O Nome da Rosa

O conhecimento nos liberta

Por   Antônio Roberto Gerin

Eis um filme que causou muito impacto lá pelos meados da década de 1980, capitaneado pelo megassucesso do livro homônimo, lançado na Itália em 1980, de autoria do badalado mestre da semiótica, o escritor e filósofo Umberto Eco. Estamos falando do fascinante O NOME DA ROSA (135’), direção de Jean Jacques Annaud, EUA (1986). Um thriller? Sim. E o livro também, detetivesco. Mas vale lembrar. Em relação ao livro, estamos diante de uma narrativa de suspense bastante refinada, não só do ponto de vista linguístico, já que Umberto Eco derrama citações até em latim ao longo de suas quinhentas e sessenta páginas, mas também na sua estrutura, amparada por uma criatividade literária inquestionável. O roteiro do filme, no entanto, deixa para trás esta sofisticação e traz para a tela o que é essencial para se criar os momentos de tensão e, de quebra, prender a atenção do espectador. Com isso, privilegia os ingredientes investigativos para descobrir quem é o assassino em série de monges num mosteiro beneditino do século XIV, ao norte da Itália. O mérito do filme foi preservar o que há de mais fundamental no livro. A inteligência com que a trama de assassinatos é conduzida. Quando ainda estamos querendo entender uma morte, já vem a próxima. E no dia seguinte, outra! Fôlego de Agatha Christie.

O monge franciscano William de Baskerville, (Sean Connery), acompanhado de seu discípulo Adson de Melk (Christian Slater), chega, em 1327, ao mosteiro beneditino para participar de um conclave. Há rumores de heresias ocorrendo dentro do mosteiro. E William chega justamente no momento em que se iniciam os assassinatos. Através da janela, observando o cemitério, ele percebe a terra fresca de uma recente sepultura. É o alerta da primeira morte. E antes mesmo de desvendar o ocorrido, quando lhe são trazidas versões contraditórias para explicar como o monge despencara do alto de uma torre, outro assassinato acontece. Está dada a partida para que o inquieto monge franciscano tome a dianteira nas investigações, fazendo com que o filme entre em sua rota de colisões.

Eis a oportunidade para Umberto Eco, um apreciador das técnicas de Arthur Conan Doyle, impor-se como hábil tecelão de suspenses, nos moldes clássicos estabelecidos pelos grandes mestres desse gênero literário. Só que Umberto Eco é um escritor com uma musculatura literária robusta, um intelectual preocupado com seu tempo e com a história que moldou a realidade dos dias de hoje. E o filme se mantém fiel a essa proposta. Com seus cenários cuidadosamente desenhados, com sua atmosfera sufocante, com sua fotografia em cores expressivas, e com sua sensualidade escorrendo das paredes, O Nome da Rosa navega à vontade por uma Idade Média em que os contornos socioeconômicos, até então bem definidos dentro do sistema feudal, começavam a se esgarçar em direção a uma estrutura econômica mercantilista, impulsionada pelas intensas produções científicas e artísticas do que viria a ser conhecido como o Renascimento. O próprio fim trágico da biblioteca do mosteiro revela esta transição. E neste sentido, a figura de William de Baskerville é emblemática. Com seu raciocínio afiado, exaustivamente lógico e bastante terreno, ele se contrapõe à visão místico-doutrinária da igreja. O divino, repressivamente misterioso, era habilmente usado para confinar os crentes em torno das igrejas e dos mosteiros. Com o passar dos séculos, esta estrutura espiritual se esvairá em outros modelos de controle, sempre apontando suas garras para o fértil terreno da ignorância. Sim, há de se convir, a servil ignorância não é um atributo apenas da Idade Média.

Talvez, para o espectador, basta a curiosidade de saber logo quem é o assassino. Compreende-se, pois este é o objetivo do filme. Mas é claro que a proposta vai além do simples jogo manipulativo das técnicas do suspense. O espectador, se quiser, poderá espiar com mais atenção a famosa biblioteca do mosteiro, onde está armazenado vasto conhecimento acumulado, pelo Ocidente, desde os tempos pré-cultura helênica. E poderá perceber que o conhecimento é fonte primária de poder. E, em alguns casos, morada do demônio. Não à toa, parte dos livros que perpetuavam o conhecimento, dos quais a igreja era detentora feroz, estavam trancafiados a sete chaves naquela biblioteca. E ai de quem ousasse se apossar deles!

Neste contexto, podemos concluir que a busca pelo poder é uma herança maldita que se perpetua e se aperfeiçoa civilização após civilização. Tanto que o eixo do conhecimento, ao longo do tempo, se deslocou dos mosteiros encastelados para os secretos acervos tecnológicos das grandes empresas, com suas fórmulas e suas promessas de lucros estonteantes. Quanto aos livros em si, quem agora cuida deles são as ideologias. O Estado vigia as bibliotecas, desconfia do que elas guardam e escondem. Ao disseminar o desprezo pelo conhecimento, os governos de ocasião mantêm seus cidadãos longe das estantes abarrotadas de livros empoeirados. O conhecimento continuará sendo um privilégio.

Antes de finalizar, pretendemos ir um pouco mais adiante no que subjaz à estrutura narrativa tecida, com extrema habilidade, por Umberto Eco. E começamos com simples perguntas. O que fazem dezenas de homens confinados em um mosteiro, no alto de uma montanha, por anos e anos a fio? Além de reproduzirem o conhecimento em gravuras eruditas, salpicadas de monstros e demônios? Enquanto seres capazes de sentir e de se emocionar, estes homens são obrigados, no cotidiano, a lidar com suas libidos, pulsões inerentes à natureza humana. Estas energias brotam espontaneamente e rasgam as entranhas se não forem canalizadas corretamente pela carne. Tornam-se, sem o perceber, escravos açoitados pelo desejo. Este é o demônio que habita o mosteiro. E não há como contê-lo, eis o recado dado pela fria razão de Umberto Eco. A luxúria irá, sim, se arrastar pelas grossas paredes em busca da carne fraca, aquela carne que não consegue se fortalecer pelas preces e pelos flagelos, e que hora ou outra cairá nos braços do sexo libertador. Este é o efeito colateral do confinamento.

Quanto ao demônio, este entrará inevitavelmente pela porta, na figura da campesina que vende seu sexo aos monges em troca de alimento. Ou no corpo de belos jovens monges que oferecem sexo em troca do conhecimento proibido, sem saber, eles, que o que se proíbe é a luz do saber que irá lhes revelar que o demônio está em outros lugares. Neste imbróglio, o sexo, que nasce das relações entre pessoas, torna-se um brinde, aparentemente gratuito, e até ocasional, para manifestações de poder, como se, na lógica do pecado, o sexo apenas submetesse, nunca compartilhasse. Porque, se compartilhado, ele terá que sair à luz do dia.

É em torno deste conceito que se desenvolve a narrativa: o homem não pode se libertar. A heresia não está no conhecimento, afinal, o conhecimento é necessário para o desenvolvimento das civilizações. A heresia está naquilo que, segundo os cânones religiosos, representados pela Inquisição, desperta em nós a necessidade de expressarmos nossos mais profundos desejos. E esta heresia é simbolizada no filme pelo livro A Poética, de Aristóteles, em sua segunda parte, onde o filósofo grego trata da comédia, portanto, do riso como fonte de libertação. Este é o conhecimento que se tenta esconder a sete chaves. O riso (ou dar risadas) sempre foi condenado, ontem e hoje. Ele pode ser a porta do escárnio, mas também é a passagem subterrânea para os prazeres da vida, posto que o riso desperta o que há de mais sagrado em nós, pois nos faz sentirmo-nos iluminados, justamente porque o riso é o acesso mais genuíno para despertar nossa consciência.

Em suma. O Nome da Rosa nos convida a vestir as lentes da História para entendermos a realidade que nos oprime e nos confunde. E a História ensina que o conhecimento, embora vilmente usado como fonte de poder, leva à luz. É por esta razão que ele não pode ser difundido. Tem que ficar enclausurado. E esta terá que ser sempre a nossa luta humana. Apoderarmo-nos das chaves que nos darão acesso ao conhecimento libertador.

Quanto ao jovem discípulo, Adson de Melk, ele foi o único que se deitou com a campesina em troca de amor e de puro prazer. Visivelmente apaixonado, ele podia ter ficado com ela, ter deixado o mestre William de Baskerville seguir seu caminho, sozinho. Mas não. Por medo, ou por covardia, ou por simples escolha, renunciou à carne, subjugando-a em nome de ideais pretensamente mais sublimes. Deixou para trás a campesina sem sequer saber o nome da rosa.

 

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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