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Por Alex Ribeiro

Lisístrata é uma peça do grande dramaturgo grego Aristófanes, escrita por volta do século V a.C. Ao contrário de alguns dos seus famosos contemporâneos, como os tragediógrafos Sófocles e Eurípedes, Aristófanes dedicou sua dramaturgia à comédia. Naquele tempo, a comédia surgia como uma manifestação popular e menos elitizada do teatro, onde os conteúdos remetiam à ridicularização de figuras de poder. Figuras estas como as dos políticos, filósofos, e até mesmo dos dramaturgos da época. Assim, a comédia acabava por cumprir uma função social bastante pungente, pois se utilizava do cotidiano das cidades-estados da Grécia para fazer uma análise ácida da realidade que as circundava, desmistificando e questionando os rumos que aquelas sociedades estavam tomando. As comédias de Aristófanes questionavam fortemente as relações de gênero e a Guerra do Peloponeso que, então, assolava a Grécia. O valor literário dessas comédias, que perpassaram os séculos até os dias de hoje, se dá pela atemporalidade dos seus questionamentos, e Lisístrata passa a ser, no século XX, uma obra de expressão e reafirmação do movimento feminista.

Lisístrata está diante de uma Grécia enfraquecida pela guerra. As invasões bárbaras estão cada vez mais próximas, e os homens, maridos dessa Grécia, estão se matando numa guerra que envolve as cidades de Atenas, Esparta, Corinto, entre outras. A atual situação faz com que a personagem principal comece uma mobilização entre as mulheres para encerrar a guerra. Ela articula uma grande assembleia, onde pretende alcançar uma solução que traga os maridos de volta para seus lares, com um acordo de paz selado entre as cidades. Na assembleia, comparecem mulheres de todas as cidades-estados envolvidas na guerra e, ao comprarem a ideia de Lisístrata, vão executar o plano de paz.

Por se tratar de uma comédia, Aristófanes se utiliza de meios engraçados para colocar o plano de Lisístrata em ação. Ela planeja uma greve de sexo até que a guerra se encerre e a paz volte a pairar pela Grécia. Poderia se tratar de uma simples brincadeira, mas, além disso, Aristófanes escancara o poder de articulação e organização das mulheres, que eram completamente subjugadas e excluídas das decisões importantes daquela clássica sociedade. Isso potencializa o empoderamento feminino da peça, revelando que, mesmo tendo uma única possibilidade de êxito, a mobilização feminina consegue alcançar o seu objetivo e trazer a paz para suas respectivas cidades.

Lisístrata passa a ser uma obra fundamental, não apenas pelo seu valor histórico e artístico, mas pela profunda capacidade crítica que contém sua dramaturgia. É a grande armadilha da comédia, revelando-se de maneira magnífica. Ao desarmar-nos no leve riso que oferece, ela nos arrebata com seu nocauteante poder de denúncia. O impacto que nos causa, ainda nos dias de hoje, faz alimentar as forças daqueles que esperam por mudança, ou que temem pela perda de direitos que lhes custaram muito a conquistar. Na figura da mulher grega, Aristófanes mostra que se há uma única possibilidade, ainda assim haverá como e por que lutar. Num Brasil como o nosso, Lisístrata é a voz que ecoa para além dos palcos. É a voz que nos encoraja a olhar e a lutar contra as nossas mazelas.

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A rainha que amava o saber

Por Antônio Roberto Gerin

A JOVEM RAINHA (106’), direção de Mika Kaurismäki, Alemanha (2016), como o título já diz, é mais um dos tantos filmes históricos que a humanidade cinematográfica já produziu. É a história roteirizada da vida da rainha Cristina da Suécia, que reinou entre 1632 e 1654. Não é uma rainha qualquer. Aliás, diga-se, quem gosta de filmes históricos, ou da História propriamente dita, vai logo perceber que as mulheres rainhas, nos tempos em que realmente rainha era rainha, foram necessariamente grandes mulheres. E geralmente longevas em seus reinados. E a rainha Cristina não foi diferente, o que transforma o filme sobre a vida dela em alvo de interesse dos aficcionados por filmes de época. E os que “nem tanto” também poderão acionar o controle, afinal, trata-se de assistir à história de uma mulher bastante peculiar, a rainha que amava mais o conhecimento que o trono.

E talvez o problema do filme resida justamente no que foi colocado acima. A rainha Cristina é uma figura histórica tão poderosa e tão interessante, tão rica em elementos narrativos, que o roteiro, apesar de ser, junto com o figurino, um dos pontos altos da produção, teve dificuldades em montar um painel histórico abrangente. É sempre o mesmo dilema. Se se quer mostrar todo o reinado, a narrativa fica nas pinceladas. Se se quer mostrar apenas um aspecto da vida da personagem, ou um determinado período, corre-se o risco de perder a essência do todo. Mas tanto uma decisão quanto a outra, a parte ou o todo, se bem conduzida, não fará diferença nem incorrerá em riscos. Afinal, repetindo a máxima, filme baseado em fatos históricos não é aula de História.

A rainha Cristina (Malin Buska) era uma mulher culta, e isto não é pouco para as mulheres do século XVII, mesmo em se tratando de uma rainha. Ela tinha como seu grande interlocutor nada mais nada menos que René Descartes, que chegou a visitá-la, a pedido, em Estocolmo, onde ele, inclusive, viria a morrer de pneumonia, em 1650. Por ser católico em um país protestante, Descares fora insidiosamente enterrado em um cemitério de crianças não batizadas. A pacífica rainha era tão apaixonada pela cultura em geral e pelos livros em particular, que ordenou a seus generais invadirem Praga, pois ela sabia que lá existia um vasto acervo cultural que muito a interessava.

O segundo núcleo narrativo ocupa boa parte da trama. São as preferências sexuais da rainha. A corte especulava sobre tudo, a ponto de correr boatos de que ela era um ser intersexual, o que nada fora provado. A rainha Cristina se recusava a se casar, e este era o grande problema palaciano. Como se a primeira função de um reino é logo garantir o herdeiro. E não está errado, já que sabemos que muitos reinados, alguns seculares, acabaram melancolicamente pela falta de descendência. No caso da rainha, seus comportamentos sexuais era assunto de estado e de alcova. Cristina amava sua bela dama de companhia, a condessa Ebba Sparre (Sarah Gadon), que dormia com a rainha na mesma cama.

Terceiro núcleo. Qual seria o destino do reino da Suécia, já que não havia herdeiros? A Suécia era um país oficialmente protestante, enfiada até a alma na guerra em defesa de Lutero, e sua rainha cada vez mais decidida a se converter ao catolicismo. Tudo era incerteza naquele reino da Suécia. E os desdobramentos históricos viriam a confirmar estas incertezas.

É muita rainha para pouco tempo de filme. No entanto, a narrativa acaba cumprindo em boa parte o que pretende. Mostrar-nos, mesmo que em pinceladas, esta mulher de natureza apaixonante, que encantou sua época e marcou seu lugar definitivo na história das grandes personalidades. Só para atiçar a curiosidade do leitor, Cristina é uma das pouquíssimas mulheres a estarem enterradas no Vaticano. E isto porque não vamos revelar aqui o desfecho do filme, interessante quando entendemos que ninguém, em sã consciência, quer largar o “osso” do poder. Mas Cristina é uma rainha que foi além do trono.

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Por Alex Ribeiro

As Rãs é uma comédia do dramaturgo grego Aristófanes, escrita por volta de 405 a.C. Com uma criação produtiva, ele chegou ao número de 40 peças, porém, destas, só 11 resistiram ao tempo, chegando até os dias de hoje com reedições por todo o mundo. Pouco se sabe sobre a vida do autor, mas no período em que viveu houve grandes acontecimentos em Atenas, sua cidade-estado, e sua obra não poderia passar imune a esses acontecimentos. Com a recente morte do tragedista Eurípedes, Aristófanes, através de As Rãs, nos ajuda a situarmos a dramaturgia e a história daquele tempo, colocando tanto Eurípedes quanto Ésquilo, também falecido, no motor dramático da peça.

O deus Dioniso e seu escravo Xantias são os personagens principais de As Rãs. Os dois resolvem descer até o tártaro de Hades para trazer de volta à vida um dentre dois dos grandes tragedistas gregos que já haviam morrido, Ésquilo e Eurípedes. Nessa trajetória, as duas personagens, Dioniso e Xantias, cometem trapalhadas e revelam o ridículo, muitas vezes cotidiano, que se assemelham aos apresentados em inúmeras comédias a que assistimos hoje no cinema e no teatro. Os dois vão-nos mostrando que, desde o início do teatro ocidental, a empatia com os deslizes que cometemos em segredo é instrumento de riso usado pelos comediantes. Além disso, Dioniso e Xantias tecem inúmeras críticas aos dois tragedistas que foram resgatar, sem poupar, também, os costumes da época, as tradições religiosas e o próprio público. É uma crítica bem humorada de tudo o que acontecia naqueles anos, em Atenas.

Há, porém, algo muito significativo nas comédias gregas, sobretudo deste período em que As Rãs foi escrita. O que hoje chamamos de politicamente correto, e que muitas vezes irrita certos comediantes do nosso Brasil atual, naquele tempo não existia. Por quê? Não seria preciso. O público alvo das comédias, os personagens satirizados eram figuras notórias, como políticos poderosos, filósofos, os próprios deuses e até mesmo os grandes dramaturgos. Não se utilizava das fragilidades humanas para tirar o riso. As minorias, que naquele tempo eram quase todas as pessoas, com exceção dos homens ricos, não eram alvo de chacota.

Fazer comédia hoje, à luz da sua origem grega, desperta o questionamento sobre qual tipo de humor se pretende criar. Um humor corajoso, que não tem medo de criticar aqueles que exercem poder ou ocupam lugar de destaque, ou um humor mais cômodo (leia-se covarde), que é aquele que faz chacota com quem tem a voz sufocada pelas misérias e mazelas sociais a que estão submetidas? Portanto, caro leitor, poderíamos mudar Politicamente Correto para Originalmente Correto? Parece-nos mais agradável. E didático.

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