A Gata Fujona (III)

Por Antônio Roberto Gerin

Percebo alguns movimentos inquietos da minha gata Jade. E não é por causa do Ioda, com quem ela já estabeleceu uma amizade cotidiana, na linha irmã mais velha. Aceita-o com carinho e se irrita quando ele não quer brincar. Vai até o corredor e chama-o com miados cada vez mais altos, subindo o tom da irritação. Até Ioda aparecer e se apresentar para as brincadeiras, de forma atabalhoada, se jogando sobre o corpo da Jade. Travam batalhas. Lançam-se um contra o outro. Ioda coloca suas patas de tigre sobre Jade, esperando que ela se espiche no chão e o acolha. Às vezes, ficam longos e demorados minutos neste jogo de quem agarra quem. Quando Ioda percebe que vai ser dominado pela força da Jade, foge um pouco mais adiante, à espera. Estira-se no chão, os olhos atentos. Arma-se, pois sabe que em seguida será atacado. Ao longe, meu cãozinho Totó observa, curioso. Não se atreve a participar da brincadeira, mas não arreda pé. Há em Totó uma confusão emocional. Ele está diante de uma fêmea e de um macho. São, para ele, códigos diferentes, o que o deixa confuso e arredio. Mas a curiosidade fala mais alto. Fica ali, carrancudo, preso à soleira da porta, observando a cena.

Jade está inquieta. Vejo-a caminhar pela casa, sem pouso. A quarentena despertou nela o antigo vício da fuga, pressinto. Voltou a ter necessidade de espreitar essa possibilidade. As portas entreabertas voltaram a chamar-lhe a atenção. E vasculha as janelas com um olhar tristonho, mas presa à sua instintiva intuição de oportunidade. Está pronta para fugir a qualquer momento.

A privação forçada da liberdade de ir e vir acaba gerando em nós efeitos colaterais. Entendo que todos, nestes momentos de pandemia, estejamos passando por isso. Criamos uma necessidade urgente de sair. Que seja pra nada, desde que saiamos! E reconquistemos o direito sagrado de sair. Talvez pelo reflexo do longo isolamento, meu e de minha mãe, a liberdade nos parece ser um bem guardado em alguma gaveta especial. Trancada a sete chaves! O terrível sentimento de que alguém, invisível, se postou à nossa porta, impedindo-nos de atravessá-la. Até podemos sair, mas esta sombria invisibilidade nos acompanhará. E Jade, me ficou claro, está ela também presa à necessidade de se expandir no espaço. O sintoma mais visível é que passou a roubar as nossas máscaras. A se apoderar delas. A destruí-las. Como se esse fosse o desejo meu e de minha mãe, na espera do dia em que não mais precisaremos nos submeter a elas.

Ao nos ver colocar a máscara, toda vez que estamos para sair, Jade nos observa com inequívoca curiosidade. Jade vê. Jade pensa. Jade maquina. Pois encontrei minha máscara preferida, em tons azuis pontilhados de vermelho, rasgada sobre o sofá. Depois outra, agora da minha mãe, que surpreendeu Jade correndo com a máscara presa à boca pela alça, subindo pelo sofá, alcançando a janela aberta, e virando-se na direção do meu quarto. Só que ela parou a meio caminho, fora do meu alcance, deitada no peitoril da janela, observando a rua, enquanto vagarosamente ia destruindo a máscara! Com a irritação de quem não pode sair! Com raiva deste símbolo de aprisionamento facial! Depois de certo tempo, apontou à janela do meu quarto, seu corpo escondido atrás da cortina. Olha atenta, desanimada e triste. A máscara estava destruída, mas seu desejo de fuga não. Sua alma inquieta ilumina seus olhos tristes deitados sobre mim, em súplica. Depois ela desce e se aninha em meu travesseiro.

Certa noite, despertei assustada. Jade não estava a meu lado, como de costume. Só Ioda, acima da minha cabeça, aninhado na ponta do outro travesseiro. Eram três horas da madrugada. Cadê Jade? Levantei-me, tomada de pressentimento. Não a encontrava pela casa. Mas vi que a porta da biblioteca estava aberta, assim como a porta (da biblioteca) que dá para o banheiro. Em cima, a janela basculante do banheiro, que dá para o corredor externo do prédio, também aberta. Minha mãe, que sempre tem o cuidado de fechar a porta, havia esquecido. E Jade, evidente, esperando dias por esta oportunidade, com certeza se aproveitou. Acordei minha mãe, abrimos a porta da sala, as luzes do corredor se acenderam com a nossa presença. Bem ao longe, a meio caminho do corredor em direção ao fundo, onde existe um pequeno jardim com folhagens cultivadas pela moradora do último apartamento, pude ver uma das minhas máscaras coloridas jogada ao chão. Ah, Jade! Chamei por ela, logo ouvi seu miado choroso, pedinte, assustado. Escondia-se entre os vasos de flores. Me esperava, tomada de medo e ansiedade. Aninhou-se em meu colo e num ataque de desespero pôs-se a me beijar e a me pedir carinho. Aconchegou-se a meu lado, na cama. Eu podia perceber sua respiração ofegante, entrecortada por breves suspiros. Às vezes, ligeiros espasmos. Até adormecer profundamente.

Leia na sequência: A Gata Abusiva (I), A Gata Triste (II)

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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