Curral O. K., que viria a inspirar muitas produções. Wyatt Earp morreria de velhice aos 90 anos, de causas naturais, em 1929. Como se vê, o faroeste é um gênero que sobrevive de lendas, e como lendas não acabam, o faroeste tem motivos para permanecer ainda por muito tempo nas telas dos cinemas. E na memória dos fãs.

A estrutura narrativa de Era uma Vez no Oeste se divide em duas motivações dramáticas distintas, que caminham juntas, mas sem se tocarem, a não ser, evidente, no grande final. São elas a ambição e a vingança. Frank — o insuperável Henry Fonda — é o capataz do dono da famosa ferrovia que atravessa o Oeste rumo ao Pacífico. É pago pelo Mr. Morton (Gabriele Ferzetti) para proteger os negócios da companhia dos ataques de pistoleiros. Só que a ambição de Frank o leva para além de suas funções, criando pontos de tensão dos quais o roteiro vai, generosamente, se alimentar. Do outro lado aparece Harmônica — sempre ele, Charles Bronson —, que desembarca na estação com o único objetivo de se vingar. Só que saberemos disto, e das razões, mais adiante. Enquanto não executa seu plano, Harmônica se envolve na trama com a função de proteger Jill McBain — a exuberante Cláudia Cardinale — do facínora Frank. Frank acabara de matar a família McBain de olho em suas terras, por onde passará a ferrovia rumo ao Oeste. Nas terras de McBain, no meio do deserto, há água em abundância, necessária para as caldeiras que movem as locomotivas. Só que Frank não contava com uma surpresa. O viúvo irlandês Brett McBain (Frank Wolff) havia se casado com Jill, em segredo, um mês antes, em New Orleans, o que faz dela também uma Mcbain, portanto, herdeira. E por sorte, e azar de Frank, ela chega ao local logo depois das execuções. Frank agora precisa tirá-la também do caminho. É na proteção de Harmônica a Jill que se dará finalmente o decisivo encontro entre os dois pistoleiros, Frank e Harmônica. Mas aí já será o final do filme.

O roteiro de Era uma Vez no Oeste é aparentemente frouxo, sem conexão imediata de causa e efeito, mas trama tão bem urdida, e de consistência inquestionável, que o que poderia parecer um perigoso defeito torna-se uma surpreendente qualidade. E no meio desta aparente desconexão entre as cenas entra o terceiro protagonista, cuja função no enredo poderíamos até questionar, mas se o tirarmos, o filme, é certo, perderá parte substancial da sua carne. A introdução desta personagem permitiu a Era uma Vez no Oeste desgarrar-se de rótulos e alçar-se como um dos grandes filmes do cinema mundial, pois possibilitou aos roteiristas Sergio Donati e Sergio Leone envolverem a trama em uma tessitura complexa e ambiciosa, alcançando a proposta de fazer um compêndio das realidades do velho Oeste. A partir do momento em que o pistoleiro Cheyenne, este é o nome do terceiro protagonista, se junta a Harmônica na defesa de Jill, temos fechada a composição dramática do roteiro, portanto, sua concepção bem-sucedida.

Mas há algo em Cheyenne que vai além dos clichês dos heróis do velho Oeste. Ele é arredio, desconfiado, quase um romântico. Às vezes, um menino abandonado pelo destino. Pode-se considerar Cheyenne a mais humana das personagens criadas por Sergio Leone até então. Aliás, uma das características inovadoras do diretor foi trazer para o faroeste tipos bem humanos, ao alcance da nossa realidade. E Cheyenne seria, sem dúvida, o ponto alto desta busca. E ele está resumido nesta fala, quando se despede de Jill McBain. “Jill, você me faz lembrar minha mãe. Ela era a maior vadia de Alameda e a melhor mulher que já viveu. Seja lá quem fosse meu pai, por uma hora ou por um mês, ele deve ter sido um homem feliz”. Se Sergio Leone perseguiu o objetivo de humanizar Tuco (Eli Wallach) em O bom, o Mau e o Feio com relativo sucesso, Cheyenne proporcionou, na atuação monumental de Jason Robards, o surgimento de sua mais perfeita possibilidade, a de elevar Era uma Vez no Oeste à sua condição trágica, onde, num suspiro épico, a violência não desumaniza a história.

E cabe um necessário parêntesis para a atuação da exuberante Cláudia Cardinale. Ela trouxe para a trama a consistência da mulher como fonte de vida e de esperança em meio a uma terra de homens em constantes conflitos. Prostituta de New Orleans, chega a SweetWater (Água Doce) trazendo na personagem Jill respingos de uma Blanche DuBois. Mas diferente desta famosa personagem de Tennessee Williams, Jill desfila no meio dos homens com a segurança e a decisão que se espera da mulher que se sabe pronta para os embates da vida. E para fechar de forma pungente seu vigoroso perfil, cobre-lhe de honras e emoções a trilha sonora que Ennio Morricone soberbamente lhe oferece.

Algumas peculiaridades estéticas de Sérgio Leone chamam a atenção. O ritmo é a primeira. Nada de acelerar a cena, nada da verborragia hollywoodiana. Em Era uma Vez no Oeste foram dez minutos para apresentar os créditos iniciais, portanto, dez minutos esperando o trem chegar à estação. E sem diálogos. Enquanto as imagens vão contando a história de uma mosca e das gotas d’água pingando em um chapéu. O feio e o grotesco são outras características suas, próximas neste sentido das estéticas de um Pier Paolo Pasolini e um Bernardo Bertolucci. Seres normais, que não tomam banho, usam roupas rotas, botas empoeiradas, cabelos desgrenhados, barbados e desdentados, uma miríade de tons e feições escalavradas pelo tempo e pelo sofrimento. E mais. Sergio Leone dá aulas de tipos de revólveres, adereço assumidamente central em sua dramaturgia cinematográfica. Sem falar dos longos silêncios das cavalgadas e dos duelos. Os closes exaustivos fundindo-se com as paisagens em plano aberto, e mais do que tudo, a trilha sonora, desenhada para sugerir cada atmosfera, para acolher cada protagonista, numa soberba arquitetura musical a serviço da construção das cenas. As trilhas sonoras de Ennio Morricone antecediam as câmeras. Inspiravam o diretor. Guiavam os atores. E em Era uma Vez no Oeste Sergio Leone levaria esta prática ao extremo.

Outra obsessão artística de Sergio Leone eram os duelos, quase sempre o clímax dos bons faroestes. Só que o diretor pensava cuidadosamente cada cena de duelo, na busca da originalidade. É só começarmos pelo filme Por um Punhado de Dólares, quando vemos o duelo final entre Joe (Clint Eastwood) e Ramón Rojo (Gian Maria Volonté), cuja dinâmica de tempo e espaço se resume em quem primeiro carregará a arma vazia depositada no chão, diante de cada contendor. Em Por uns Dólares a Mais, Sérgio Leone avança na ousadia, caracterizada no confronto entre os dois caçadores de recompensa, o Pistoleiro sem Nome (novamente Clint Eastwood) e o Coronel Douglas (Lee Van Cleef). Talvez a melhor cena de duelo em um faroeste, mas sem necessariamente ter sido um duelo. Ao final do filme, o duelo decisivo se dará em um círculo, onde se encontram três pistoleiros, um deles, no entanto, como mero espectador. Esta observação nos leva para o próximo filme, a coroação dos duelos na filmografia spaghetti de Sergio Leone, O Bom, o Mau e o Feio, com o icônico duelo no cemitério de Sad Hill, em seu círculo central, agora com os três homens participando diretamente do jogo. Mas só na aparência. Ao tirar as balas do revólver de Tuco, Sergio Leone tira-o do duelo e resolve o impasse, permitindo o confronto direto entre o Bom (Clint Eastwood) e o Mau (Lee Van Cleef). E finalmente Era uma Vez no Oeste. Neste o duelo toma um formato épico, da vingança sagrada, onde cabem quase nove minutos de espera, com direito a flashbacks (a famosa cena do arco), em que a maldade, no seu sentido moral, é destilada na sua razão mais desumana possível. Harmônica vence Frank. O bem vence o mal. Afinal, é dever dos faroestes nos dar o prêmio da redenção, mesmo que o vencedor seja tão fora da lei (anti-herói) quanto o perdedor.

Último parêntesis. Se fizermos uma análise mais cuidadosa da trajetória de roteirização e direção dos quatro filmes que compõem a fase faroeste de Sergio Leone, vamos perceber uma interpenetração criativa entre estes filmes em sua sequência temporal, tanto do ponto de vista estético quanto da técnica. E esta é a pergunta que se pode fazer. Sem os três filmes anteriores, teria Sérgio Leone alcançado a excelência artística e técnica de Era uma Vez no Oeste? Se admitirmos que todo artista, com raríssimas exceções, passa por um processo de conhecimento e amadurecimento do seu ofício, vamos admitir que os quatro filmes têm que ser pensados em conjunto, e que caberia um estudo para identificar as interconexões entre eles. O que podemos adiantar é que, nos parece, não são poucas.

E por fim cabe falar um pouco da suntuosa parceria dos dois colegas de sala de aula, portanto, de mesma idade, Sergio Leone e Ennio Morricone. Faz-nos lembrar de outra parceria famosa, entre Ingmar Bergman e seu diretor de fotografia Sven Nykvist. Se para Bergman foi a fotografia, para Sergio Leone foi a trilha sonora que deu o diapasão estético de suas obras. Há pouco o que se falar de Ennio Morricone justamente do tanto que há para se escrever dele. É sabido que Sergio Leone fazia questão de prolongar certas cenas apenas para dar tempo de a música chegar ao seu fim. Sem nos esquecermos da sofisticada trilha sonora de O Bom, o Mau e o Feio, vamos ficar apenas em um exemplo, nos referindo a uma das mais emocionantes cenas de violência na filmografia de Sergio Leone, justo em O Bom, o Mau e o Feio, quando o feio Tuco é torturado pelo mau Angel Eyes para que revele o lugar onde está enterrada a caixa com os duzentos mil dólares. Enquanto a longa cena de cinco minutos de cruel tortura vai acontecendo lá dentro, a tristíssima melodia The Story of a Soldier vai sendo tocada pela orquestra aqui fora, no pátio. E o close fatal. Violino e violonista choram.

Em suma. Era uma Vez no Oeste é a consagração de uma trajetória feita de inspirações, ousadias, parcerias, aprendizagem e tenacidade comercial, quando Sergio Leone consegue do estúdio de Hollywood dinheiro suficiente para executar um filme de grande alcance artístico e exigente acabamento técnico. É um presente para todos aqueles que adoram filmes de faroeste, e também para aqueles que gostam de grandes filmes, independente do gênero. Sergio Leone, em poucos anos, quis fazer com Era uma Vez no Oeste um resumo de sua obra ligada ao gênero faroeste. Com certeza foi além. Ofereceu-nos um filme que retrata uma época gestada por um processo doloroso de conquistas e glórias, intrigas e superações. Sergio Leone acertou em reproduzir realidades fotografadas nas suas mais vis situações, sem se preocupar com a rígida métrica dramática. Importava-lhe o voo criativo. A exuberância visual. A atmosfera teatral. Neste sentido, sua ousadia conspirou a seu favor. E assim nasceu Era uma vez…

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O protagonismo da violência cotidiana

Por Antônio Roberto Gerin

É com orgulho por este grande momento do cinema brasileiro que devemos assistir a CIDADE DE DEUS (130’), direção de Fernando Meireles, Brasil (2002). Não cabe outro sentimento, que vai sendo fortalecido à medida que o filme se desenrola diante de nossos olhos. Está ali tudo o que há de melhor. O roteiro, a direção, a fotografia, o grande elenco e, para deixar tudo redondinho, no ritmo exato, a edição. Portanto, razões para assistir ao filme há muitas. De sobra. O que nos impacta é vermos retratada na tela uma realidade quase íntima de nós mesmos, este Brasil violento que nos assusta cotidianamente. E mesmo que estejamos morando a mil quilômetros de distância do Rio de Janeiro, a impressão que nos fica é a de que os tiros ecoam debaixo de nossas janelas. A violência, infelizmente, é uma componente da nossa civilização, e comungamos de seus horrores numa atitude de abissal impotência. A favela Cidade de Deus, década de 1980, transformara-se em um doloroso símbolo deste cancro nacional. O filme Cidade de Deus nos traz, numa construção artística quase perfeita, a dimensão dos horrores anunciados, onde a vida é um atributo meramente material, desprovida de toda sua essência divina. A ganância pelo poder vai triturando vidas ao longo do caminho, sem que nada se possa fazer, mesmo que gritemos para que o serviço público, na decisão do Estado e na ação da Polícia, venha frear a barbárie. Se ainda temos alguma esperança no papel do Estado como agente preparado para erradicar a violência, ledo engano. Ao assistirmos a Cidade de Deus, esta convicção cai, crivada de balas, por terra. Este é o grande mérito do filme. Colocar-nos, sem máscaras, dentro da nossa triste realidade.

A narrativa é construída a partir do olhar do protagonista-narrador Buscapé (Alexandre Rodrigues), o menino que cresce na comunidade Cidade de Deus, e vai presenciando, com sensibilidade, a transformação de um abrigo de itinerantes sem teto em um ninho de violência e dor. Tudo começa nos anos sessenta, início do assentamento Cidade de Deus, na periferia de um Rio de Janeiro que precisava expandir seu território para acolher os milhares que iam chegando à cidade maravilhosa, dentro do movimento migratório que o Brasil vinha conhecendo, principalmente nos anos 1950 e 1960. Junto com o crescimento da favela veio o crime, organizado por grupos que vão impondo o seu domínio através da violência sem limites. A maioria, jovens, marginais ao mercado de trabalho formal, que viam nos pequenos roubos, depois no tráfico de drogas, a oportunidade de ascensão social fácil e rápida. E o sentido de ascensão social para eles era a manutenção do poder sobre a favela e a capacidade de consumir o que desejavam, carros, joias e mulheres. Portanto, uma perspectiva de encaixe socioeconômico muito limitada. Sem uma estrutura funcional cidadã que os encaminhasse para a vida produtiva, não havia outra saída para a glória, mesmo que passageira, senão o crime.

O Trio Ternura, ainda nos anos 1960, apresentado nas figuras de Marreco (Renato de Souza), Cabeleira (Jonathan Haagensen) e Alicate (Jefechander Suplino), representa o crime incipiente, sem objetivos precisos, com uma leve tendência a copiar o espírito de Robin Hood. Levavam em consideração as dificuldades da comunidade, e por ela lutavam, em troco, evidente, de proteção. Mas a segunda geração, cuja trajetória ocupa a maior parte do filme, moleques que assistiam com admiração às peripécias do extinto Trio Ternura, serão os que, na década seguinte, vão levar o crime às últimas consequências, com suas barbáries e obsessões. O vale tudo, o poder como fonte de autopromoção, e o desvio moral, que logo desembocaria na amoralidade, são a tônica festiva de Cidade de Deus.

O outrora Dadinho (Douglas Silva), o menino precocemente perverso, irmão menor de Cabeleira, um dos Trio Ternura, é rapidamente absorvido pelos fáceis encantos do crime. Sua ambição, desde cedo, é ser dono da Cidade de Deus. Na base da bala, toma todos os pontos de venda de drogas instalados na favela, menos um, o do Cenoura (Matheus Nachtergaele), amigo do braço direito de Dadinho, Bené (Phellipe Haagensen). Dadinho, agora crescido e dono da Cidade de Deus, troca o apelido para Zé Pequeno (Leandro Firmino), numa clara atitude de autoconsciência de sua condição de jovem de baixa estatura, negro e nada belo. Para tornar-se definitivamente grande e poderoso, falta tomar o ponto do Cenoura, adversário à sua altura, traficante que se insere na comunidade mais pela simpatia do que pelo terror. Com a morte de Bené — aliás, numa sequência belíssima —, Dadinho está livre para conquistar o seu império. Está armado, assim, o último e mais violento confronto. Zé Pequeno versus Cenoura.

O roteiro, baseado no romance homônimo de Paulo Lins, lançado, com boa repercussão, em 1997, acabou sendo um dos grandes trunfos do sucesso de Cidade de Deus. É sabido que o roteiro passou por muitos tratamentos, até chegar ao décimo segundo, tratamento este escolhido para ser utilizado nas filmagens. Este esforço criativo para construir uma história real adaptada à linguagem do cinema prova que, se não se pode prever o sucesso, pode-se, a partir de um trabalho bem planejado, almejar um resultado artístico que deixe o produto bem perto do reconhecimento público. Tanto é verdade que, lido o roteiro, os produtores não tiveram dúvida do seu potencial de sucesso. Para um grande filme é importante que se tenha em mãos um grande roteiro.

Neste sentido, o roteiro de Cidade de Deus nos apresenta uma facilidade e uma ousadia. A facilidade está por conta de a trama se apoiar na eficiente técnica do protagonista-narrador. Para fins de clareza e ritmo, em Cidade de Deus, esta escolha narrativa foi fundamental. A própria construção da personagem Buscapé, jovem sensível, observador, que luta para fugir à criminalidade, morador da favela, vai facilitar, como testemunha ocular dos acontecimentos, que se coloque o espectador em íntimo contato com o que está ocorrendo diante de seus olhos. A narrativa flui, sem pontos cegos.  Enfim, a introdução do narrador vem dar clareza e força rítmica descomunal ao filme.

E a ousadia fica por conta da tessitura da trama. São várias narrativas que agem de forma paralela, apoiadas sempre em uma personagem central, portanto, várias personagens para várias narrativas, que se encontram pelos becos da favela, e se entrelaçam, e se explicam, conduzindo, com extrema segurança, a evolução aparentemente complexa, mas em nenhum momento confusa, da trama. Há uma cronologia linear, mas há outros tempos, que se atrasam ou se adiantam, veiculando informações essenciais para o entendimento do enredo, preparando o espectador para o grande clímax. Tudo o que é essencial é narrado. Na velocidade das imagens e na precisão artística da edição.

Para finalizar, não podemos deixar de falar de outra ousadia. A produção do elenco. Optou-se por contratar um elenco amador, moradores de favelas, que nunca tinham estado diante de uma câmera. A exceção ficou por conta de Matheus Nachtergeale. Fugir dos nomes consagrados, alheios à realidade das favelas, foi o grande acerto. Nada de teatralidade, nada de técnicas invasivas de preparação de elenco. O que importava era a verossimilhança, o representar o mundo real em que estavam inseridos, sem que as emoções, e até os diálogos, tivessem uma prévia e exaustiva construção. Neste ponto, o acerto foi brutal. Se a algum espectador interessar, remetemos ao documentário Cidade de Deus – Dez Anos Depois (68’). A partir deste documentário, temos uma clara ideia da ousadia na seleção e na preparação do elenco, meninos de favela que de repente se veem retratados, por eles mesmos, na tela. E tudo é tão real que, dez anos depois, a grande maioria continua na insana luta para se inserir no mercado produtivo. E mais. Ficamos sabendo que a quase totalidade do elenco, na sua maioria negros, não conseguiram espaço no mundo artístico. Este é o grande problema de um país em desequilíbrio, onde não há lugar para todos. Principalmente se for negro.

Em suma. Cidade de Deus é um filme que ficará para a história do cinema brasileiro como uma de nossas grandes inspirações. E nos deixa um legado. O cinema brasileiro poderia receber muito mais apoio, os talentos e forças criativas estão aí, por toda parte, à espera do apoio financeiro para colocar seus projetos em prática. E mais do que isso. Precisamos do cinema nacional para discutir nossa realidade. Realidade que vivenciamos, mas que só o cinema, retratando-a nas telas, nos dá a real dimensão do mundo em que vivemos, cotidianamente. Ademais, ao transformar nosso cotidiano em arte, estamos fazendo cultura.

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O homem comum como protagonista de si mesmo

Por Antônio Roberto Gerin

Interessante como este texto teatral, WOYZECK (1837), se mistura à biografia de seu autor, Georg Büchner. Não se trata, evidente, de uma autobiografia. Passa longe. Mas podia ter passado um pouco mais perto se Büchner, envolvido com a clandestinidade política, tivesse sido preso, julgado e morto, como viria a acontecer com alguns de seus parceiros de luta. E como aconteceu com o Woyzeck real, condenado e decapitado, em praça pública, em Leipzig, em 1824.  Se Büchner tivesse morrido, óbvio, não teria escrito Woyzeck, cujo fim trágico, o do Woyzeck real, muito impressionara Büchner. Mas Büchner conseguiu fugir a tempo, para Estrasburgo, na França, onde terminaria de se formar em medicina e se envolveria freneticamente com a escrita. No entanto, morre muito jovem, vítima de uma epidemia de tifo, aos vinte e três anos, em Zurique, na Suíça. Tão jovem e já autor de uma obra seminal, Woyzeck! Pois é. E, ainda por cima, inacabada. Morrera antes de terminá-la, e reside neste fato, talvez, o trunfo artístico de Woyzeck. Obra composta de vinte e cinco cenas, distribuídas de forma aparentemente aleatória, algumas herméticas, outras mostrando uma superfície literária ainda áspera, mas todas numa sequência trágica impecável. O texto Woyzeck permaneceria décadas sem ser publicado, e por uma razão espantosa. A tinta preta da letra miúda de Büchner quase desaparecera em boa parte das páginas manuscritas, tornando impraticável sua leitura. O irmão de Georg Büchner, Ludwig, que faria a publicação de parte da obra do irmão, em 1850, não incluiria, nas publicações, o texto Woyzeck. Somente em 1875, por uma feliz intervenção de um processo químico, levada a cabo pelo escritor Karl Emil Franzos, faria com que a tinta preta fosse realçada e trouxesse de volta as letras miúdas de Büchner, mesmo naquelas páginas em que a olho nu nada se podia ler. Tal façanha do destino aconteceria cinquenta anos após a morte de Buchner, ocorrida em 1937. Uma história fantástica, portanto, para um texto que pareceu ter nascido morto, mas que acabou por se tornar o texto teatral alemão mais montado no mundo.

No Brasil, Woyzeck recebeu várias montagens, com destaque para a de 2003, com Matheus Nachtergeale, de quem pegamos emprestado a imagem que ilustra esta resenha, e que teve a direção de Cibele Forjaz.

Georg Büchner desde cedo se transformara num jovem contestador, inquieto, atento aos desajustes sociais de grande parte da população, em uma época pós-napoleônica, uma Europa em rápido processo de industrialização, e o homem, uma casca vazia e maltrapilha, começava a se tornar apenas um número, sem amparo, sem assistência, consumido pela máquina produtiva, desesperançado, desprotegido por um Estado corrupto e ele próprio sem rumo, estas são algumas das muitas facetas de uma sociedade lucidamente captada pelo olhar genial de um Büchner que, pressentindo um mundo em transformação, onde o homem comum não ocuparia seu lugar de direito, fez da força poética de sua literatura um grito de alerta, grito precoce, mas que repercutiria ao longo do tempo, chegando até os nossos dias. É deste forno, apodrecido, cheirando a opressão e descaso, que nasce Woyzeck.

Como muitos autores, Henrik Ibsen e Federico Garcia Lorca, só para citar dois exemplos, Georg Büchner também se aproveitou de um fato da vida real para transportá-lo para uma obra de arte ficcional. Büchner, talvez a partir da biblioteca de seu pai, entrara em contato com uma publicação da história de Johan Christian Woyzeck, um jovem andarilho, um ser disfuncional que, órfão, perambula por uma Alemanha devastada pela guerra, alistando-se aqui e ali em exércitos que lhe oferecessem algum soldo. Dispensado, em 1818, por indisciplina, Christian Woyzeck retorna à sua cidade natal, Leipzig, onde conhece, na pensão onde viveria por algum tempo, a viúva e promíscua Johanna Christiane Woost. Fraco e sofrendo de delírios, ele tenta ainda buscar um espaço naquele mundo em que ser pobre era uma fatalidade. Mas Woyzeck tinha dificuldades em aceitar a desenvoltura sexual da amante, vindo a esfaqueá-la, em 1821. Preso, e após uma sequência de intervenções jurídicas, é condenado e executado, em 27 de agosto de 1824. Estava pronta a trágica história do soldado Woyzeck, para que o jovem escritor Georg Büchner lhe desse o genial tratamento artístico. Büchner, com toda sua sensibilidade social e existencial, traça um cruel retrato do homem daqueles tempos de início de século XIX, na Europa.

A estrutura narrativa adotada por Büchner, fragmentada em cenas independentes, transcende sua época, primeira metade do século XIX. Talvez uma obra nos moldes da poética aristotélica não resistisse ao tempo, se inacabada. Não foi problema para Woyzeck, texto caracterizado por uma construção literária inovadora, sem muito compromisso com as unidades de tempo e espaço. Podemos dizer que os descompassos emocionais do protagonista, com seus comportamentos fragmentários, a esmo, cercados de desvarios e desesperos, tenham facilitado Büchner na formulação da estrutura andarilha do texto. As cenas cabem em si mesmas, e, se destacadas do todo, não morrem, respiram, fortes, perenes. Este é o segredo básico de Woyzeck, e que lhe garantiu a sobrevivência artística, independente dos cânones literários da época. Os grandes autores do século XX vão sorver desta desconstrução técnica, tendo em Bertolt Brecht um de seus seguidores.

O trágico é a força que impulsiona o texto, de seu início, até desembocar no previsível, se assim podemos dizer, desfecho. Como em um quebra cabeça, podemos sentir a respiração ofegante da personagem em qualquer lugar em que esteja, encaixando-se à perfeição na perspectiva trágica planejada por Büchner. A vida pulsa, mas a morte permeia cada entrelinha, Büchner nos avisa. Eis um exemplo desta sutileza de estilo. Por Woyzeck. “… quando o marceneiro prepara as tábuas de um caixão de defunto, ninguém sabe quem será metido lá dentro.”. Woyzeck, um pobre coitado, como ele mesmo se reconhece, nada possui além de Marie, sua mulher e fêmea, que o troca por um símbolo de poder, o homem belo, o Tambor-mor, “um peito como um boi e uma barba como um leão”. Deste modo, nada sobra a Woyzeck. Tiram-lhe tudo. Resta-lhe tão somente a atitude derradeira.

O Woyzeck real de Büchner sofre algumas alterações na trama ficcional, e mesmo não tendo o compromisso com o tempo e o espaço, o autor posiciona a narrativa próxima à tragédia, e de uma forma inovadora consegue traçar uma realidade mitificada do estado emocional da personagem que, presa ao vazio existencial, e à condenação social, se rebela, mesmo que de forma esgarçada, contra aquele mundo que o oprime e nada lhe oferece além da miséria material e do julgamento moral. Abatido, Woyzeck mantém sua lucidez. Quando o Capitão questiona sua moral, por ter Woyzeck um filho sem a benção da Igreja, Woyzeck retruca. “Deus vai olhar para o vermezinho mesmo sem o coitado dizer amém antes de ser gerado.”. E diante da reação do Capitão à fala de Woyzeck, este continua. “A gente, os pobres… Veja, senhor capitão, o dinheiro, o dinheiro! Quem não tem nenhum tostão vai lá pensar na moral do mundo! A gente é de carne e osso. A gente é pecador neste mundo e no outro mundo. Eu acho que quando a gente chegar no céu, vai ser para ajudar a fazer os trovões.”. Estas palavras poderiam muito bem caber na boca de Büchner. E este nos parece ser o ponto mágico do seu texto. Talvez pressentindo a morte, que o rondava fazia anos, Georg Büchner se aproveitou da história trágica de Johan Christian Woyzeck, homem fruto de uma época de miseráveis, para perpetuar em obra de arte aquilo pelo qual ele sempre lutou. E tanto desejou. Que o homem, verdadeiramente, fosse dono legítimo do seu tempo e espaço.

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