Encouraçado Potemkin

 Uma ficção real

Por  Antônio Roberto Gerin

O filme O ENCOURAÇADO POTEMKIN (73’), de Sergei Eisenstein, Rússia (1925), é, antes de tudo, um clássico. O resto, o que dizem dele, nada altera esta condição. O filme é panfletário? Ideológico? Não. Por uma razão simples. Se é arte, não é panfleto político, pois, se é panfleto, não será arte. São propostas incompatíveis, mesmo que o filme, neste caso, venha a tratar de uma temática profundamente política, a revolta de um povo contra a opressão sem limites de um regime secularmente implacável. Agora, querer encontrar no filme propósitos de propaganda política é forjar uma ideia de arte com a qual Sergei Eisenstein não compactuava. O propósito do diretor era outro. Mostrar a realidade cotidiana do humano dentro do conceito do oprimido versus opressor, mesmo que este conceito viesse a servir, como uma luva, ao ideário revolucionário russo. A forma desmedida com que a milícia czarina reprimiu, em junho de 1905, o apoio dos cidadãos de Odessa à revolta dos marinheiros do navio de guerra russo Potemkin revela que, independentemente de onde sopram os ventos, o poder sem limites tem que ser combatido, sempre. E a Rússia daqueles tempos, tardiamente ingressada no sistema de produção capitalista, e que já dispunha de uma classe operária volumosa, mostrou rapidamente sua impaciência com os velhos mecanismos de opressão. Nessa batuta, Sergei Eisenstein desenha nas telas, em 1925, uma réplica emocionante dos acontecimentos de 1905, um prelúdio da revolução bolchevique de 1917, da qual Sergei Eisenstein seria um entusiasta de primeira hora. Sim! Eisenstein era um revolucionário. Mas era, antes de tudo, um artista. E, ao ser um artista, ele podia falar de qualquer coisa, mesmo daquilo em que ele tanto acreditava.

O filme parte de um mote simplíssimo, essencialmente humano. A fome. Necessidade primária, portanto. Capaz de mover, de forma implacável, essa tensa e exuberante narrativa. Os marinheiros comiam sopa de carne podre e se revoltaram por isso. Os oficiais reprimem a revolta do jeito que eles sempre fizeram, com a submissão física. E com a morte, se preciso for. Estava armado assim o cenário para que a engrenagem do motim começasse a se movimentar rumo à tragédia. Até chegar ao ingrediente essencial para o sucesso da revolta. O mártir, aquele que dá sua vida pela causa. O marinheiro Vakulinchuk é executado pela guarda e seu corpo é exposto no porto de Odessa como símbolo da mais emblemática opressão. A de alguém que é morto simplesmente por querer comer uma sopa.

O que nos chama a atenção em relação à estrutura narrativa é que não existe uma personagem que movimenta a trama. A personagem é o povo. Este é o ideário socialista, o povo como a personagem da História. Ele só vai precisar de uma razão para agir. E a razão, como dito, foi a sopa. Feita de carne podre. Que leva os marinheiros a confrontarem o comando opressor do navio, que os leva a se apoderarem do navio, a fundearem o navio no porto de Odessa, cuja coragem, simbolizada pelo martírio de Vakulinchuk, leva-os a receberem a adesão em massa da população e, finalmente, na sequência, o massacre, numa memorável sequência de cenas nas escadarias de Odessa. E o ponto de tensão do filme chega a seu pico quando o encouraçado se prepara para enfrentar a esquadra do Czar. Não há recuo. Os pistões das máquinas a vapor do navio batem sincronicamente seu ritmo nas águas do Mar Morto, rumo à batalha inevitável. Resta ao espectador ficar ouvindo a batida tensa dos pistões. É o povo em marcha. É quando o povo se transforma em personagem. E quando o povo se transforma em personagem, sabe-se, a historiografia conta-nos repetidas vezes, não há quem o detenha.

Sergei Eisenstein foi o precursor de um cinema feito essencialmente de imagens geradoras de tensão. Aquela situação em que o espectador mal tem tempo para respirar, sem poder jamais tirar o olho da tela. Era ainda 1925, estamos falando do cinema mudo, que utilizava os intertítulos para narrar os acontecimentos principais, mantendo assim o espectador dentro da sequência dramática do enredo. Mas Eisenstein levou ao extremo a função da imagem como a grande voz narrativa. Fez com que as imagens fossem, na sua duração, repetição e ritmo, geradoras de tensão. Eis a grande sacada. É preciso antes de tudo prender a atenção do espectador, e fazê-lo, de preferência, se contorcer na cadeira, prendendo o próximo suspiro. Este é o cinema de Eisenstein. Cada imagem está terrivelmente ligada à seguinte, de forma que o espectador mal terá tempo para respirar. Numa situação passiva, o espectador é flagrantemente sequestrado pelas imagens. Eis o que nos legou Eisenstein. E a Sétima Arte agradece.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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