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A intensa dor humana

Por Antônio Roberto Gerin

Em relação a seu primeiro texto teatral, Barrela, 1958, Plínio Marcos escreveria: “Juro por essa luz que me ilumina que nunca havia me ocorrido a ideia de escrever uma peça”. Plínio Marcos diz que sequer conhecia a grande dramaturgia nacional, tampouco a universal. Portanto, jamais, até então, passara-lhe pela cabeça ser dramaturgo. No entanto, impulsionado por um fato real, lido em jornal, sobre os crimes cometidos por um rapaz que se vingava dos malandros que o haviam currado quando estivera na prisão, Plínio Marcos, de tal modo impressionado com o ocorrido, viu-se na necessidade urgente de escrever algo a respeito. Despejaria no papel, em forma de diálogos, tudo o que sentia, com a visceralidade de quem se colocava no lugar do seviciado. Mal sabia ele que, ao optar pela forma dramática de escrita, estaria gestando sua primeira obra prima teatral. Ao mostrar o texto para Patrícia Galvão, aquela mesma, Pagu, a intelectual que se tornara o símbolo do movimento modernista de 1922, e que à época, 1958, morava em Santos, o jovem Plínio Marcos receberia dela o elogio de que seus diálogos eram tão vigorosos quanto os de Nelson Rodrigues. Com o incentivo de Pagu, Barrela estrearia em 1º de novembro de 1959, no Centro Português de Santos, por uma noite apenas, uma vez que o texto já havia sido previamente censurado. Do inebriante sucesso da estreia lembra-se o autor. “Ainda trago comigo os sons dos aplausos daquela noite”. Sequer poderia imaginar o que o esperava na década seguinte, com suas obras primas que sacudiriam o cenário cultural, levando seus inovadores textos a serem esmagados, por anos a fio, pelos coturnos da ditadura militar. Como reação ao sucesso daquela noite de 1959, Plínio Marcos se viu em meio a um tiroteio de calúnias, sendo um dos rótulos preferidos chamá-lo de comunista. Vale lembrar que estes chavões autoritários pertenciam ao ano de 1959, bem antes de 1964 — ano em que se instaurou no Brasil a ditadura militar —, o que nos leva a supor que o ovo da serpente demoraria um bom tempo para ser chocado. Plínio Marcos ainda tentou levar Barrela para os palcos em 1968, mas o texto seria censurado após dois meses de ensaio. A personalidade independente de Plínio Marcos, protegida por sua irreverente persistência, fez com que ele não se dobrasse ao destino. E ao assim proceder, fez-se o artista genial.

Barrela compõe-se de uma única cena, sem interrupção de tempo e espaço. A trama se passa em uma cela de prisão, onde dormem seis presos, Tirica, Portuga, Bahia, Fumaça, Louco e Bereco, quando então Portuga, já madrugada, assustado por algum pesadelo, começa a gritar e acorda todo mundo. A partir deste fato corriqueiro, a trama vai se deixando levar por uma estrutura muito bem delineada por Plínio Marcos, afinal, ele sabia exatamente o que queria dizer e aonde chegar. Portanto, sustentado por uma evolução dramática verossímil, o encaminhamento feliz da trama segue firme rumo a seu desfecho, quando chega a hora de entrar na cela o novo preso, o Garoto, o principal alvo dramático do autor. Nada estava programado para acontecer naquela minúscula cela de prisão, até que a caneta frenética de Plínio Marcos se utilizasse de um mote poderosíssimo, a sexualidade, para dar vazão aos instintos mais brutais do ser humano. Plínio Marcos, com sua natural habilidade, conseguiu chegar aonde pretendia. Seria Barrela seu inesperado encontro com o teatro.

Vale lembrar, antes de entrarmos propriamente na análise do texto teatral, que quando Plínio Marcos declarara ter ele sentido incontida necessidade de escrever sobre o fato real ocorrido com o rapaz, e que tanto o impressionara, a compulsão pela escrita o levaria diretamente para o teatro, como única forma artística plausível para se chegar à catarse da dor. Ele precisava da força mimética do drama, posto que a realidade estava ali, urgindo para ser contada. Isto prova que todo conteúdo precisa da exata forma para se transformar em arte, e este é um dos mistérios que envolve o ofício do artista. Eis uma condição que a arte impõe e que merecia de especialistas profundas especulações. O processo artístico, ao ser espontâneo, nasce com a benção da beleza e da verdade.

E ainda complementando a análise acima, cabe lembrar que muitos anos depois Plínio Marcos retomaria a tragédia da curra, que é quando todos estupram um, ao escrever, talvez com o espírito já pacificado, e se valendo agora da narrativa, portanto, o romance, para escrever Querô, Uma Reportagem Maldita. Nesta premiada obra, ele revisita de forma mais demorada e explícita a dor da curra sofrida pelo rapaz anos atrás. É perceptível que a demanda interna do artista era outra e, portanto, outra seria a forma a ser utilizada.

A principal habilidade de Plínio Marcos, e que concorreu para o belo resultado final da obra, foi ter o autor paciência para introduzir a temática principal da narrativa, a barrela (gíria para curra). Antes, tomando mais de dois terços do texto, o autor trabalha um outro conflito, também de base sexual, e que logo se saberia, fora fruto também de uma curra. Este fato, acorrido no passado, prepara a entrada do grande e doloroso evento.

Portuga traz à tona o abuso sofrido por Tirica, na infância, no reformatório. Em torno da raivosa disputa entre Tirica e Portuga circulam Fumaça e Bahia, cujas funções na estrutura são, como se diz na gíria, botar lenha na fogueira. E fazendo o coro de uma voz só, mas totalmente eficiente, o Louco, que nos momentos de maior tensão, incendiando a libido, apenas repete “enraba, enraba!”. E do outro lado Bereco, o chefe, tentando frear a tensão. Ao estabelecer estas dinâmicas, Plínio Marcos não vai precisar recorrer a artimanhas de carpintaria dramática para solucionar o desfecho. Quando o garoto entrar na cela, a adrenalina e a testosterona estarão acumuladas no limite da agressividade, bastando apenas dar encaminhamento ao ato máximo. Esta é a estrutura eficiente adotada por Plínio Marcos em seu texto teatral.

A luta intestinal, por envolver vários contendores, é desenhada por uma estrutura de poder necessariamente frágil, e ao mesmo tempo ágil, posto que muda de intensidade e de polos o tempo todo, deixando pelo caminho o rastro previsível da tragédia. Plínio Marcos sabidamente tinha plena consciência dessas nuances nas disputas pela supremacia do mais forte e do mais esperto, explicitamente típicas nos meios da malandragem, e que o autor tão bem conhecia. Tanto que o texto se define pela seguinte fala da personagem Bahia, que se posiciona num dos lados da contenda. Assim diz Bahia a Tirica quando este jura Portuga de morte por ter colocado em cheque sua sexualidade: “Vê lá. Se não confirma, se dana. Não vai fazer nome de homem nunca mais”. Está esculpida nesta frase a marca da reviravolta na trama. Estava decidido. Para recuperar sua imagem de macho, Tirica teria que matar Portuga. E Plínio Marcos nos avisa desta sina pouco adiante, pela voz de ameaça de Tirica quando Portuga diz pretender no dia seguinte mudar de cela para se livrar das ameaças do outro. Diz Tirica, anunciando os fatos. “Ainda vai correr muita água debaixo da ponte, antes de chegar amanhã”.

Ao dizer a frase acima, é introduzido na cena teatral o objeto que corporificará a ameaça, projetada na realidade objetiva, não na introspecção da alma. A alma apenas é avisada do que vai acontecer, como se ela, com sua história carregada de misérias e dores, estivesse apenas à espera de ser vingada. A alma transfere para o corpo toda a responsabilidade do crime e esta atitude é uma marca na dramaturgia de Plínio Marcos. É o cabo da colher que Tirica, mordiscando sua vingança, vai afiando no cimento da cela, até transformá-lo em estilete. O crime se anuncia. “O ferro já está quase afiado”, diz Tirica a Portuga. Veja que Plínio Marcos desloca lentamente a cena para seu limite. Deixa tudo bem armado, mas pedindo um novo fôlego dramático, sem o qual o texto cairia em triste impasse. Mas Plínio Marcos, mesmo que intuitivamente, previa este impasse. Aliás, precisava dele. Então, como que um deus ex machina, sob o ranger do ferrolho, entra o Garoto.

Em suma. Plínio Marcos, moldado pelo sucesso inesperado, que o fez levar ao extremo a sua arte, angariando o respeito e a admiração de todos, cooptando em torno de si a classe artística na defesa de seus textos censurados, acabou desenvolvendo no homem artista uma certa autopercepção de genialidade e sentido de seu fazer artístico, inclusive se colocando numa posição de superioridade, escapulindo às vezes uma vaidade despropositada. Este era Plínio Marcos, vivendo como uma personagem dentro da sua arte. Confundia-se nela como inspiração de vida. Quando perguntado pelo amigo Nelson Rodrigues por que se achava o melhor autor de teatro do Brasil, o espirituoso dramaturgo santista não deixou por menos. Assim respondeu a Nelson Rodrigues, numa atitude de pretensa espontaneidade. “Por que eu copio os seus defeitos”. Sim, para construir a sua arte, Plínio Marcos não fez outra coisa senão copiar defeitos. Trazer à luz as imperfeições. Revelar o que permanecia oculto. Barrela seria só o começo da construção de sua genial dramaturgia.

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O mundo entre quatro paredes

Por Antônio Roberto Gerin

Antes de falar da obra de Plínio Marcos, é preciso, necessariamente, inevitavelmente, falar do homem Plínio Marcos. Nasceu em Santos, em 1935, cidade portuária, portanto, um submundo a céu aberto, onde viveu, transitando freneticamente por muitas profissões, de soldado a biscateiro, de camelô a operário, até jogador de futebol, convivendo com malandros e estivadores. É desta rica passagem pela vida que Plínio Marcos tira o sumo terrível para compor sua bela e pungente dramaturgia. Foi surpreendido ainda jovem com o primeiro sucesso quando fazia parte de uma trupe circense — era o palhaço Frajola —, e principiava ainda nos segredos da dramaturgia. Barrela é seu primeiro texto, escrito em 1958, e encenado em Santos, no ano seguinte, com grande sucesso. Teve apenas uma apresentação, pois no dia seguinte o texto seria engavetado pela censura. Plínio Marcos era homem que conhecia todos os desvãos e dores do submundo real, povoado de marginais, ladrões, estelionatários e caloteiros, prostitutas e cafetões, bichas, como se dizia à época, carregando na palavra o nojo do preconceito, enfim, uma microestrutura social desnudada por ele, mas inspirada em uma estrutura maior chamada Brasil. Plínio Marcos dizia que escrevia textos curtos, e muito depressa, porque escrevia “com raiva, com muita raiva do estado em que se encontra o povo brasileiro, da omissão dos políticos diante dos problemas”. Antes de Navalha na Carne, tinha já escrito uma de suas mais exuberantes obras, Dois Perdidos numa Noite Suja, levado ao palco em 1966, na Galeria Metrópole, em São Paulo. Mas seria Navalha na Carne, cercada de grande expectativa por seus problemas com a censura, o texto que faria Plínio Marcos romper de vez o anonimato e se consagrar como um dos grandes autores teatrais do Brasil.

Pelo simples fato de trabalhar em seus textos com temáticas tão explosivas quanto a prostituição, a cafetinagem, a miséria, o grito de dor através de palavrões, a marginalidade contraposta a um sistema de exploração, enfim, ao trazer o submundo à luz do dia, Plínio Marcos se viu envolvido em duros embates com a censura da ditadura militar, época em que, num espaço de 21 anos, o dramaturgo construiria boa parte de sua literatura dramática. Neste contexto, Navalha na Carne traduz bem a luta da cultura contra a censura, retratada nas dificuldades de se liberar o texto — luta encampada à época por Cacilda Becker e pela própria Tônia Carrero — para a montagem, primeiro, paulista, depois, carioca. Seria no Rio de Janeiro, em 1967, com direção de Fauzi Arap, Tônia Carrero no papel de Neusa Suely, que o sucesso viria com toda força. Infelizmente, esta bela festa do teatro não duraria muito tempo. Rápido o espetáculo seria censurado e o texto Navalha na Carne só voltaria aos palcos 13 anos depois.

A dinâmica teatral de Navalha na Carne se apoia em três personagens que se encontram dentro de um quarto de pensão de quinta categoria, onde mora a prostituta Neusa Suely. Ela recebe diariamente a visita do seu cafetão, Vado, que vem buscar o dinheiro que ela todos os dias deposita sobre o criado mudo. Só que hoje o dinheiro não está onde deveria estar. Vado espera Neusa Suely chegar da zona para cobrar a sua parte. No entanto, ela jura ter colocado o dinheiro sobre o criado mudo, e para provar sua inocência, desconfia de Veludo, a “bicha” que cuida da faxina dos quartos da pensão. Ela lembra ter visto o menino do bar entrar no quarto dele. De onde teria Veludo conseguido dinheiro para pagar o sexo? Veludo é chamado à presença de Neusa Suely e Vado, e assim está formado o trio de personagens, em torno dos quais girará a tensão dramática que consiste em arrancar de Veludo a confissão do roubo.

A estrutura dramática se divide, ao longo do texto, em três confrontos básicos. O primeiro se dá entre Vado e Neusa Suely, quando aquele descobre que o dinheiro devido por ela não está sobre o criado mudo. O segundo confronto, mais complexo, posto envolver três polos, ocorre quando Veludo é chamado ao quarto sob a acusação de ter roubado o dinheiro. Ameaças e agressões físicas vão aumentando a tensão na busca da confissão. O achaque direto a Veludo, que se pressupunha seria feito pelo valentão Vado, acaba, numa lógica psicológica verossímil, sendo feito por Neusa Suely, a acusada inocente que reage ao tirar a navalha da bolsa para confrontar Veludo. Resolvido o conflito, mediante a confissão de Veludo, e com a saída deste, resta agora o terceiro e definitivo confronto entre Vado e Neusa Suely, num triste desnudamento do vazio existencial das personagens que têm no imediato do cotidiano sua única razão de existir. Neste confronto, mais verbal que físico, predomina, de um lado, a humilhação do macho à fêmea que se vê desprezada com a perda da beleza juvenil, e, do outro, a mulher Neusa Suely reivindicando afeto e sexo, portanto, o que ressurge da humilhação é a mulher fazendo valer sua condição de fêmea. Nada acontecerá fora das quatro paredes. Sonhos, projetos de vida, conquistas, nada existe. A vida se resume tão somente àquele quarto imundo de uma pensão imunda.

Vale acrescentar à explanação acima que os confrontos se estruturam a partir de um jogo dinâmico de forças que se revezam, criando um sistema interessante de domínio e sujeição. Em certos momentos, o sádico e machão Vado se vê subjugado pelo fracote Veludo e, em outros momentos, pela desamparada Neusa Suely. E estas dinâmicas criam maior ritmo e força sob a batuta de um diálogo enxuto e ágil, como se cada fala fosse um cuspe na cara.

Neusa Suely é a prostituta do dia a dia. Alimenta esperanças, aceita migalhas, acomoda-se a uma relação baseada na troca desleal de afeto por dinheiro, onde sentimento e respeito são moedas sem valor algum. Guiada pelo desalento, ela ainda tenta se manter em pé, cultivando vagas esperanças de que aquele homem grosseiro ainda lhe dê algum lugar ao sol. Nem que este lugar se resuma à cama! Enquanto não realiza seus pequenos desejos, Neusa Suely pertencerá a um mundo que não existe, porque ela não cabe na normalidade social de uma sociedade preconceituosa e excludente. Portanto, a única porta de saída ainda é Vado, que absolutamente não está disposto a abri-la, posto que, se abrir, sua masculinidade correrá sérios riscos. Em sua defesa de macho, a estupidez continua sendo sua máscara. E é com esta máscara que Neusa Suely se relaciona.

Veludo não nutre esperanças quanto a ser um indivíduo pleno de todos os seus direitos, um deles, o direito à felicidade. Ele apenas dá passos pequenos, cautelosos, para não cair no abismo, já que sua única realidade é satisfazer seus desejos mais imediatos, maconha e sexo. A agressão sem consequência é o símbolo maior de sua condição de ser invisível. E sua condição miserável é algo que vem do social, simbolizada na opressão ao excluído pelo preconceito. Não sendo forte, se recusa, com brio, a fazer o papel oposto. Com suas violências impuras, em Veludo a verdade é sacrílega, sem contudo ser pecadora.

Vado vai além da esquemática configuração de poder do macho sobre a fêmea. O poder existe, mas vacilante, desprovido de respaldo moral, o que nos faz perguntar que macho seria ele fora daquelas quatro paredes. Mas ali, no quarto imundo, ele atua para subjugar, não só psicológica, mas também fisicamente, com base na cultura machista de polo dominante e inquestionável. Na agressão física não se conversa, bate-se. É a destrutiva convicção do mais forte sobre o mais fraco, seja a mulher, o negro, o homossexual. Mas não é só o caso de bater em Neusa Suely pelo fato de ela ser mulher. Tampouco por ser Veludo um veado. A dramaturgia de Plínio Marcos está recheada de subjugações físicas, inclusive entre homens heterossexuais. Tonho sobre Paco, em Dois Perdidos numa Noite Suja, é um exemplo. Aqui, no entanto, trata-se de defender o espaço miserável onde o macho, em atuação covarde, se esconde.

Outra característica da dramaturgia de Plínio Marcos é a não existência de vida pregressa. Não existe o divã da classe média. Tampouco memória. A personagem se define e atua pelo que ela é hoje, pelo que ela precisa no imediato. O aqui e agora é que importa. E se impõem. É sempre a dinâmica corrosiva de relações em torno de alguma vantagem, no caso o dinheiro, ou em torno de alguma necessidade, no caso a fome, o sexo, o vício. E como pano de fundo destas migalhas de vida existe a busca desesperada por afeto, atenção e colo. Mas aqui se trata, o afeto, de algo abstrato, portanto, não imediato. A fome, tem-se que matá-la agora. A carência afetiva, bem, esta pode esperar, quem sabe seja satisfeita em algum lugar, ao longo do tempo, num beijo casual, num sexo comprado. A única coisa que não se permite é olhar para trás.

Se falta o sentido de história, sobra a consciência de sua condição humana inserida em um mundo que pouco dá e tudo pede. E esta consciência se reflete à perfeição quando Neusa Suely se pergunta. “Será que somos gente?”. Esta nos parece ser a condução existencial da dramaturgia de Plínio Marcos. Personagens que não se encontram em lugar algum, como se não existissem fora de si. Personagens que não se reconhecem na sociedade da qual, como cidadãos, deveriam fazer parte. Transitam, exilados, pela vida.

Em suma. O imediatismo do existir tem sua relevância cênica em conflitos que giram em torno de objetos com alguma função na vida pessoal da personagem, e que se expandirão na função social, fim último do conflito. Talvez o exemplo de objeto mais clássico na dramaturgia de Plínio Marcos sejam os sapatos de Paco, em Dois Perdidos numa Noite Suja. Em Navalha na Carne, a navalha é só um símbolo de poder passageiro, posto que o poder só existirá enquanto a navalha estiver na mão. É o dinheiro aqui o objeto cênico que serve para comprar o pouco de lucidez que se pode tirar daquela realidade sem sentido. No entanto, em momento algum, já está decidido, o dinheiro preencherá o vazio gerado pela condição humana indigente da personagem. O que vem confirmar que o teatro psicológico só cabe nas camadas sociais elevadas, onde conseguir o pão de cada dia não é uma ação urgente, já que está antecipadamente garantida, portanto, cabendo espaço para as dores da alma. No teatro social de Plínio Marcos só cabem as porradas do pão nosso de cada dia. É a navalha na carne.

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Por Alex Ribeiro

O Mercador de Veneza é uma comédia de William Shakespeare, publicada por volta de 1598, e encenada em 1600. Apesar de estar presente no primeiro bloco de peças do poeta, O Mercador pode ser considerada a peça que marcou a transição deste primeiro bloco para o período das grandiosas obras de Shakespeare, que duraria por incríveis 17 anos, em que ele viria a escrever suas obras primas. Assim como em suas outras comédias, a temática de O Mercador de Veneza é o amor. O dramaturgo quer mostrar a força enobrecedora do amor, e como este sentimento tem o poder de conduzir as suas personagens a ações elevadas, revelando características sublimes do humano. É dessa característica marcante em suas comédias que Shakespeare nos apresenta o primeiro pilar dramático do texto, presente na atitude da sábia personagem Pórcia. Nossa mocinha perdera o pai antes de poder se casar e herdara uma grande riqueza. Porém, Pórcia não se sente no direito de desrespeitar a antiga vontade do pai, a de se casar com quem desejar. A escolha do seu futuro marido terá de ser feita sob o véu da sorte, ou azar, dos seus pretendentes. Pórcia apresentará a eles três pequenas arcas: uma de ouro, outra de prata e a terceira, de cobre. Numa dessas três arcas está o seu retrato e é esta, portanto, a que deve ser escolhida. O pretendente que acertar em qual das arcas o retrato está, numa única tentativa de escolha, poderá se casar com ela.

O tema da escolha entre três amadas é muito recorrente na literatura, e tem um poder instigador e de imediata repercussão no leitor. O próprio Shakespeare voltaria a essa temática numa de suas obras primas, o Rei Lear, de 1605, onde o rei ancião pretere a terceira filha e causa a sua própria tragédia e a de todo o reino. Mesmo que em Lear, Shakespeare encaminhe a peça para a consequência do ato ingênuo do rei, temos a estrutura básica da escolha entre três mulheres, onde a terceira se mostra a mais virtuosa, portanto, a mais humilde. Só a título de curiosidade, podemos citar outras obras do conhecimento popular que têm como temática a escolha dentre três mulheres. Cinderela é uma delas, em que o príncipe escolhe a terceira de três irmãs. Na mitologia grega, temos o pastor Páris, que escolhe Afrodite, a terceira das três deusas que lhe oferecem proteção. Em O Mercador de Veneza não há três mulheres a serem escolhidas, porém, quando Pórcia apresenta as três arcas, ela quer testar como avalia e escolhe o pretendente que está diante dela. Aquele que souber identificar quais são os verdadeiros valores que ela preza terá direito à sua mão. A arca que representa Pórcia é a arca de cobre, a arca que se apresenta mais humilde, assim como é também o amor silencioso e humilde de Cordélia, a filha preterida de Lear.

O segundo pilar de O Mercador de Veneza se encontra na figura de um único personagem e que não ocupa a cena constantemente, a ponto de nem aparecer no último e quinto ato. É o judeu Shylock. Através dele, a trama pode ser desenvolvida. É ele o contraponto à força do amor. Ou seja, para onde o amor apontar, Shylock estará apontando para o outro lado. O velho Shylock é um usurário que, ao emprestar dinheiro ao mercador Antônio, permite que este patrocine a ida de Bassânio até Belmonte, onde se apresentará à bela Pórcia, como seu pretendente. A riqueza de Antônio está toda no mar, nas suas naus mercantes, não haveria como o mercador patrocinar Bassânio, seu grande amigo, sem recorrer a um empréstimo até que suas naus retornassem. Porém, Shylock estabelece uma multa, caso Antônio não consiga pagar no prazo. Uma libra de carne do corpo de Antônio é a multa. Para satisfazer os anseios de Bassânio, Antônio cede.

Por que um personagem tão mesquinho como Shylock é assim tão importante? É preciso recorrer à história para podermos entender. No final do séc. XVI, a Inglaterra passava por um forte sentimento antissemita, causados primeiramente, por uma trama política que envolvia o médico pessoal da rainha, o judeu português Roderigo Lopez, que fora acusado de conspirar sua morte e, consequentemente, enforcado em praça pública. Outro ponto histórico é a forte aversão aos judeus por fazerem empréstimos a juros, ao contrário dos cristãos que viam nisso uma forma de pecado. Estava desenhado o momento histórico propício para um vilão judeu ser apresentado por Shakespeare. Mas o grande poeta não aderiria ao coro vigente sem um senão. Shylock é construído por Shakespeare de uma tão perfeita forma, que ele se mostra totalmente humano. Capaz de despertar tanto sentimentos de aversão como de empatia. Tanto é repleto de humanidade, nosso querido e detestado vilão, que uma de suas falas é um dos mais famosos manifestos contra o preconceito, e que vale a pena citar:

“Ele me desgraçou, prejudicou-me em meio milhão; riu-se das minhas perdas, caçoou dos meus lucros, escarneceu minha estirpe, atrapalhou meus negócios, esfriou minhas amizades, afogueou meus inimigos; e por que razão? Eu sou judeu. Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, esquentado e regelado pelo mesmo verão e inverno, tal como um cristão? Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não nos rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cristão, qual é a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu, qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança, pois.” [O Mercador de Veneza, Ato III, Cena I.].

Logo se vê que, apesar de atender a um anseio de seu tempo, de ver retratado um judeu mau, Shakespeare tem o cuidadoso acabamento de o tornar tão humano quanto seus pares cristãos. E mesmo no momento em que ele se apresenta como o mais cruel ao não perdoar a dívida de Antônio e exigir o pagamento da multa, não deixa de revelar o quanto fora humilhado por Antônio, em outros tempos, pelo simples fato de ser judeu. Por essas razões todas, Shylock é o personagem que encontra as mais diversas e contraditórias interpretações nos palcos mundo a fora. Mas nada disso seria possível se esse personagem não fosse tão bem construído por Shakespeare.

Voltemos, então, ao amor, sentimento este sim o motor das comédias do grande poeta. Bassânio, patrocinado pelo empréstimo de Shylock, contraído por Antônio, chega a Belmonte e consegue fazer a escolha sensata, arriscando tudo pelo amor de Pórcia, escolhendo ali a arca de cobre. Com sua boda selada e se tornando agora mais rico que o próprio Antônio, Bassânio corre em socorro do amigo, para tentar livrá-lo do judeu. Antônio, que havia recebido a notícia do naufrágio das suas embarcações, estará diante do Duque para lhe ser cobrada a dívida. E é nesse mesmo juízo que a sabedoria de Pórcia se apresenta novamente avassaladora. Ela defende Antônio magistralmente e o livra da condenação.

No último ato, já livre da ação de Shilock, os casais se reúnem e só então fica claro que é do amor que se trata a peça. Além de Bassânio e Pórcia, nosso casal querido, Graziano, fiel amigo de Bassânio, se junta a Nerissa, criada de Pórcia. E a filha de Shylock, Jéssica, que havia fugido da casa do pai para viver com um criado de nome Lorenzo, também tem sua vida apaziguada depois do desfecho no tribunal em Veneza. Ela, que fora deserdada ao sair de casa sem permissão de Shylock, é beneficiada pela punição que o pai recebera no juízo, punição esta que o obrigou a dar a filha metade da sua riqueza. E temos então o triunfo do amor, mais uma vez, como de praxe, na comédia shakespeariana.

O Mercador de Veneza é uma peça que fala sobre o triunfo do amor, mas que ao mesmo tempo deixa uma pulga atrás da orelha. Nosso vilão, é tão vilão assim mesmo? É tão diferente de nós que podemos dirigir a ele nosso ódio, sem preocupação? É fácil eleger um inimigo comum e despejar sobre ele toda a destrutividade que nós humanos carregamos. Basta que ele não cause em nós nenhum tipo de identificação. Basta que nós o reduzamos a uma característica que é desprezível para nós. É assim que muitos grupos são reduzidos aos seus estereótipos, para que possam ser destruídos sem que seus agressores percebam sua crueldade. Afinal, o diferente não mereceria nossa empatia? Mas eis que Shakespeare traz uma profunda reflexão junto com seu Shylock. As nossas diferenças são tão pequenas e frágeis perto das nossas semelhanças, que não poderíamos dizer que somos uns e eles outros. Somos todos uma só coisa, mulheres e homens, com tantos equívocos e contradições que fazem parte da nossa humanidade. E se essa é uma peça sobre o triunfo do amor, esse amor não pode se valer para destruir o diferente, o judeu da vez. Porém, amar um Shylock é, sim, o que faz toda a diferença.

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