Pulp Fiction

O diálogo como estratégia narrativa

Por Antônio Roberto Gerin

Para uma obra de arte sobreviver como tal, pressupõe-se que ela tenha vida própria. Parece óbvia esta afirmação, mas ela é tudo. Ter vida própria é o que diferencia alguém de alguém, algo de algo. Para a arte podemos dizer que há o estilo. Aquilo que é inerente, que é intrínseco. É próprio. Nesta perspectiva, PULP FICTION (134’), direção de Quentin Tarantino, EUA (1994), é o filme que consolida o estilo do diretor e o coloca no panteão da originalidade. Ele já havia sido aclamado por seu primeiro filme,  Cães de Aluguel, onde já estabelecia sua estética e mostrava alguns elementos básicos da sua filmografia. Com Pulp Fiction, ele apenas consolida o que já estava para ser consolidado. Sim. Para Quentin Tarantino não bastou ter estilo. Ele quis ser o estilo, aquele que, além de inconfundível, é inigualável. A ser imitado.

Apesar da não linearidade, o roteiro é simples, e é nesta simplicidade que está a funcionalidade do filme. Basta dizer o seguinte. Os caras, dois, vão a uma pizzaria, e bem na hora que acabam de sentar e um deles ir ao banheiro, um casal, homem e mulher, nervosos, sobem nas cadeiras e dão voz de assalto. Esta ação de desespero pode ser o início e o final do filme. O roteiro se fecha, como uma ostra, nesta lógica. Começo e fim se juntando para formar uma simples e rápida sinopse. Mas… Também não é assim tão simples! Nem tão rápida, já que entre a voz de assalto e o desfecho transcorrerão quase duas horas de filme. Este é Tarantino. Faz da aparente simplicidade um engenhoso jogo de forças que dará fôlego dramático a uma sequência de acontecimentos que parecem caminhar a esmo, mas que, do contrário, giram numa espiral narrativa bem precisa. Afinal, são quatro histórias que se entrelaçam, se contorcem, e vão desembocar, aparentemente, no nada. Mas o suficiente para o espectador perceber que ele está diante de um filme monumental.

Não à toa, os filmes de Tarantino são um repositório de inteligências. Tudo é muito bem pensado e marcado. Nada é gratuito. Qualquer coisa, um pequeno capricho, um olhar, uma insinuação, tudo pode integrar, organicamente, o corpo da trama. Desde que sugiram, evidente, golpes de criatividade. É a ideia útil a serviço do resultado. Nesta lógica, podemos mencionar elementos aparentemente sem qualquer compromisso com a narrativa, mas que adquirem uma força momentânea, cuja utilidade cênica vai além do mero capricho. O sanduíche, numa das cenas icônicas do filme, é um exemplo desta proposital fortuidade, o que prova a habilidade de Tarantino na manipulação dos adereços para mover a estrutura narrativa do filme. Adereço, sabemos, é tudo aquilo que podemos manipular com as mãos. Ou com os pés, no caso, por exemplo, de uma bola de futebol. Esta é a essência da espetacularização. A habilidade em dar explosão máxima ao desimportante, no caso, o sanduíche, no desfecho perfeito da grande cena.

Mas não basta o sanduíche. Adereço bom é adereço que faz jorrar sangue. É o que o espectador espera. Porque, em Tarantino, jorrar sangue é tão natural quanto espocar uma garrafa de champanhe. E a banalidade é criada pela destreza fulminante com que o adereço (um revólver, porrete ou escopeta) é preparado para entrar em ação. E é justamente nesta preparação que reside a proposta estética de Quentin. É a precisão rítmica no uso do adereço que dará à cena a grandiosidade do absurdo.

Só que todo golpe de ação (pequenos clímaces), para ser perfeito, que gere no espectador o impacto necessário que o faça aderir incondicionalmente à narrativa, tem que ser muito bem preparado. A narrativa ainda é aristotélica. Para ter o fim tem que ter o começo, não importa a ordem. Quer dizer, para ter a próxima ação tem que ter uma anterior que a prepare. E a narrativa, para ser vibrante, tem, sim, que se submeter ao eterno embate entre pensamento e emoção, instâncias que se digladiam, o tempo todo, pela prevalência. Ora! Numa perspectiva hollywoodiana, quanto mais predominar a emoção maior o ganho! E aqui vamos entrar numa eficácia bem tarantiana, vista em outros de seus filmes, o anterior, Cães de Aluguel, e os que viriam na sequência a Pulp Fiction, Kill Bill,   Os Oito Odiados, e, principalmente, em Bastardos Inglórios. O uso ferramental do diálogo extensivo e delirante como gerador de tensão no preparo cuidadoso ao momento fatal. Falar de Tarantino é falar não só do visual, a imagem, que é cinema puro. É também falar, e muito, do oral, a fala, cuja funcionalidade é dar às imagens sua potência artística. E, neste caso, a morte simboliza o fluxo máximo da consolidação desta potência, leia-se, poder. Só que o poder é temporal. Para se perpetuar, ele vai precisar da próxima morte. E Tarantino sempre soube disto.

Vincent Vega (John Travolta) e seu comparsa de crimes, Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) vão a um apartamento buscar a mala de dinheiro que alguns bandidos menores tiveram a ousadia de roubar do chefão da máfia. É só chegar, metralhar, pegar a mala e ir embora. Não! Isso é clichê. Tarantino precisa se demorar. O tempo suficiente para que o espectador não resista à angústia da espera. Que vá ao limite. Como gerar esse explosivo compasso de espera? É nesta hora que entram os tão conhecidos diálogos anabolizantes.

Vamos refazer a cena. Vincent e Jules entram no apartamento. O chefinho está comendo um sanduíche. O sanduíche passa a ser o assunto central do diálogo entre o chefinho e Jules. Assim, o diálogo tergiversante vai gerando uma dinâmica, inútil, tudo bem, mas utilíssima do ponto de vista da preparação do desfecho da cena. É em torno do sanduíche que se vai retroalimentando esta tensão, avisando ao espectador de que algo inevitável está por acontecer. E o espectador tem a quase certeza do que vai se suceder. Só não sabe como. Portanto, a demora de tempo dos diálogos, que dura vários longos minutos, terá esta função. A de distrair o espectador. Conduzi-lo para um outro fluxo de emoção. Até que… no ponto exato em que o espectador se distrai, o desfecho acontece, abruptamente. E assim, o que podia ser uma cena banal, toma um aspecto artístico inconfundível.

Enfim. Cinema, sabemos, é imagem total, de preferência imagem em ação reflexiva ou alucinante. Por isso, há os que criticam os longos diálogos de Tarantino. Pô, ficar falando de sanduíche! Pois é. Não é só sexo que é energia. Tudo é. Sanduíche também. Sem o sanduíche, não há o suspense. Portanto, se tirar o diálogo do sanduíche de Tarantino, tira a alma ensangüentada da sua estética. E em Tarantino, o sangue é um sangue puramente estético. Não assusta. Mas encanta. Muito!

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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