A Gata Abusiva (I)

Por Antônio Roberto Gerin

Tenho quinze anos, indo pros dezesseis, e tenho uma gata que se chama Jade. Linda, dengosa, companheira, a gata que eu sempre quis ter. Faz seis meses que ela mora comigo. Foi uma festa os primeiros dias. E continuou sendo nos seguintes. Era meu sonho, de anos, ter uma gata. E quanto não me custou convencer minha mãe…! Enfim, consegui. Tenho minha gata. Mas não é uma gata normal. Só percebi com o tempo.

Hoje esteve aqui em casa uma tia, a tia Madalena, que é bióloga, mora no Rio, e estava de passagem com destino a Chapadão do Céu, que, confesso, não sei onde fica. A primeira coisa que ela viu ao entrar em casa foi a gaiola encostada à parede, onde a Jade estava presa. O que é isso!? – perguntou, sem esconder o espanto. Uma gata… Presa! Numa gaiola!? Mais essa agora… Parece uma jaula! E depois desabafou. Merecia uma denúncia! Minha mãe tentou contemporizar. Exagero, Lena! Mas minha tia não se conformava. Como é que você deixa sua filha fazer uma coisa dessas? É temporário, Lena! Fiquei insegura, mas logo me dominei, empinei o queixo e antes que minha tia dissesse mais alguma coisa, retruquei. A gata é minha, tia. Faço com ela o que eu quiser. Ela vai continuar presa. E ironizei. Aí, na jaula. Tia Madalena me olhou, e disse. Sorte sua que você é minha sobrinha!

Este foi então o diálogo desta manhã de domingo, em minha casa, onde moramos eu, minha mãe e Jade, a enjaulada, presa por necessidade, temporariamente, como disse minha mãe. Acreditem. Jade se transformou, ao longo dos meses, numa gata abusiva.

Ainda pequena, logo se revelou uma gata fujona. Não à toa, traz no currículo uma fuga da casa anterior. Perdera-se na rua. Mas não perdeu o hábito de querer fugir. Dentre as tantas peripécias, além de ter alcançado o apartamento do vizinho através do forro do corredor, o último lance de fuga foi ter, apesar da tela, pulado do primeiro andar, lá embaixo, caindo sobre uma motocicleta estacionada, daí estatelando-se no chão. Ficou imóvel, fingindo-se de morta, à espera de socorro. Nem miava. Avisada pelo porteiro, minha mãe desceu correndo.

Foi crescendo, acostumou-se à casa, resolveu ficar de vez. E se apegou a mim. Tão manhosa, tão dengosa, a ponto de eu não aguentar mais vê-la se espichar à minha frente, barriga para cima, à espera das minhas mãos. Me persegue pela casa, adiantando-se e se espichando no chão. Eu estico o passo por cima dela, ignorando-a. Até que, no próximo ataque, vencida, eu me agacho e encho seu pelo eriçado com a carícia dos meus dedos. E ela rola, de lado a outro, me oferece o corpo todo. Alívio, só quando está dormindo. Ou quando se aboleta no peitoril da janela, no lado de fora, e fica observando o que acontece na rua. Até que acabaram as férias e eu retornei pra escola. Jade ficou só, em casa. Cada vez mais inconformada com minhas longas ausências.

As investidas em busca de atenção e afeto se intensificaram. Passou a ocupar todo meu espaço, a tomar todo meu tempo. Eu perdia a concentração. Não, pelo amor de Deus, Jade, não! Quero tocar meu violão, mas como! Tocar meu ukulelê, ouvir minhas músicas, quero pintar minhas aquarelas, estudar, quero falar com minhas amigas, quero sair, viver, droga!

Jade aos poucos começou a me afrontar. Um dia cheguei da escola, encontrei duas cordas do meu violão arrebentadas. Assim ela não me perderia para os meus momentos de música. Mas tinha o ukulelê. Até parece! Dias depois, encontrei-o na sala, a capa com rasgos de unhas, o corpo de madeira do ukulelê arranhado. Claro que ela buscava as cordas!

Dedico tempo do dia me maquiando, às vezes à noite, diante do meu espelho redondo que deixo sobre a bancada de estudo. Sou exímia maquiadora, tenho prazer, aprendo técnicas. Encontrei o espelho espatifado no chão! Ah, perdi o controle! Parti pra cima dela. Sem convicção, admito, mas aos gritos. Jade logo perceberia que havia passado dos limites. Usou de um estratagema inesperado. Fez um buraco na minha cama box, por baixo da base, furando o tecido. Ali se esconde quando as coisas não vão bem pro seu lado. Fica, nestes instantes, fora do alcance das minhas raivas. Mas como ter raiva de uma gata tão linda! Não resisto, agacho-me, chamo-a, com dengo na voz. Aí então ela aos poucos reaparece e tudo acaba em beijos.

Mas não desiste! Arranha minhas cortinas, deita-se sobre o meu livro, caminha pelas teclas do meu computador, toma abusivamente conta da minha vida! Foi, aos poucos, apoderando-se de tudo que era meu. E foi se tornando quase que insuportável pra mim. Meu afeto escondia-se agora atrás da minha impaciência.

E sem que eu esperasse, ela acabou indo além do que eu podia imaginar. Passou a destruir meus fones de ouvido. Um a um. Minha mãe comprava, não dava pra uma semana. Três em um mês. Dois num prazo de três dias! Cento e quarenta e quatro reais cada um! Tenho o hábito de ouvir música, enquanto desenho, enquanto estudo, enquanto me preparo pra dormir. Durante meu sono, pesado, Jade corta o fio. Por castigo (falta de responsabilidade, né, minha filha!), minha mãe parou de me comprar fones. Eu até argumentei. Mãe, você está justo fazendo o que a Jade quer!

Até que chegou o dia em que tudo desaguou em choro e ódio. E foi por causa do que vou contar que Jade foi parar na gaiola. Passou a ter ciúmes do meu coelho de pelúcia, que dorme comigo, aconchegado em meu rosto, todas as noites.

Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai me presenteou com um coelho de pelúcia, da cor suavemente rosa. Havia um mecanismo que fazia com que suas enormes orelhas se abanassem, enquanto tocava uma doce música. Nas patas dianteiras, presa, uma enorme cenoura! Era comum, e delicioso, meu pai usar uma das enormes orelhas pra fazer cócegas nas minhas orelhas! O coelho me parecia enorme aos dois anos. Dormia a meu lado, silencioso e simpático, por quem eu estaria desde então afetivamente presa, como se ele fosse fazer eternamente parte da minha vida. E faria, já que eu ia pelos meus seis anos quando meus pais se separaram. O coelhinho passou a me acompanhar todas as noites, nos meus momentos de saudades do meu pai. Era a presença que eu tinha dele. Jade passou a dormir entre meu rosto e o coelho. Não escondia o ciúme. Até que um dia o destruiu!

Passei vários dias em silêncio. Rejeitava minha gata, tentando entender por que razão as coisas não podiam ficar cada uma delas em seu devido lugar. E pensava no que eu havia feito de errado pra que Jade se permitisse me tratar como propriedade sua. Porque era assim que eu me sentia, entregando minha vida aos caprichos dela. Aí veio a ideia da gaiola. De aplicar um corretivo, mudar os hábitos da minha gata.

Voltando ao diálogo desta manhã de domingo, depois que eu terminei minha fala arrogante, depois que eu havia dito pra minha tia que a gata era minha e que ela continuaria presa, eu ainda pensei em dizer mais algumas coisinhas. Tipo. Pode ir lá, tia, me denunciar. Por maus tratos! Tira uma foto e publica nas redes sociais! Mas não. Disse mais nada. Olhei pra minha gata, me abaixei até o chão, me apoiei nos cotovelos, e através da grade da gaiola ofereci a Jade os meus lábios. Ela, como sempre faz, aproximou-se, fechou os olhinhos verdes e me beijou.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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