A Gata Triste (II)

Por Antônio Roberto Gerin

Quando apresentei minha gata Jade, no meu relato anterior, a que dei o título de A Gata Abusiva, de tanto que ela passou a tomar conta da minha vida, a ponto de querer eliminar tudo que pudesse me afastar dela, e só pra dar alguns exemplos, tipo quebrar meu espelho de maquiar, cortar tantas vezes quantas fossem necessárias o fio do meu fone de ouvido pra que eu não ouvisse música, arrebentar as cordas do meu violão, enfim, tudo era destruído pra que minha atenção se voltasse exclusivamente para ela, pois, tanto foi a minha aflição em falar da minha gata que deixei de apresentar, de propósito, o meu querido cão maltês, o Totó. Sim, o delicioso cãozinho que ganhei da minha mãe quando eu acabava de fazer sete anos. Portanto, lá se vão nove de convivência! Mas agora, com a chegada da Jade, as coisas mudaram um tanto. O Totó ficou magoado. E não foi pouco. A Jade, evidente, passou a dominá-lo como se ele fosse um brinquedinho casual. Totó se ressentiu, mudou alguns hábitos, em vão tentou cercar seu território, enfim, renunciou à vida e passou a dormir na cama da minha mãe. Ficava lá quase o dia todo, disposto a brigar pelo pouco espaço que lhe restara. Abatera-se-lhe uma tristeza silenciosa, que se refletia inclusive no seu latido, que mais parecia um grito de socorro. Entronizado em seu maravilhoso mundo de cãozinho bajulado por sua rara beleza, não contava com esse terrível lance! Aliás, e aqui introduzo meu segundo relato, nem a própria Jade, a protagonista da história, contava com o que viria a acontecer. Ela também iria mergulhar em silenciosa e prostrada tristeza.

Meu pai acaba de me presentear com outro gato! Sim, macho. Ioda. Agora somos cinco nesta casa. Eu, minha mãe, Totó, Jade e Ioda, o caçula! Todos isolados pela pandemia do coronavírus. E tivemos que, em pouco espaço, ajustar nossas convivências. O que não tem sido nada fácil.

Jade não se conformou absolutamente com a chegada do Ioda. Surpreendeu-nos suas reações. Encolheu-se, desapareceu, abandonou o afeto. Passou a me rejeitar. Recusava-se a entrar no meu quarto. Em hipótese alguma! Caminhava pelo corredor, nem olhava pela porta adentro. Sequer entrava pra comer e beber. Carinhos, abraços e beijos? Sumiram. Tive que colocar a comida e a água no corredor, pra que ela não morresse de fome e sede. E o que come é quase nada. Deprimiu-se. Perambula pela casa, sem rumo. Até o Totó, sobre quem ela tinha total domínio, passou a persegui-la, atrás de brincadeiras. Tenta encurralá-la com latidos, que ela despreza! Por mais que eu tentasse pegá-la no colo, afagá-la, ela, arredia, fugia. Era como se deixasse de existir. E eu me perguntava. Como tirar a Jade dessa tristeza…?

O Ioda chegou novinho, quase moleque, tive que dispensar a ele muita atenção, e, confesso, desliguei-me momentaneamente da Jade. Não que a tirasse do meu campo de afeto. Pelo contrário. Sentindo-lhe o desamparo, redobrei-o. Em vão. Ela me olhava, seus olhinhos verdes brilhavam, mas não tomava qualquer atitude. Mantinha-se distante, longe do meu quarto, pra ela agora o ninho de suas dores.

Pobre Jade! Fico-a imaginando deitada sobre o sofá, pensativa, os sobrolhos caídos, os olhinhos quase se fechando em atitude de alheamento. Meu Deus, Jade, nós te amamos, eu, o Ioda, até o Totó! Mamãe te adora! Venha pro quarto! Eu, na minha angústia, imaginando todos nós juntos, esparramados sobre a minha cama. Sonho até besta, sentimental, mas era o que eu tinha pra me oferecer.

Me lembra um pouco dos tempos em que Jade passou presa na gaiola, um método temporário que arranjei pra corrigir alguns hábitos possessivos dela. Não acho que errei! Ademais, foram só alguns dias, e logo comecei a abrir a portinhola. Ela podia entrar e sair. Com a chegada do Ioda, acabou a gaiola, o fato está esquecido, e espero que ela não tenha guardado mágoas. Ela só tem que entender que meu amor continua o mesmo, mas que agora vem a necessidade de aceitar que tudo na vida se divide. Inclusive o afeto! No entanto, vejo-a passar pelo corredor, diante da minha porta aberta, sem sequer olhar.

E assim se passaram muitos dias nessa apatia e distanciamento, que Jade fazia questão de manter a todo custo. Hoje à tardinha fui à padaria comprar chocolate pra fazer meu café cremoso, o mesmo café que eu costumava tomar com minha mãe todas as manhãs de domingo, no Frans Café, antes da pandemia. Quando retornei, a Jade não estava dormindo no sofá, como eu a havia visto antes de sair. Pressentindo algo, corri para o meu quarto. Jade estava deitada na minha cama! E logo percebi. Tinha rasgado boa parte do livro que eu estava lendo, As Aventuras de Tom Sawyer, que minha mãe havia acabado de me comprar. Sobre o peitoril da janela, o Ioda, sentado, orelhas em pé, a tudo observava, maravilhado! Num primeiro momento me desceu ao rosto raiva misturada à frustração. Mas logo me recobrei. Afinal, minha Jade tinha voltado!

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

1 pensamento em “A Gata Triste (II)”

  1. Não sei se chegou até você o comentário que fiz. Meu forte não é o computador. Vocês do teatro e das artes em gera, nos ajudam a tornar mais respirável o ar intransportável poluído por vírus e pela política do “bozo”. Obrigada

Deixe um comentário