O Balcão

Por Alex Ribeiro

O Balcão é uma peça do dramaturgo francês Jean Genet, escrita em 1956, e é considerada uma de suas obras primas. Quando a peça chegou às mãos de Jean-Paul Sartre, causou-lhe um grande impacto, resultando em grandes elogios e, consequentemente, numa admiração de semelhante proporção. Era aquela forma de revelar a realidade, trazida por Genet, que levava seus leitores e espectadores a uma espécie de catarse. O dramaturgo construíra em sua literatura um insistente questionamento sobre os papéis sociais que os homens exercem, e como se estabelecem as relações de poder entre eles. É claro que isso é fruto do que vivera Genet em toda a sua vida. Ele descobriu muito cedo que o que deseja a sociedade é que você tenha um papel dentro da sua complexa e ilusória forma de se configurar. Ainda criança, ele descobre que fora adotado, e após ser acusado de roubo, foi retirado da família e internado num colégio interno, onde ficou por mais de dez anos, até sua fuga, aos 21 anos. Percebeu que a sociedade desejava que ele assumisse o papel de ladrão e, então, ele decide aceitar. Passou a realizar furtos, como uma espécie de atestado de pertencimento, ou, quem sabe, uma forma de quebrar com o jogo de papéis a partir de sua marginalidade. Entre uma prisão e outra, conhece alguns presos políticos que lhe apresentam a literatura. Então, ele descobre uma nova forma contestar e escancarar suas dores. Através das palavras. E é no teatro que ele se encontra definitivamente, criando e mostrando no palco um mesmo personagem, sempre, ele mesmo. Palavras de Genet sobre o seu próprio teatro. É nessa complexa vida que nasce O Balcão, um prostíbulo onde você pode ser o que quiser. Bispo, general, ou quem sabe juiz. Ali você pode se travestir como quiser.

Irma é a dona do Balcão, um sofisticado prostíbulo que oferece aos seus clientes a possibilidade de vivenciarem suas fantasias, vivenciar papéis que, talvez, desejam ocupar dentro da sociedade. Suas prostitutas são uma espécie de coparticipantes das “cenas”, tornando mais palpável a realização do desejo de seus clientes. Aquele que desejara ser bispo, terá na companheira uma fiel que lhe confessará os pecados e pedirá sua benção. Um segundo, vestido de general, tem na sua prostituta um cavalo que o acompanha bravamente em suas batalhas, e um juiz, com sua pomposa toga, julga e condena uma terceira, que é submetida a um carrasco. Porém, com uma revolta prestes a acontecer, Irma teme pelos seus clientes, e por seu Balcão, mantido graças ao seu bom relacionamento com o poder estabelecido. E é de dentro de sua casa que sai a traidora, que mais tarde se tornaria o símbolo da revolução. Uma de suas meninas, de nome Chantal.

Com a revolução chegando às portas do Balcão, criamos a expectativa de que o jogo de papéis seja enfim destruído e a liberdade de ser possa nos ser oferecida. Porém, Genet não permite essa concessão. Ao revolucionário é oferecido o papel de chefe de polícia, a Chantal não resta outra coisa senão a morte. E aos clientes não resta outra alternativa a não ser voltar para seus promíscuos papéis. O Balcão se rearranja e as ilusões parecem continuar ad eternum. Talvez possam se mudar os atores, mas as personagens e os papéis sociais continuarão lá, sendo oferecidos para quem os desejar.

A peça é de uma beleza poética e de uma ironia ácida que deixa o leitor/espectador atônito, reflexivo e, por vezes, incomodado por perceber que aqueles jogos sórdidos de fato acontecem e sempre aconteceram, com naturalidade, na vida real. Uma colagem com o Brasil atual nos coloca numa situação semelhante, escancarando, sem disfarces, as proezas nada fantasiosas de nossos governantes, e adjacentes. Os papéis assumidos pelos nossos políticos, nossos juízes, nossas igrejas e nossa imprensa faz-nos sentir partícipes de um imenso balcão de trocas, falcatruas e imoralidades. Jean Genet quebrou os pactos da sua sociedade para poder nos mostrá-la tal como a vê de seu lugar dolorosamente privilegiado. Ele nos mostra, em imagem panorâmica, todo nosso jogo de ilusões. A partir daí, cabe a nós decidir. Continuar a aceitar o papel pífio que nos é oferecido, ou ser realmente protagonistas de nós mesmos? Há um preço a se pagar. O preço da liberdade.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin, dramaturgo da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

Autor: Alex Ribeiro

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto, psicólogo, poeta.

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