Dogville

Quando a maldade se torna um bem comum

 Por Antônio Roberto Gerin

 DOGVILLE, (178’), direção de Lars Von Trier, Dinamarca/Suécia/EUA (2003), quebra com alguns paradigmas a que estamos acostumados quando se trata de concepção de cenários – interiores e exteriores. Dogville é uma cidade. Até aí tudo bem. Só que é uma cidade desse tamanho, minúscula. E, evidente, há habitantes. Contam-se nos dedos. Quinze adultos. Tirando-se aí as sete crianças. Uma cidade quase invisível, perdida nas montanhas, em algum lugar nos Estados Unidos. Não tem xerife, não tem prefeitura, hospital, escola, no máximo uma igreja, representada cenicamente apenas pelo topo do campanário. Portanto, há só casas. Poucas. Sem paredes. Sim, as casas não têm paredes. As paredes são traçadas a giz. As portas existem apenas na sonoplastia, quando os trincos são abertos ou fechados. Até o cachorro, Moisés, é desenhado a giz e só vive na sonoplastia de seus latidos. E as casas não têm teto. As tomadas de câmeras lá de cima envolvem toda a cidade, de onde o espectador poderá bisbilhotar o interior de cada casa. Aliás, enquanto a câmera passeia pela rua principal, focando alguma cena, podemos notar em volta e ao fundo os interiores dos lares e o que neles acontecem. Inclusive o sexo. Diante disso tudo, a que conclusão podemos chegar? Que se trata de um teatro a céu aberto. Daí o propósito de a cidade de Dogville ser tão minúscula. Ela tem que caber num palco. No caso, num enorme galpão, na Dinamarca, onde o filme foi rodado. Um teatro a que podemos assistir em casa ou nos cinemas, e sermos afetados pelas mesmas emoções a que estaríamos expostos caso estivéssemos sentados numa poltrona de teatro, presenciando tudo ao vivo. Esta é a grande sacada de Lars Von Trier. Ele tinha um propósito. Mostrar, a conta gotas, da forma mais pungente possível, os horrores humanos. Para isso, ele se utiliza dos recursos do teatro com o objetivo de trazer o público para bem pertinho do cotidiano da cidade. O público imerso na sua triste intimidade.

Então, vamos lá. Agora sabemos que é filme-teatro. Que não há paredes. E mais. Poucos móveis, o necessário, que não atrapalhe os movimentos das cenas. A câmera atravessa tudo, e nossos olhos caminham junto com ela. Nós presenciamos o que os habitantes fazem. Nos quatro cantos. Somos onipresentes. A câmera, totalmente livre, nos ajuda a discernir a terrível construção da narrativa. Os habitantes, não. Eles nada percebem. Estão cegos, presos a um cotidiano que os faz insensíveis às suas míseras condições. Moisés, o cachorro desenhado no chão da rua, poderia simbolizar a revelação, o anunciado do que está por acontecer, no entanto, cão não narra, portanto, para o que acontecerá em Dogville não haverá resposta. Resta aos pobres habitantes se enxergarem através de seu narrador que, ao criar uma semântica filosófica confusa, nos leva à beira do absurdo. O narrador suprime, em alguns momentos, a necessidade de diálogos para mostrar como a mente humana funciona diante de situações de ignorância ética.

A vida pacata de Dogville começa a se alterar com a chegada de uma bela e misteriosa mulher, Grace Margaret Mulligan, encarnada na beleza implacável de Nicole Kidman. Sabe-se que Grace chegara a Dogville fugindo de tiros ecoados naquela noite, montanha abaixo, e ouvidos por Tom Edison (Paul Bettany), jovem escritor que pretende escrever um livro, mas que, no momento, está mergulhado na dura tarefa de construir o que ele chama de rearmamento moral. O que isto significa jamais saberemos. Mas é com base neste seu comportamento de líder intelectual junto à comunidade, uma liderança titubeante, covarde e narcisista, que o filme encontrará seu ritmo, seu desregramento moral, sua evolução dramática, sua explosão trágica. Acompanhado de perto pelo onipresente narrador, Tom levará Grace ao inferno, permitindo e compactuando com os comportamentos imorais dos habitantes de Dogville. Tom teria uma escolha. Onde todos se salvariam. Mas ele é fraco e esconde sua fraqueza na omissão. Deixa que Grace, por quem está apaixonado, seja lentamente entregue aos cães.

A estrutura narrativa se divide em um prólogo e nove capítulos. O prólogo é utilizado para apresentar ao espectador a cidade de Dogville e seus habitantes. A partir do primeiro capítulo, vamos presenciar a evolução traumática do convívio de Grace com a cidade. Naquela mesma noite, logo após a chegada de Grace, entram pela rua principal da cidade alguns carros, ao estilo dos anos 1930, óbvio, procurando pela fugitiva. São gângsteres, logo se percebe, e agora fica claro para Tom de quem ela está fugindo. A partir daí, a motivação narrativa de Dogville torna-se óbvia. Em troca de acolhimento por parte da cidade, assustada e apreensiva com a inesperada visita dos gângsteres, Grace terá que prestar serviços domésticos de casa em casa, dia após dia. No entanto, a cada visita da polícia à procura da fugitiva, aumenta a tensão. E o jogo de barganhas, eufemismo para a palavra maldade. Eis a proposta existencial do filme. Mostrar como o poder induz o ser humano à maldade. Aos desvios de conduta. Somos um vulcão querendo eruptir! Com o poder nas mãos, eis a oportunidade! E o filme, dentro de sua estrutura e proposta, só se viabiliza em função do comportamento covarde de Tom. Ele é um biombo de vidro transparente, através do qual o espectador poderá observar, atônito, a podridão humana.

A maldade exala do filme de uma forma tão asquerosa que nos leva a nos perguntarmos se é assim mesmo que somos. E aqui está toda a questão. Quando encontramos a maldade diluída no dia a dia, manifestando-se aqui e ali, individualmente, ou em pequenos grupos, parece que estamos protegidos dela, podemos ver a maldade lá longe, fora do nosso alcance, de preferência nos noticiários. Chegamos até a nos acostumarmos com ela. E, de tão corriqueira, nos parece inofensiva. Assassinatos? Têm aqueles que matam. Roubos? Têm aqueles que roubam, estupram, escravizam… Só que quando a maldade se torna coletiva, aí a coisa muda, radicalmente. É quando nos inserimos nela. Fazemos parte da prática do mal. Eu faço a maldade, o vizinho também faz a mesma maldade, a minha cunhada, o amigo, e assim o que era apenas uma maldade identificada como tal, torna-se uma conduta coletiva, portanto, aceita, portanto, desprovida da sua essência moral. Tiramos de nós mesmos a responsabilidade da prática do mal. Esta responsabilidade não existe porque, naquele momento, não existe, aos olhos de todos, a maldade. Este é o horror da desumanidade! É quando adulteramos o indivíduo como entidade íntegra e inoculamos nele uma percepção inútil de certo e errado. Dogville traz isto com toda clareza. E caso o espectador queira se aprofundar, através da arte, nesta realidade tão ao nosso alcance, indicamos uma peça de teatro, de Friedrich Dürenmatt, A Visita da Velha Senhora (1956), peça com a qual Dogville divide muitas semelhanças, em especial na construção do perfil psicológico de Tom e Schill. Ambas as obras nos ensinam o que é tomar uma atitude de maldade como padrão de convivência aceitável. É quando não existe mais a humanidade e, sim, apenas a carcaça dela. É que o homem, já morto, se antecipou à morte de si mesmo. Ele não é mais uma entidade espiritual. Apenas um punhado de ossos despreparados para viver. É desta forma que o trágico se anuncia.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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