Pigmalião

Por Antônio Roberto Gerin

George Bernard Shaw (1846-1950) é um dramaturgo irlandês que se transformou num feroz guardião da língua inglesa, sendo considerado o fundador do teatro moderno inglês. Eram tempos, final do século XIX, de mudanças importantes na forma de escrever e fazer teatro. Era uma escrita que flertava acintosamente com a realidade, recebendo total apoio das novas técnicas de encenação que foram surgindo à época. É perceptível a influência do realista Henrik Ibsen sobre Shaw. Afinal, Ibsen, dramaturgo norueguês, era tido como um dos grandes inovadores senão o maior nome da dramaturgia mundial na passagem do século XIX para o século XX. Esta influência viria fazer de Shaw um defensor do teatro didático. É necessário apresentar à sociedade uma ideia de mudança, sem o que o próprio teatro deixa de cumprir com sua função artística. Nascido de família pobre, pai alcoólatra e mãe de personalidade forte, artista ela própria, motivo que a levou a incentivar o filho a investir seu talento na arte da escrita, Bernard Shaw, aos vinte anos, mudou-se de Dublin para Londres, em busca de sucesso literário. Após inúmeras recusas de seus escritos, romances e crônicas, consegue, em 1885, aos vinte e nove anos, se inserir no mercado editorial. Desde então, as penúrias financeiras ficariam para trás, e Shaw iria exercer cada vez mais sua influência intelectual nos meios culturais londrinos. Detentor de uma soberba criatividade e absoluto domínio da língua inglesa, bastante afiada, além de socialista convicto, Shaw tem na hipocrisia das estratificadas classes sociais da era vitoriana seu alvo de ataque preferido. É neste contexto, de muita escrita e engajamento social, que, em 1913, Bernard Shaw lança um de seus mais importantes trabalhos, Pigmalião.

A famosa peça teatral Pigmalião não parte de uma ideia original. No entanto, isto não impediu que Shaw construísse uma obra original. O mote principal do texto vem de Metamorfoses, do poeta romano Ovídio, que se vale do mito de Pigmalião, rei de Chipre, obcecado escultor que, desiludido com as mulheres do seu reino, resolve esculpir para si a mulher perfeita. E a esculpe tão perfeita e tão bela que acaba se apaixonando pela sua estátua. Afrodite, a deusa da beleza e do amor, apiedando-se de Pigmalião, transforma a escultura em mulher, de carne e osso. Portanto, o que nasceu de uma idealização, torna-se realidade. Pigmalião de Ovídio casa-se com sua Galateia e com ela tem filhos.

Shaw, brilhantemente, cria seu próprio Pigmalião, o intragável, arrogante, preconceituoso, impetuoso e cômico professor Higgins. Henry Higgins se dedica ao estudo da língua inglesa, especializando-se em fonética, o que fez dele um profundo conhecedor dos dialetos universais. Esta extrema habilidade o leva, admiravelmente, através das falas de seus interlocutores ocasionais, a determinar, sem que o digam, o local de nascimento e origem de cada um deles.

O texto começa com o professor Higgins conhecendo, casualmente, à saída do teatro, uma florista, cuja horrível e tenebrosa dicção lhe chama a atenção. É com outro famoso foneticista, coronel Hugh Pickering, que ele próprio acabara de conhecer, também à saída do teatro, que Higgins faz uma aposta. Em seis meses, ele transformaria aquela pobre e inculta florista das ruas escuras de Londres em uma admirada dama da alta sociedade. Eliza Doolittle, este é o nome da florista, circularia pelos salões londrinos se passando por uma duquesa, sem que ninguém jamais desconfiasse das verdadeiras origens da moça. Aposta aceita pelo coronel Pickering, mãos à obra. O professor Higgins, mangas arregaçadas e com um humor infernal, começa a esculpir sua bela dama.

Há muitas discussões sobre como Bernard Shaw acabou por construir o enredo da peça. Evidente, ele não estava preocupado em formatar mais uma comédia romântica, mesmo que, ao longo do tempo, Broadway e Hollywood, através do belo musical My Fair Lady, tenham se esforçado para transformar o texto original em um conto de fadas. Para Shaw, interessava discutir a terrível estratificação sociocultural através da linguagem e dos comportamentos sociais dela decorrentes. É pela forma como as pessoas falam que passamos a catalogá-las socialmente. E mesmo que pessoas com educação precária e condição social inferior venham a melhorar de vida (o pai de Eliza), elas necessariamente vão se trair pela linguagem, o que as prenderão eternamente à sua origem pobre. O contrário também se faz verdadeiro. Mesmo que o rico se descuide da linguagem, isto não abalará sua posição social. Ele, afinal, nasceu rico, e este é um privilégio indissolúvel. O que Shaw tenta mostrar é que se pode esculpir o ser humano desde que ele próprio se idealize numa perspectiva superior e persiga esta idealização. Pois é. O ser humano pode, sim, idealizar seu destino. Esta é a ideia didática de Shaw. A ascensão social através da transformação pela linguagem. É a crença no poder transformador do ser humano, desde que ele obsessivamente se proponha a tal. É com esta obsessão que o professor Higgins ganha a aposta feita com o coronel Pickering. Ele de fato transforma a ignorante e estúpida florista Eliza Doolittle numa encantadora lady.

Só que há um detalhe, acima, que passa despercebido. A obsessão não é do professor, é da aluna. A despeito da aposta feita à porta do teatro, entre o professor Higgins e o coronel Pickering, foi Eliza quem, dias depois, vai procurar o professor Higgins com o objetivo (idealizado) de apurar a linguagem e poder assim sair das ruas e se empregar numa loja de flores. Este dado é importante por fazer notar a proposta social de Shaw, a de que o próprio ser humano é o idealizador do seu destino e que, portanto, não há, em princípio, portas fechadas para os sonhos.

Por que Bernard Shaw não se preocupou em unir o casal ao final da peça, quando Higgins tinha a seus pés a sua própria Galateia?

Diferente do mito de Pigmalião, Shaw constrói em Higgins um ser totalmente avesso ao amor. É um homem intelectualmente arrogante, impaciente com as fraquezas humanas, mesquinho com as misérias alheias, insensível a dores, atitudes estas que revelam nele uma infantil irresponsabilidade social. E mais. Higgins disfarça sua incapacidade de amar pela idealização que faz da mãe, a única mulher naturalmente dotada dos mais elevados atributos femininos. Ao prender Higgins à mãe, idealizando-a, transformando Higgins num empedernido solteirão como forma de disfarçar seu complexo de Édipo, Shaw afasta a possibilidade de um desejado final romântico.

E o contraponto do amor, em Eliza, também é verdadeiro. Ela, chocada, desde o início, com a personalidade agressiva e estúpida de Higgins, de um lado, e sendo, por outro lado, perseguida com cartas de amor pelo jovem e encantador (e pobre) Freddy, Eliza não está disposta, feito uma Mirandolina, a conquistar o homem Higgins. Finda a aposta, ela se pergunta o que fazer da vida, já que é impossível, nas atuais circunstâncias, voltar para as ruas e recomeçar a vender flores. Caberia a ela entrar no mercado de casamentos? É o que propõe Higgins. Qualquer um quer transformá-la numa rainha, diz ele, mordendo-se de ciúmes. No fundo, o que o professor Higgins quer é que ela continue morando com ele, cuidando da sua vida pessoal, como se uma secretária fosse, e, ao mesmo tempo, usufruindo das benesses sociais que um homem rico pode proporcionar a uma mulher, mesmo que com ela não queira absolutamente nada. Mas Eliza se recusa a voltar para a casa de Higgins, decidida que está a lutar por sua independência. A mulher já não tem no casamento a única forma de ascensão social, estes eram os ventos que sopravam na Londres das sufragistas. Afinal, Shaw tinha em Nora, a personagem feminina de Ibsen, a desculpa para fazer de Eliza uma mulher também independente. E Shaw o faz, com muito gosto e prazer. Para a infelicidade de Higgins.

Pigmalião pode não passar de uma comédia satírica, simples, rápida, mas é tão bem arquitetada, tão bem escrita, vai ao ponto em questões de relacionamentos e de sonhos, esta ilusão transformadora que carregamos dentro de nós, nos mostrando que quando idealizamos algo bom para nós já estaremos pelo menos afastando a ideia de impossibilidade, por estas e muitas razões, não à toa, o texto de Shaw acaba se transformando num grande clássico da literatura mundial. E que fique bem claro. A idealização de transformação é nossa, está em nós, não no outro. Diferente do que pensa o famigerado Higgins, não se esculpem seres humanos.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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