Trevas

Por Geraldo Lima

O Comandante mandou que ele fosse verificar se havia algum ser entranhado naquele breu. Mandou-o sem o auxílio de nenhuma luz, como se ele tivesse algum parentesco com as criaturas que enxergam nas trevas mais densas. Como foi o Comandante que mandou, o soldado obedeceu. Antes, porém, passou-lhe pela cabeça indagar-lhe (mais por causa do medo que o aterrava) por que havia escolhido exatamente ele, um medroso confesso. As razões de tal escolha ficariam, como podem supor, ocultas para sempre. Imaginava, no entanto, que havia na escolha do Comandante um quê de maldade: há dias ele vinha notando que seu jeito titubeante lhe despertava impulsos sádicos. Esses impulsos, num crescendo, haviam chegado às raias da tortura psicológica. Para seu pavor, a situação ia piorando cada vez mais. Dava bem para prever a que nível chegaria essa escalada de maldade explícita: em breve, culminaria numa sessão de tortura física diante de todos. E, como se tratava do Comandante, ninguém, absolutamente ninguém, faria nada para contê-lo. No escuro, tateando a esmo, o soldado foi em busca do ser que dera leves sinais de rondar por ali, talvez à espreita de alguma caça. Esses sinais, ouvidos pelo Comandante, eram ora o crepitar de capim sendo esmagado por patas ou por pés (supondo, nesse caso, tratar-se de um humano), ora o estalido de um galho sendo quebrado, ora uma espécie de rosnado ou latido, ora um seixo sendo deslocado pela ação de um chute acidental, ora a respiração ofegante de quem age sob uma tensão infernal… Ele não tinha ouvido ruído algum, mas o Comandante, com sua audição aguçadíssima, afirmara ter ouvido mais de uma vez. Vem dali, ó, é só prestar atenção que vocês escutam. A impressão que dava era esta: exceto o Comandante, ninguém mais da tropa tinha ouvido ruído algum, fosse do que fosse. Mas quem teria coragem de contestar o Comandante? Quem teria coragem de chegar diante dele e lhe dizer sem vacilar: Comandante, o senhor se enganou, isso aí não deve ser nada, são apenas ruídos comuns na noite, sons dilatados pelo grande silêncio que costuma reinar a essa hora. Quem teria coragem de dizer algo assim, tão afrontoso? Ninguém ousaria tanto, pois ninguém queria levar um tiro nas fuças e ser deixado ali, apodrecendo ao relento. Com um pouco de alívio, o soldado deu-se conta de que a sua cor escura lhe servia muito bem de camuflagem naquele momento. Mesmo assim, o medo persistia. Galgava-lhe as pernas, fazendo-as tremer, e oprimia-lhe a mente, obrigando-a a parir imagens assustadoras diante dos seus olhos. Porém, era só isso. O ser real, autor daqueles supostos ruídos que incomodaram o Comandante, até agora não tinha se materializado. Ele estava ali, no meio do mato coberto pelo breu, e não ouvia ruído estranho algum. Então, que espécie de bicho seria aquele que estava rondando o acampamento? Seria mesmo um bicho? Avançou mais para dentro da noite tenebrosa, mesmo porque não havia como recuar. Caso recuasse, sofreria, sem dúvida alguma, um castigo severo, do qual, caso sobrevivesse, não se esqueceria jamais. De repente, numa brusca alteração de ânimo, o soldado sentiu vontade de topar com a criatura que estava lhe causando todo aquele transtorno. No meio do escuro aterrador, sem arma alguma (o Comandante quis que ele fosse assim, de mãos limpas, de peito aberto), cresceu, agigantou-se, perdeu a noção de perigo, e a sensação de medo, que antes quase o travava, transmudou-se em algo que estava na fronteira entre a insanidade e a bravura. Gritou em desafio: Quem está aí apareça agora! Eu não tenho medo de você! Eu não tenho medo de nada! Apareça aqui na minha frente. Anda, miserável, apareça! Esperou alguns segundos. Só dava pra ouvir a própria respiração descontrolada e o coração batendo fora do peito. Um calafrio percorreu o seu corpo de cima abaixo. Não sabia mais se era por coragem ou medo, mas continuou a desafiar o ser que, com seus ruídos tão sutis, praticamente imperceptíveis aos demais, havia chegado aos ouvidos do Comandante. Os sensíveis ouvidos do Comandante! O soldado não sabe até hoje se saiu daquele breu com as próprias pernas ou se os rapazes, obedecendo a ordens superiores, foram lá e o arrastaram de volta ao acampamento. Deu por si diante do Comandante, e todo o seu ser estava tomado de ira e desobediência. Era o Comandante a criatura que ele desafiava agora. Não tenho mais medo de você!, gritava alucinado. Eu não tenho mais medo de porra alguma! Os lábios grossos tremiam enquanto ele rangia os dentes com ódio incontido. Quando sentiu na cara os dois tapas dados pelo Comandante, para que voltasse ao normal, a fera que havia se apossado dele nas trevas cravou as garras no pescoço do superior – seu pescoço branco e fino – e só não o matou porque centenas de mãos arrancaram-nas à força. Depois, em meio a grande confusão, jogaram-no de volta ao escuro aos berros: Vai embora daqui! Anda, cara, vai embora! Fuja, tá esperando o quê?! Enquanto se embrenhava no mato e na noite, numa fuga desesperada, o soldado ouvia ainda as vozes dos companheiros enxotando-o feito um animal perigoso e imprevisível.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Conto publicado, originalmente, no livro Uma mulher à beira do caminho [Editora Patuá].

Autor: Geraldo Lima

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Autor de Uma mulher à beira do caminho [contos] e UM [romance].

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