Tempos Modernos

A despedida do Vagabundo

Por Antônio Roberto Gerin 

Quando Charlie Chaplin começou a produzir TEMPOS MODERNOS (83’), EUA (1936), já se pressentia que este seria o último filme estrelado pelo adorável Vagabundo (The Tramp). Falamos de uma época em que o cinema sonoro já era unanimidade. Época em que milhares de filmes despejavam seus intermináveis diálogos nas telas dos cinemas e os musicais dominavam a cena com suas produções suntuosas. Chaplin entendeu que era chegada a hora de calar para sempre o seu Carlitos. É com este olhar de despedida que devemos assistir a Tempos Modernos. Uma decisão difícil para Chaplin ter que se desfazer de sua genial criação, a base do seu sucesso como artista. Seria o ponto final da figura mais humana e talvez mais completa que jamais se viu como arte cinematográfica, cuja longa trajetória tornara-se a síntese da história das primeiras décadas do cinema. Este é o principal cartão de visitas de Tempos Modernos. Ter sido o último filme realmente mudo do roteirista e diretor Charlie Chaplin. A consciência de que o tempo chegara ao fim para seu Vagabundo é tão perceptível que Chaplin não poupou cuidados artísticos e estéticos, e nem pantomímicos, para elevar Tempos Modernos ao nível máximo de obra prima. Em Chaplin, Tempos Modernos simboliza o resumo mais que perfeito de sua genialidade.

O filme inicia com uma imagem inusitada, quando Chaplin, numa sequência de segundos, compara as ovelhas em movimento com o bando de operários encarneirados entrando numa fábrica. Entre as ovelhas  — atenção! —, uma é negra. É sinal de que o filme cumprirá à risca o que é declarado logo em seu início. “Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade na busca pela felicidade.” Previa-se que Chaplin iria entrar com seu Vagabundo na fábrica e de lá não mais sairia, levando talvez a narrativa a um esgotamento precoce. Felizmente, depois de dezessete minutos, numa belíssima sequência em que Chaplin nos mostra como a indústria desfigura o ser humano, vemos nosso herói sendo carregado em uma ambulância, acometido por um estresse avassalador e genialmente cômico. A mecanização, com seus absurdos gestos repetitivos, enlouquece nosso herói. Mas, para que o filme continue, o Vagabundo logo sai do hospital e a narrativa ganha as ruas, quando então vamos ficar apenas com a última parte da declaração acima, a de que a humanidade não desistirá nunca da sua busca pela felicidade.

E como será essa busca? Para Chaplin esta é uma resposta simples. Por meio do afeto. O Vagabundo se apaixona. Por uma órfã andarilha. Como ele. Ela se chama Ellen Peterson, encarnada por Paulette Goddard. O Vagabundo então se dá conta, assustado, de que ele terá que trabalhar se quiser constituir um lar. E ele quer um lar. É o seu sonho. É o prenúncio do seu fim, por isso ele sabe que terá que buscar um lugar onde se recolher. Provável em nenhum filme anterior de Chaplin um papel feminino tenha ocupado tanto espaço como protagonista. A andarilha movimenta os passos do Vagabundo. Motivado pela paixão, começa para ele o périplo em busca de um emprego (felicidade) numa Nova Iorque arrasada pela depressão econômica, fruto da quebra da Bolsa de Valores, em 1929.

Nem precisamos dizer que nada vai dar certo para o Vagabundo. E não tem que dar mesmo! Senão, como ter filme? O velho Chaplin necessita de pretextos, de infortúnios, de enganos, da ineficiência do Estado, do bom e disponível policial, enfim, tudo é muito bem arranjado para que ele possa exibir diante de nossos olhos seu encantador repertório de pantomimas desenhadas pela precisão artística, pelo gesto afetivo e pela ironia cáustica. A cena inicial, ainda na fábrica, em que ele surta, é o exemplo mais contundente e memorável do uso do corpo como uma linguagem de irreverência e grito. Portanto, como não esperar que Chaplin nos desenhe, na tela, em preto e branco, o próximo gesto, com a leveza e a graça de quem carrega em si o peso de uma humanidade esperançosa?

Cabe falar um pouco do processo criativo do artista Chaplin. Quando iniciava uma nova produção, não necessariamente tinha um roteiro em mãos. Pasmem! Ele não começava o projeto sentado em cima de um roteiro seguro e testado. Charles Chaplin trabalhava com argumentos. Tinha a ideia do que queria, mas não sabia por onde exatamente encaminharia a construção da narrativa. Juntando-se à sua mania de perfeição, podemos imaginar o alto custo de esforços e dinheiro despendidos até a finalização do projeto. Dezenas de refilmagens de uma única cena. E, não à toa, às vezes se obrigava a refilmar determinada cena pela simples razão de mudanças na direção da narrativa. A antiga cena não mais se encaixava na nova proposta. Para quem vai ao cinema e vê a arte pronta, não pode imaginar o hercúleo esforço mental e financeiro de Chaplin para dar à sua criatura o acabamento artístico que ela merecia. Ela, e o público.

Chegada a hora de irmos ao ponto central da nossa discussão. É visível a inquietude de Chaplin em ter que trabalhar com o sonoro. Esta preocupação já havia transparecido antes, em menor intensidade, em 1931, com Luzes da Cidade. E, agora, eis que seu grande conflito, manter o Vagabundo mudo, sem a voz dos diálogos, reaparece. Com mais força. Teria mesmo o Vagabundo que falar alguma coisa? Chaplin construiu uma linguagem corporal lúcida, eloquente e fabulosamente original! Pra que a voz se o corpo diz tudo o que é necessário para a construção dramática da narrativa? Carlitos é corpo, e o corpo é a sua voz.

Chaplin vai resolver esta questão de uma maneira muito habilidosa. Nenhum som sairá da boca de qualquer personagem. Mas sairá por outras circunstâncias. Da vitrola, quando uma voz explica as absurdas utilidades de uma máquina alimentadora. Dos telões instalados na fábrica, de onde sai a imagem e voz (muda) do patrão. Sons de trilhas sonoras que acompanham, quase na intimidade, a evolução das cenas. Temos ainda os curtos-circuitos das máquinas, os sinos, a campainha, apito, tiro de revólver, notícias de rádio, sirene de camburão, e até ruídos de indigestão estomacal. Todos os sons possíveis estão no filme, menos a voz humana in natura. Diante disto, Tempos modernos parece ficar a meio caminho em direção ao sonoro. Mas, na sua essência, permanece mudo.

E chegamos ao ponto onde vamos ouvir o som da voz do Vagabundo. Chaplin reservou o momento para a genial última cena do filme, quando ele canta e dança no salão de um Café em que trabalha com sua amada. Nervoso, ele se põe a ensaiar e a decorar a letra da música. Ora, deveríamos ouvir as palavras emitidas pelo Vagabundo! Só que no salão há uma outra apresentação musical, um coral, cujas vozes e instrumentos abafam a voz de Chaplin. O Vagabundo continua mudo, portanto. Até entrar no salão para executar o seu número, quando perde a cópia da letra da música, o que o obriga a inventar sons ininteligíveis e incompletos para disfarçar o esquecimento da letra original. Ele fala, mas ele não fala, eis! Apenas grunhidos! E assim, o máximo que Chaplin permitiu para a história do seu Vagabundo foi que tivéssemos uma vaga ideia do timbre da sua voz. O que valeu mesmo e o que nos fica é a última cena memorável do seu último filme mudo.

Para finalizar, um toque de memória afetiva. A maçã de Chaplin. Ela aparece em duas ocasiões no filme e nos remete à sua infância, quando o menino Chaplin vivia em um orfanato em Londres. Certo dia cobiçara tanto uma maçã, símbolo de requinte, que, ao tentar se apoderar dela, acabou sendo ferozmente punido pela instituição. Sendo um pouco sentimental, parece-nos, na despedida do Vagabundo, Chaplin também se despede de sua dolorosa maçã.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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