Rainha Cristina

A exuberância da rainha Greta

Por Antônio Roberto Gerin

 Quando se trata de assistir a um filme baseado em fatos históricos, temos, em primeiro lugar, que ficar atentos à veracidade desses fatos. Nem sempre se projeta nas telas o que aconteceu. Então, um alerta. Um filme não é um livro de história. A ficção exige seus voos de cruzeiro. Ela precisa se distanciar da realidade para construir sua narrativa, seus ritmos, suas tensões e seus clímax. O espectador tem que ter a percepção de que ele está assistindo a uma fábula, não a um documentário. Portanto, sugerimos. Nada de comparações. Nada de apontar o dedo. Ah, não foi assim que aconteceu! Neste diapasão, afirmamos que o belo RAINHA CRISTINA (99’), direção de Rouben Mamoulian, EUA (1933), não é diferente. É mais um daqueles filmes que se aproveitam da História para se tornarem um grande filme. Baseado na misteriosa e controversa Rainha da Suécia, que reinou entre 1632 e 1654, em pleno apogeu da guerra dos Trinta Anos, Rainha Cristina está mais preocupado com os dilemas pessoais da soberana do que com os conchavos palacianos. Estes existem, sempre, mas não definem quem de fato foi esta mulher de personalidade poderosa. Cristina foi a rainha que subverteu certos protocolos. Posicionou-se contra o espírito belicoso sueco, contra o uso do povo para fins políticos, ela amava a paz, o conhecimento e a cultura, e desprezava a ignorância. Rainha que após sua abdicação, vagou por trinta e cinco anos por uma Europa que a admirava, que colecionou obras de arte, criou teatros, estabeleceu uma relação íntima com o Vaticano, a ponto de ser uma das três únicas mulheres a estarem enterradas em seus subsolos. Que mulher foi esta, caro espectador?! Só outra mulher, tão sueca quanto, tão misteriosa e tão poderosa quanto poderia encarná-la nas telas. Sim. Greta Garbo.

Cristina tinha apenas seis anos de idade quando foi, após a morte do pai, Gustavo II, coroada rainha da Suécia. Herdeira única, educada desde bebê para ocupar o trono, o fez com total desenvoltura e competência. Foi amada e admirada por seus súditos. No entanto, já na fase adulta, preferiu a mulher à rainha, o ser humano ao símbolo, as artes e o conhecimento à espada. Suas opções e opiniões pessoais começaram a entrar em embates com seu papel de rainha. Preocupada que estava com o domínio bélico sobre a Europa, a nobreza sueca não teve tempo de olhar para onde a rainha queria de fato conduzi-los. Desde muito cedo se viu envolvida com as questões da Corte, por quem sacrificou sua infância, adolescência e boa parte da juventude, o que torna compreensível seu desejo de abdicar ao trono e se dedicar àquilo de que realmente gostava. Apesar das objeções da nobreza sueca, assim o fez, em 1654, quando tinha apenas vinte e oito anos de idade.

Os assuntos de casamento, sexualidade e romances são tratados no filme de uma forma muito criativa e saborosa. Uma das obsessões de qualquer dinastia é deixar sucessor, portanto, gerar rebentos. Em se tratando de rainhas, a cobrança é ainda maior. Em muitos momentos, os súditos esquecem da rainha e miram na mãe. Com Cristina não foi diferente. Ela conviveu com esta pressão durante todo o seu reinado. Instada a se casar com seu primo, o príncipe e herói nacional Carlos Gustavo (Reginald Owen), ela não perdia a oportunidade de declarar sua objeção ao casamento. Tanto suas posições no assunto eram verdadeiras que nunca se casou e nunca teve filhos. Portanto, não deixou herdeiros. E havia ainda uma razão urgente na pressão pelo casamento da rainha. Sem casamento não haveria filhos, e sem filhos seria o fim da dinastia Vasa. E foi o que aconteceu.

Uma pequena cena, logo no início, dá a ideia exata da personalidade da rainha. Cansada das pressões palacianas, disfarçada de homem comum, sai com seu fiel ordenança, a cavalo, pelo gélido interior da Suécia. É quando se depara com uma carroça atolada numa vala. De cima do cavalo, ela comandou e instruiu, com voz de ferro, como aqueles homens deveriam agir para desatolarem a carroça. Um exemplar típico da mulher (moderna) se misturando ao seu ofício.

E agora a parte sexual e romântica. Nesta mesma cavalgada, disfarçada de homem, como foi dito, ela chega a uma estalagem, onde vem a conhecer seu grande amor, Antônio (John Gilbert), o Conde de Pimentel, enviado espanhol para a Corte Sueca, que viera tratar justamente do casamento entre Cristina e o rei espanhol, Felipe IV. O conde não imaginava que estava se envolvendo com a rainha, fato que tomaria conhecimento quando viria a se apresentar, em Estocolmo, em audiência, com a própria! Uma sequência de cenas impagáveis, as da estalagem, principalmente aquela em que é obrigada a dividir a cama com o estrangeiro.

O que nos chama a atenção, na composição do enredo, são as surpreendentes coincidências pessoais entre Greta Garbo e a rainha Cristina. Greta parece sentir-se tão bem no papel que seu repertório corporal e oral parece não ter limites. E as semelhanças são várias.

Primeira, a nacionalidade sueca. Greta Garbo, com certeza, ainda menina, nos bancos escolares, tomara conhecimento da vida pública e pessoal da rainha. Que deleite não deve ter sido para ela, longe da pátria, rever pessoalmente essa figura histórica determinante para o seu país. Outra semelhança está em que ambas desistiram cedo de suas vidas públicas para se dedicarem à vida privada. Cristina tornara-se rainha aos seis anos e teve que abrir mão de sua vida pessoal. Não suportou, precisou abdicar, aos vinte e sete anos. Greta Garbo abdicou de sua carreira de atriz aos trinta e seis. Por motivos muito parecidos. Morte prematura do pai e investimento contumaz na construção de sua carreira de atriz. Antes dos vinte, já era admirada. Aos vinte e um já estava em Hollywood, onde imediatamente lhe estenderam o tapete vermelho da fama. E todas as responsabilidades decorrentes dela. Não teve tempo para respirar. Recolheu-se, então, por traz de sua imagem de atriz fenomenal que, como nenhuma outra, mostrava tanta intimidade com as câmeras. Mas, por razões estas e outras, preferiu ficar longe delas.

E as semelhanças prosseguem. O olhar artístico e humano, a fuga ao casamento, as incertezas sexuais, fica-nos, enfim, a impressão de que Greta não precisou fazer o menor esforço para encarnar Cristina. Ilusão, sabemos. Nada é mais penoso do que ser exuberante a cada filme, a cada flash, mesmo para quem já carrega a exuberância desde sempre. Greta, mais do que qualquer outra atriz à época, sentiu o peso de ser rainha.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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