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Um pesadelo chamado mãe

Por Antônio Roberto Gerin

MAMÃEZINHA QUERIDA (128’), direção de Frank Perry, EUA (1981), é baseado no livro homônimo de Christina Crawford, filha adotiva de Joan Crawford, e relata, sem muitas reticências, como era a mamãe Joan, uma das musas do cinema da época de ouro de Hollywood. Não é bem uma biografia. Não é a atriz e sua gloriosa carreira que importam aqui. Como atriz, sabemos, Joan Crawford teve uma trajetória memorável. Foi das poucas da sua época que transitou do cinema mudo para o cinema falado sem a menor cerimônia. Transformou-se, na década de 1930, na grande rainha da MGM, para depois ser reduzida a “veneno de bilheteria”, em função de sucessivos fracassos, já nos anos 1940. Já fora da MGM, ressurgiria para o Oscar de melhor atriz em 1946, com Alma em Suplício. E ainda teria outras duas indicações, 1948 e 1953. Personalidade difícil, mas que trazia dinheiro para os estúdios. Esta guerreira Joan Crawford merece um filme só para falar dela. Neste, em Mamãezinha Querida, o que interessa é a querida mamãe Joan, levada às telas dos cinemas a partir dos relatos da filha Christina. E é aí que o bicho pega.

Joan Crawford, nascida Lucille Fay LeSeur, é alguém com mania de limpeza — um grão de poeira invisível é motivo de transtorno —, com mania de ordem, nada fora do lugar, não tolera ser contrariada, portanto, não tolera a vontade do outro, é o centro e o epicentro, e as crianças pobres são tão importantes quanto os filhos (ou mais). Na cena do aniversário de Christina, esta obsessão fica pedagogicamente clara. Das dezenas de brinquedos ganhos pela mimada Christina (Mara Hobel), ela terá o direito de escolher apenas um. O restante irá para os orfanatos. No entanto, Joan Crawford, ao adotar o lindo e loiro bebê Christina, não imaginava que a filha fosse ter a capacidade (personalidade) de reagir aos comportamentos abusivos da mãe.

Houve muita polêmica quando do lançamento do livro, em 1979, dois anos após a morte da atriz. Veja que a filha nem esperou o cadáver esfriar. Não perdeu tempo para desfilar, em tapete vermelho, suas mágoas e suas verdades. Hollywood se dividiu entre se calar ou defender Joan. O certo é que Christina Crawford não poupou o passado. Ao assistir ao filme, fica claro que não há meio termo. O filme acontece entre as quatro paredes. E as paredes, às vezes, confessam.

As reações ao filme, à época, podem ser compreendidas a partir de várias razões, que vão além da qualidade artística do projeto. Aliás, o filme não é tão ruim quanto quiseram que fosse. Ao contrário, ele sobrevive até hoje, cercado de uma legião de fãs. A questão é que o filme toca em alguns aspectos essencialmente humanos, como a construção da pessoa a partir da sua infância, e mais, toca na construção idealizada do que é ser mãe. O que vemos é um ícone de Hollywood, encarnado na tela pela implacável — às vezes exagerada — Faye Dunaway, mostrando-nos uma Joan Crawford descontrolada, presa às suas obsessões. E, não raro, aos berros com a filha, às vezes indo a vias de fato, a ponto de tentar esganá-la. Algumas cenas assustam. O ódio parece se sobrepor ao amor.

O problema está na origem das verdades. É sabermos que aquela mãe Joan que está diante de nós é construída segundo a versão da filha. E este é o ponto. O que se leva para a tela é uma versão. Portanto, nunca saberemos ao certo a verdade sobre os comportamentos disfuncionais de Joan Crawford em relação à filha. Talvez seja mais seguro tomarmos a atriz apenas como um símbolo do cinema que lutou bravamente para construir algo que pudesse fazer sentido para sua vida outrora sofrida. Provável, lutar pela sobrevivência numa Hollywood competitiva tenha-a levado a excessos, onde tudo vale, inclusive destruir afetos. Como diz a criança Christina, ao ver que a mãe rasgara o rosto do namorado — o querido tio Greg — da foto em família. “Se ela não gostar de você, ela pode te fazer desaparecer.

A própria Faye Dunaway evita falar deste filme, já que vê nele uma performance negativa em sua vitoriosa carreira de atriz. Talvez esta atitude seja um pouco pessoal, e que não corresponde ao que hoje entendemos do filme. Está certo que algumas cenas beiram o histrionismo, com destaque para três delas. A cena em que Joan surpreende Christina em seu aparador. Aos berros, vai cortando os cabelos da filha. Ou após ser demitida da MGM, quando destrói, numa sequência de desvarios, seu suntuoso jardim de rosas. E ainda, já para o final, quando desafiada por Christina, que a acusa de estar mentindo, perde o controle e tenta sufocar a filha até a morte. Sem falar da quarta cena, a dos cabides, quase um festival de horrores.

Levando-se em consideração que hoje, neste século XXI, muito se fala e se discute sobre os abusos físicos e emocionais de relações parentais, a realidade retratada no filme bate à perfeição com o que vemos acontecer dentro e fora das quatro paredes. O mal ganhou as ruas, não há mais tanto pudor em admitir que esse tipo de crueldade sempre existiu. Neste aspecto, Mamãezinha Querida nos soa cruelmente moderno, e vem nos ajudar a entender um pouco mais os pontos de desequilíbrio nas relações humanas. E, óbvio, o que mais nos choca é que se trata de uma relação mãe-filha. Não devia chocar tanto, por se tratar da relação mais umbilical que existe, onde o risco de perpetuar nosso miserável legado é evidente. Basta reproduzir o que diz Joan Crawford, quando questionada pelo namorado Greg, pela maneira rígida com que trata a filha. Diz ele. “Ela é só uma criança.” “Eu também fui só uma criança!” – retruca Joan. Aqui está a chave da tragédia nas relações abusivas, quando insistimos em colocar nossos filhos como cópias da nossa história.

Para efeitos de ilustração, remetemos o espectador ao filme de Ingmar Bergman, Sonata de Outono, que trata do mesmo tema, a mulher moderna confrontada com as obrigações — e cobranças — de ser mãe. Em Sonata de Outono, os abusos são bem mais sutis, mas não menos cruéis. Como em Mamãezinha Querida, os sofrimentos daí gerados se perpetuam, impregnam a pele e arrastam suas vítimas para uma vida infeliz.

Neste aspecto, em seu início, o filme apenas pincela o quadro familiar destrutivo de onde a criança Joan Crawford veio. Mas o suficiente para emoldurar os comportamentos obsessivos adotados por Joan vida afora, seja como mãe, mulher ou profissional. Em se tratando de filhos, a quem negaremos o que não tivemos — o afeto —, criar-se-á na relação uma dinâmica em que os movimentos de troca se complicarão à medida que os filhos passam a refletir as fraquezas e carências dos pais. A pior coisa para Joan, crê-se, é se ver espelhada na filha.

Christina, por ser adotiva, traz uma genética diferente. Mas traz também a empáfia (a menina das respostas espertinhas), instrumento bastante útil para enfrentarmos a vida. E a autora Christina não esconde isto de si mesma. Vivenciou a relação com a mãe entre confrontos e submissões. A cada passo, a cada frase, a cada olhar, uma possível explosão. É nesta amplitude que o filme encontra seu valor, sua força e sua humanidade, porque é exatamente isto que ele nos mostra. E tanto fica verdadeiro, que a própria Christina não é apresentada no filme como a vítima, ao contrário, ela se torna o contraponto disfuncional de uma personalidade também insubmissa e na maioria das vezes conflituosa. O amor, ao longo do filme, paira no ar, mas sem conseguir realizar seu pouso definitivo. Até esperarmos que, com a velhice de Joan e a maturidade de Christina (Diana Scarwid), a relação se estabilize num patamar em que ambas acenem com o pano branco da rendição. O filme mostra um pouco disto, a trégua no final da vida. Até que a morte de Joan Crawford chega e Christina descobre que foi abusivamente deserdada. É quando o ódio retoma seu voo definitivo.

Em suma, é bom lembrar. Quanto menos os pais percebem as diferenças entre eles e os filhos, quanto mais obrigam os filhos a assumirem a sua origem, os seus gostos e valores, mais os pais tendem a ser abusivos. É quando eles confundem educação com supressão da individualidade.

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Por Alex Ribeiro

A Morte do Caixeiro Viajante é uma peça escrita por Arthur Miller, que estreou nos EUA em 1949, rendendo-lhe o prêmio Pulitzer daquele ano. É sua obra prima e, consequentemente, sua peça de teatro mais montada até hoje. Foi também adaptada para o cinema.

A peça conta a história de Willy Loman, um caixeiro viajante que passou a vida viajando para vender os produtos da companhia em que trabalhava, e que, de repente, começou a se ver velho, cansado, e com os filhos perdidos na vida, sem muita perspectiva de futuro.

Willy acreditava que se as pessoas gostassem dele e se ele conseguisse usar do carisma para convencê-las, poderia ser uma pessoa de sucesso. Foi o que ele ensinou aos filhos, Biff e Happy. O primeiro era superestimado pelo pai, que achava o garoto um fenômeno de carisma e por isso seria a tradução do próprio sucesso.

Porém, passados os anos, Biff está perdido, não consegue se firmar em nenhum emprego, e vive tendo momentos de conflito com o pai. Willy não entende qual a razão de o filho não ter se tornado um sucesso. Toda a fantasia que alimentara em sua vida vai por água abaixo.

Willy talvez tenha falhado em acreditar que o carisma, a bela aparência e a estima das pessoas eram suficientes para se construir alguma coisa na vida. Por isso a sensação, em alguns momentos, de que ele é muito orgulhoso e arrogante, e que um pouco de humildade teria sido útil na construção dos seus sonhos.

Hoje, nessa atual crise no Brasil, muitos de nós nos sentimos perdidos, com os sonhos ameaçados. Os Loman nos mostram que é preciso mais do que a aparência para enfrentar as adversidade e construir aquilo que queremos pra nós, seja em nível de país, seja no plano individual. Um sorriso bonito, uma maquiagem bem feita, gestos de simpatia, uma crença, nada disso é suficiente pra concretizarmos as verdadeiras mudanças. É preciso algo mais. É preciso ir à luta!

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Amar pode ser uma escolha

Por Antônio Roberto Gerin

MARTY (85’), direção de Delbert Mann, EUA (1955), além de ser um filme bastante premiado — entre as quatro estatuetas que ganhou, levou o Oscar de melhor filme —, traz algumas curiosidades que explicam o impacto causado pelo filme à época da sua exibição mundo afora. Dentre os feitos, podemos salientar alguns. É o filme de menor duração a ter ganho um Oscar. Foi o primeiro filme a ser exibido comercialmente na então União Soviética, em Moscou, em 1959, desde o término da Segunda Guerra Mundial. E ainda foi o primeiro filme norte-americano a ganhar a Palma de Ouro, em Cannes. Portanto, um filme com credenciais para ser incluído em algumas das listas de melhores filmes de todos os tempos. Mas, afinal, quem já ouviu falar de Marty? Quem conhece essa comédia romântica, protagonizada por um casal de simplórios, tidos como feios para os padrões hollywoodianos? Cuja timidez (de ambos) destoa das ousadias comportamentais dos nossos tempos? Nesta toada, seria Marty um filme datado, preso às amarras morais dos anos 1950? Pré-anos 1960, quando então alguns tabus seriam pulverizados na base da paz e amor? Não, Marty absolutamente não é um filme preso a uma época. Ele pode nos parecer óbvio e superficial. Flertar com a idealização de heróis e princesas. No entanto, o que o filme nos oferece vai muito além. Nele, a realidade é crua, sem disfarces, às vezes silenciosamente terrível. Marty compõe uma daquelas tocantes fábulas sobre o amor, raras de se ver em Hollywood. Mas é um filme definitivo, por uma simples razão. Marty não banaliza o real.

O roteiro é primoroso. Ambienta toda a narrativa dentro de uma situação social definida a partir dos arquétipos da tradicional família italiana, onde o casamento é tratado como uma situação inevitável. A atitude de não se casar será cobrada pela sociedade. Como se fosse um desvio de conduta. É dentro desta gaiola social que transita o desengonçado, simpático e solteirão Marty. Devemos incluir nos louvores ao roteiro simples e eficiente os diálogos velozes e espirituosos que se encaixam à perfeição dentro das situações dramáticas, tirando de cada uma destas situações sua força teatral máxima.

O solteirão Marty Pilleti, interpretado pelo premiado Ernest Borgnine, (receberia o Oscar de melhor ator das mãos de Grace Kelly), é um açougueiro trintão, tímido e antissocial, com baixa autoestima, de quem até os fregueses do açougue cobram-lhe o casamento. E, óbvio, isto o incomoda sobremaneira. Conformava-se já com a solteirice, quando, quase obrigado pela mãe, vai a um baile, onde conhece seu provável grande amor, a tímida professora Clara (Betsy Blair). Se falta beleza aos dois, sobra simpatia, sinceridade e cumplicidade. O encanto com que vão se descobrindo contrapõe-se às expectativas negativas da mãe e dos amigos, que não querem o namoro. Os amigos, porque perdem um companheiro de noitadas. A mãe, pelo matriarcal medo de perder o filho. Como estratégia, ela acusa a moça de ser feia, pobre e não italiana. Esse confronto aberto, que acontece já na parte final do filme, leva a um impasse. Temos a nítida impressão de que o fraco e inseguro Marty irá desistir do seu amor. Decepcionante. A pressão é tanta que chega o momento em que Marty terá que fazer a escolha. Clara está na casa dela esperando o prometido telefonema. Marty devia ter telefonado às 14h30. Já são 20h! E aí, Marty? Não vai telefonar não? Vai deixar que os outros façam a escolha por você? Este é o impasse. Para que o filme chegue a seu final, uma escolha terá que ser feita.

Marty passa a simbolizar o ser humano que toma para si as rédeas do seu destino, quebrando todos os laços que o prendem a uma vida de marionete. Ele precisa urgente recuperar o sentido da sua vida. Aqui reside a força do filme, que o faz permanecer na prateleira dos grandes clássicos. Apesar do bem definido arcabouço de circunstâncias sociais e culturais armado pela estrutura narrativa, no filme só uma coisa importa. Ele, Marty. Ele é o protagonista de si mesmo. O filme só existe porque Marty existe. Sem Marty, e sua essência humana, o eficiente eixo narrativo ficaria sem rumo. O filme é um prêmio para o espectador que em algum momento de sua vida sentiu a desesperada necessidade de tomar para si as rédeas da sua vida. E a que custo! O que nos leva a dizer que Marty absolutamente não é um filme datado, daqueles tempos dos anos 1950, em que as cartas eram antecipadamente marcadas. Marty é um filme para a vida. Um filme que vai além de nós mesmos.

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