My Fair Lady

A idealização do amor

 Por Antônio Roberto Gerin

Os filmes musicais tiveram seus dias de glória em outros tempos, já um tanto distantes, mas a eles está reservada uma prateleira especial na história do cinema. Para quem interessa conhecer estes clássicos, sempre haverá um catálogo dos melhores, disponível em algum arquivo, nas redes sociais. Vamos nos ater aqui ao nosso objeto de resenha, falando de um desses grandes musicais que atravessou gerações e ainda hoje merece ser visto e aplaudido. Há, sim, muitas razões para se assistir a MY FAIR LADY (175’), direção de George Cukor, EUA (1964). A fotografia é uma delas. Equilibrando-se entre tons fortes e suaves, ela realça os contrastes de cores que, sem pudor, se derramam na tela, diante de nossos olhos. Um espetáculo à parte. As atuações de Rex Harrison e de Audrey Hepburn são inesquecíveis. O roteiro é elegante e firme, e sua força é capaz de sustentar o ritmo às vezes um pouco lento de algumas cenas. E as músicas, o ponto alto. Elas se encaixam à perfeição nas narrativas. São melodias deliciosas, que levam a gente a querer assoviá-las. Woudn’t it Be Loverly e With a Litlle Bit O’Luck são exemplos. Enfim, uma comédia (romântica) que nos arrebata. Até o fim. E nos mantém presos, à espera de saber se o par romântico vai mesmo nos oferecer o grande beijo. Por estas e outras tantas razões é que My Fair Lady merece ser retirado, por três horas, da prateleira. E se diante de todos estes argumentos, o espectador assim mesmo não gostar do filme, sem problemas. Ele ao menos terá entrado em contato com uma ideia clássica que permeia, ao longo dos séculos, a cultura ocidental. A ideia que se baseia no conceito de perfeição.

Para falar de My Fair Lady não há como não mencionar a obra prima literária em que o roteiro do filme se baseou. Trata-se do magnífico texto teatral Pigmalião, de George Bernard Shaw, dramaturgo irlandês, que viria a escrever esta obra em 1913, com imediato sucesso nos palcos londrinos. E que, diga-se de passagem, é inspirada na obra Metamorfoses, Livro X, do poeta romano Ovídio, lançada no ano 8 dC, em que narra a paixão do rei de Chipre, Pigmalião, pela estátua de uma mulher, Galateia, que ele mesmo havia esculpido, com tanta perfeição. E, sabe-se, Ovídio foi buscar na mitologia grega a fonte destas suas inspirações. E seguindo a linhagem, estas obras seriam o ponto de partida para a construção do roteiro de um dos mais completos filmes românticos produzidos por Hollywood, na década de 1990, Uma Linda Mulher. Como se pode constatar, a ideia de perfeição movimenta a literatura ocidental desde seus primórdios. Inclusive William Shakespeare, em sua A Megera Domada, bebe um pouco desta ideia.

A despeito das influências, sem dúvida, o filme My Fair Lady originou-se diretamente da obra de Bernard Shaw, Pigmalião. O mais perceptível é como o roteiro, observadas, evidente, as adaptações para uma outra linguagem, o cinema, que precisa ser mais narrativo que o teatro, seguiu à risca a obra original. Tanto isto pode ser verdade que o próprio ator, Rex Harrison, que representou a fenomenal personagem criada por Bernard Shaw, o professor de fonética Henry Higgins, veio da Broadway, onde ele já representava, no musical homônimo, de 1956, esta personagem. Fica claro por que Rex Harrison domina tão ferozmente a personalidade tonitruante do professor Higgins, e a prova deste domínio está nos prêmios que ele carregou para casa, incluindo aí a estatueta de Melhor Ator, no Oscar de 1965. Rex conhecia profundamente o professor Higgins de Shaw.

Henry Higgins, um dedicado guardião da língua inglesa, torna-se um dos mais renomados foneticistas ingleses, fazendo desta profissão sua razão de vida. Certa feita, à saída do teatro, em Convent Garden, Londres, Higgins depara-se com uma pobre florista, Eliza Doolittle, cuja horrível dicção causa tumultos inexplicáveis nos ouvidos do professor de fonética. Sejam quais forem as impressões que a moça causara em Higgins, ele, de imediato, faz uma aposta inusitada com outro foneticista, coronel Pickering, a quem Higgins havia acabado de conhecer, também à saída do teatro. Em seis meses, ele, Higgins, transformaria aquela inculta e horrorosa pobretona florista em uma dama da alta sociedade. E o mais importante. A perfeição com que ele criaria sua dama impediria que qualquer pessoa, mesmo o mais teimoso foneticista, percebesse a real origem da criatura. Aceita a aposta, Higgins, feito um trovão, faz o filme pegar ritmo, graça e força.

Após seis meses de muito trabalho, rompantes de mau humor, humilhações machistas, ansiedades, decepções, Henry Higgins e o coronel Pickering apresentam Eliza Doolittle à alta sociedade, fazendo-a passar por uma duquesa, em uma grande festa de recepção oferecida a uma rainha estrangeira, visitante. E assim, festejada como a dama perfeita, cortejada pelo príncipe, Eliza Doolittle, junto com seus criadores, retornam à casa, felizes com o sucesso da empreitada. Higgins ganha a aposta e cabe ao coronel Pickering pagar todas as despesas que tiveram com a florista. Mas… E agora? O que fazer com ela, a florista?

Esta é a questão que tanto o texto de Bernard Shaw quanto o filme de George Cukor trazem embutida na trama. Eliza Doolittle já não era mais a mesma pessoa. Havia passado por uma profunda transformação. Um brinquedo nas mãos de dois marmanjos solteirões e machistas, Eliza Doolittle transformara-se numa pessoa com extrema consciência de si mesma, a ponto de colocar em cheque a obra do professor. Eis o impasse, que parece não ter preocupado Bernard Shaw, posto que o recado que ele queria dar, o de que o esforço pessoal, idealizado, pode sim possibilitar a transposição de barreiras sociais, estava muito bem dado. Mas Hollywood, sempre com os dois olhos grudados na bilheteria, pensava diferente. Teria que oferecer a Eliza um destino. Algo concreto. Óbvio, um romance.

Pela estrutura das personagens criada por Bernard Shaw, tornara-se quase impossível, senão inverossímil, a união romântica entre Higgins e Eliza. Higgins, empedernido solteirão, agarrava-se na idealização feminina que fazia da mãe, como a mulher perfeita e inalcançável, o motivo para rechaçar qualquer possibilidade de envolvimento afetivo e sexual com outra mulher, inclusive com sua obra prima perfeita, a duquesa Eliza Doolittle. Há, neste aspecto, uma arrogante infantilidade em Higgins que acaba por afastar qualquer ideia em Eliza de querer se envolver com seu criador. Eliza tinha ideias muito claras sobre o que ela representava para um homem, e ela sabia que, mesmo sendo criatura do professor, jamais concordaria em se submeter a seus caprichos de menino mimado. Hollywood havia seguido à risca este roteiro, o que dificultou construir, a partir dele, um conto de fadas.

Hollywood preferiu ficar no meio do caminho. Satisfeita com o resultado do filme, cujo sucesso não viria a depender do grande beijo final, como aconteceria em Uma Linda Mulher, o filme deixa em aberto a possibilidade futura de uma relação de amor entre os dois. No entanto, ao dar esta solução, Hollywood quebra a espinha dorsal da personagem Eliza. Eliza havia optado por sua independência, o que significava não mais voltar para a casa de Higgins, de onde ela havia fugido, decidida a cuidar da própria vida. Mas, em My Fair Lady, Eliza não só concorda em voltar, como vai continuar se submetendo aos caprichos do criador, simbolizados pela obediência à ordem de lhe trazer, imediatamente, os chinelos. É desta forma que o filme termina. Dentro da estrutura criada por Shaw. Portanto, sem ter resolvido o impasse. Que continuará. Para sempre.

O filme, assim como o texto teatral de Shaw, traz uma perspectiva redentora para o ser humano. Quem não almeja por transformações? Cobertos de defeitos e fraquezas, sonhamos em sermos o herói de nós mesmos. Buscamos na perfeição o equilíbrio ideal para alimentar a ideia de felicidade e bem-estar. E a forma objetiva de nos movimentarmos em direção à busca da perfeição é idealizarmos situações positivas para nossas vidas. É a força da mente que irá moldar nossas atitudes na busca pelo objetivo idealizado. Óbvio que nada é fácil, mas a possibilidade de nos transformarmos, seja do ponto de vista existencial seja do ponto de vista socioeconômico, é que poderá dar às nossas vidas um sentido concreto. E esta é a grande razão de ser das comédias românticas. Não há coisa mais concreta que o amor. É isto que as comédias nos oferecem. A possibilidade da transformação através do amor. Mas, para que tal aconteça, o amor precisa, antes de tudo, ser idealizado. E ninguém sabe fazer isso melhor que o cinema.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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