Central do Brasil

Um país à procura de si mesmo

 Por Antônio Roberto Gerin

É correto partirmos do pressuposto de que a arte, para sobreviver ao tempo, precisa da originalidade. Mas não basta ao artista ter uma boa ideia, apenas. Precisa, e muito, saber executá-la. Diria que o próprio Walter Salles, diretor de CENTRAL DO BRASIL (113’), Brasil/França (1998), e detentor do argumento original do filme, percebera o risco de não conseguir desenhar, ele próprio, um roteiro à altura da sua ideia. E a ideia, de fato, é original. Uma professora aposentada que escreve cartas, numa estação de trem, para pessoas analfabetas que querem entrar em contato com seus familiares e amigos. Sentindo o peso da responsabilidade, Walter Salles delegou a tarefa de alinhavar o roteiro a Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein. E eles, sem dúvida, deram conta do recado. Roteiro em mãos, a direção cuidou do resto. Junto com uma Fernanda Montenegro magistral, rodeada de um elenco afinado, o garoto Vinicius de Oliveira, Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nachtergaele, Soia Lira, o terrível Otávio Augusto, Stella Freitas e Caio Junqueira, como se vê, um elenco para ninguém botar defeito, uma trilha sonora eficiente, e a direção de fotografia de Walter de Carvalho, impecável, não teve como não resultar, Central do Brasil, em uma das grandes obras primas do cinema brasileiro. Era a retomada do cinema tupiniquim, após anos sofrendo de estagnação criativa. Não à toa, os aplausos ecoaram mundo afora, com a indicação às estatuetas do Oscar de melhor filme estrangeiro (o vencedor seria A Vida é Bela), e melhor atriz para Fernanda Montenegro, uma façanha e tanto neste acirrado e concorrente mercado de prêmios. Em noites de gala, Central do Brasil escrevia sua bela trajetória na história do nosso cinema. Cabe agora, ao espectador, revisitar esse orgulho da nossa sétima arte.

Isadora é uma mulher, professora aposentada, que nutre amarguras em relação à vida. Prende-se a um passado incompleto, ainda em busca de ressignificar suas relações afetivas com seu pai, já morto. Nesta conjuntura emocional, vem se ajustar à trama a história de um menino que tem como única obsessão conhecer seu pai. É este encontro, numa estação de trem, a Central do Brasil, na Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, que se estrutura toda a narrativa do filme.

A escolha do local, uma estação de trem, não poderia ser mais propícia para Dora colocar sua mesa e cadeira e passar o dia escrevendo cartas para pessoas que desejam se comunicar com seus entes queridos, na maioria das vezes distantes, na geografia e no tempo. A estação de trem, ou de ônibus, simboliza a separação, o distanciamento, a saudade. No entanto, Dora, na sua amarga insensibilidade, não está absolutamente preocupada com saudades e sentimentos de seus clientes. Tanto é verdade que ela dá três destinos às cartas destas pessoas estranhas que confiaram sua intimidade à escrevente. A maioria das cartas, ela rasga. Algumas, que mais lhe chamam a atenção, ela guarda numa gaveta, a que dá a alcunha de purgatório. E não se tem notícia, o filme não nos oferece esta imagem, de que ela tenha ido aos Correios postar alguma das prometidas cartas. A não ser em Bom Jesus do Norte, já no final do filme, redimindo-se de suas desonestidades, resolve entrar na agência do correio. Para Dora interessa apenas fazer um bico para aumentar a sua renda.

Ana, a mãe do menino, após pedir a Dora que escrevesse uma carta para o marido, em que manifesta os desejos do filho Josué em conhecê-lo, é atropelada e morta por um ônibus. Dora, a escrevedora de cartas, resolve assumir o menino e sua obsessão. Os dois partem juntos em direção ao nordeste brasileiro, para Bom Jesus do Norte, onde, pressupunha-se, morava Jesus, o pai de Josué. É a partir da estação de ônibus, no Rio de Janeiro, que o filme marca uma trajetória imagética, de cores vivas e duro realismo, numa exibição do exuberante, às vezes grotesco, sincrético e pobre interior do Brasil. É uma riqueza de culturas e vivências de um Brasil rico e desconhecido, que poucos filmes, desde Glauber Rocha, têm-nos revelado.

Talvez caiba aqui apenas uma análise, antes de encerrarmos esta resenha. E a discussão se coloca tendo como ponto de partida uma pergunta. Seria possível existir este filme, Central do Brasil, se o Brasil não fosse um país de analfabetos?

A produção do filme tem seu início na França, quando o produtor cinematográfico suíço Arthur Cohn, juntamente com Martine de Clermont-Tonnerre, entraram em contato com o roteiro e ficaram convencidos do potencial de sucesso do filme. Ora, só que o filme, cuja ideia fora gestada no Brasil, não podia ser ambientado na França, lugar de letrados, onde não seria possível reproduzir uma realidade cuja base de existência é a fala de um país de analfabetos. E mais. Um país de intensa mobilidade horizontal, migratória, onde só cabem o abandono da terra natal, a despedida de familiares, a distância, a saudade e o desenraizamento, movimentos estes comuns, e dolorosos, principalmente nos movimentos migratórios da segunda metade do século XX, ocorridos no Brasil, a partir do nordeste para o sul. Neste quadro de incomunicabilidades, escrever uma carta para um ente querido era a única forma de se agarrar às raízes perdidas.

Encerrando, cabe uma outra análise. Sem perspectivas de futuro para um país que até hoje não sabe o que ele quer para o seu povo, o filme nos leva a nos voltarmos para o passado. A saudade do pai morto, por Dora, e a obsessão por conhecer o pai (raiz), por Josué, atestam um saudosismo que preenche a falta de perspectivas de um futuro melhor. Para se alcançar um significado de vida, onde a concretude se alia a uma realidade fantasiosa, nada mais conveniente do que se locupletar com a corrupção e a desonestidade, pequenos movimentos imorais do dia a dia, mas que se tem nestes comportamentos duvidosos uma atitude de revolta. Esta, o filme nos mostra sutilmente, é a forma de ser do brasileiro. Que ainda, sente-se, não tem morada em seu próprio país.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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