O Santo e a Porca

Por Antônio Roberto Gerin

Ariano Suassuna escreveu O Santo e a Porca em 1957, quando somava apenas trinta anos de idade. Já era um autor consagrado. Havia se estabelecido como um dos grandes dramaturgos brasileiros ainda em 1955, com sua obra basilar, O Auto da Compadecida, montada Brasil afora, impondo um estrondoso sucesso nas telas de cinema e televisão. O Santo e a Porca, dois anos depois, não repete o mesmo sucesso, mas pode, com certeza, fazer pose de obra-prima. Tem muito tutano artístico para isso. Mesmo que tenha reproduzido a estrutura de Aululária, de Plauto, como o próprio Ariano declara, os elementos estéticos, com base na cultura popular nordestina, estão ali muito bem enraizados, consolidando-se, o artista Suassuna, como um homem profundamente ligado à sua terra, com a alma fincada na sua gente, de onde tiraria inspiração para criar sua magnífica literatura.

Suassuna, mais do que ninguém, soube brincar com o convívio do homem com a sua realidade, na maioria das vezes bruta, tirando da crendice e da ingenuidade de suas personagens a motivação narrativa de suas obras. Ele prepara o homem para as suas pequenas tragédias, oferecendo, de brinde, uma possibilidade de redenção. Ele não quer perturbar os monstrinhos que habitam em nós. Pra quê? Muito melhor nos submetermos ao nosso destino, mesmo que seja por linhas tortas. Nem mesmo a sua personagem protagonista, Euricão, é-lhe reservado um fim conclusivo. Não. Ele ainda poderá escolher, mesmo que sua escolha se baseie na consciência de sua falibilidade e de sua pequenez. Ora, o dinheiro que Euricão tanto ama, e pelo qual tanto luta e se angustia, não passa de uma ficção. É como se ele se agarrasse a miragens, não aos fatos. Esta fabulação de angústias e de sonhos, aproveitando a cultura dos cordéis como o caminho mais genuíno para se chegar à expressão artística, é a única alternativa que Suassuna nos oferece para conseguirmos escapar à concretude do cotidiano. E, provável, Suassuna assim o faz por perceber sermos justamente humanos numa terra em que, para se viver, é preciso inventar.

O protagonista é um avaro mergulhado de tal modo em sua sovinice que nenhum passo é dado sem que desperte nele o terrificante medo de perder sua porca. Não sem razão. Oras, é nela, na porca, que estão escondidos os ganhos de uma vida inteira! No desespero da perda, Euricão exige de santo Antônio, de quem é devoto, lealdade no cuidado com seu bem mais precioso. Qualquer suspeita – não fato – que venha colocar em risco a porca, exigirá de Euricão manobras coloquiais para convencer o interlocutor de que a porca nada mais é do que um pedaço de madeira. Quanto mais ele esconde a porca, mais ela fica à vista. Esta é a hilária e absurda trama de O Santo e a Porca.

A ameaça à porca se apresenta logo no início da peça, quando é anunciada a visita de Eudoro Vicente, amigo de longa data de Euricão. Aquele vem à casa deste justo para lhe tirar o seu bem mais precioso. Este enunciado, “o bem mais precioso”, é a senha para desencadear todo o quiproquó em torno da porca, levando Euricão às mais hilárias e farsescas situações para evitar que o intruso lhe roube seu “bem mais precioso”. Óbvio que Eudoro, que no passado fora noivo de Benona, irmã de Euricão, não veio em busca da porca. Ele quer outro bem, também precioso. A filha de Euricão. Esta é cortejada há tempos por Dodó, filho de Eudoro e funcionário de Euricão. Sim. Dodó se fez contratar por Euricão, utilizando-se de disfarces deprimentes, justamente para tomar conta da filha do patrão, Margarida, por quem está perdidamente apaixonado, e cuja paixão é retribuída. Para que a história se retroalimente numa louca sequência de confusões, de entradas e saídas, surge a figura da empregada, Caroba, a típica esperta, dotada de extrema habilidade para tecer artimanhas com o objetivo de conseguir o que quer, e o que ela quer é, por si só, a alegria do enredo, qual seja, unir os casais e encaminhar a trama para o seu final feliz.

Por fim, quando a confusão é desfeita e tudo se esclarece, Euricão descobre que sua vida fora inútil, pautada por acumular algo que é tão real quanto fictício. A volatilidade de tudo o que nos cerca, e que não pode ser o norte nem a base de nossas atitudes e intenções, está expressa no valor ilusório do dinheiro. Sem o seu valioso dinheiro, resta a Euricão buscar o sentido daquilo tudo. Resta-lhe olhar para a única coisa que ele tem de concreto naquele momento, a fé em seu Santo Antônio.

E esta é a questão.  Sabemos, desde sempre, que o dinheiro é concreto. Visível, manipulável. Com ele se compra. Realizam-se desejos.  Não é preciso ter fé para acreditar no poder aquisitivo do dinheiro. Mas, Ariano Suassuna vai além do profano. Interessa-lhe as questões humanas, cuja base existencial depende em acreditar naquilo que não se vê, que está fora do homem, mas que controla o seu destino e o destino da humanidade. E, por ironia, Euricão transita de forma marota entre estas duas instâncias, a profana e a divina, unindo-as na obrigação de fazê-lo rico e feliz. Quanto ao dinheiro, sabemos do que ele é capaz. Mas ignoramos completamente o destino da nossa alma, cuja certeza de eternidade depende de um Santo Antônio calado, mudo e imóvel! Mas o que realmente acontece no final da peça? O dinheiro se vai, evapora-se, mas Santo Antônio continua ali, na sala, calado, mudo e imóvel. Pronto para socorrer o solitário e abandonado Euricão. Desde que Euricão, evidente, acredite nisso.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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