O Sétimo Selo

Jogando com a morte

Por Antônio Roberto Gerin

Seja qual for a área do conhecimento humano, e de sua atuação, incluindo-se aí as religiões e as artes, um tema nos aflige por toda vida: a morte. E às vezes nos confundimos em querer saber se exatamente o que nos aflige é o ato de morrer ou o que acontecerá depois da morte. E aí entra uma temática muito cara a Bergman: a existência de Deus. E essa existência é questionada quando nos deparamos com o silêncio Dele. Silêncio absoluto, que exige de nós uma atitude singular. A crença como fonte da existência divina. Sem a fé, Deus não existirá. A não ser que Ele venha até nós e quebre o seu silêncio. Este é exatamente o diapasão narrativo do premiado filme O SÉTIMO SELO (95’), roteiro e direção de Ingmar Bergman, Suécia (1956). Reagir dolorosamente ao finito é nossa condição humana. Esta é a angústia existencial que percorre todo o filme O Sétimo Selo. E ele nos sugere uma outra angústia, esta bem mais prática. Afinal, o que fazermos com nossas vidas enquanto a morte não chega?

Antonius Block (Max Von Sydow), retornando a seu castelo, no norte da Suécia, após dez anos de batalhas nas Cruzadas, recebe a visita da Morte (Bengt Ekerot), uma imagem tenebrosa, vestida de manto negro e face esbranquiçada. É a morte, sim, em pessoa, que vem buscá-lo. A reação de Antonius é rápida. Diz ele, “meu corpo está pronto, mas eu, não!”. E imediatamente desafia a Morte para um jogo de xadrez, visando, assim, a protelar o seu fim. Se vencer, a Morte não o levará. E é neste jogo com pedras marcadas com a Morte que o protagonista vai se aproximando de seu castelo, passando por aldeias dizimadas pela peste negra. Poucos se salvarão, e Antonius quer, evidente, ser um deles.

O filme pode ser entendido a partir de vários ângulos, do histórico ao psicológico, passando sempre, com toda sua crueza, pela mísera existência humana. Estamos falando de uma Idade Média, século XIV, onde o ser profano é totalmente subjugado ao sagrado. E, paradoxalmente, é do sagrado que o homem tira forças para aguentar a servidão econômica e social a que está impiedosamente submetido. É por este cenário de intolerâncias religiosas, de culpas e horrores, acrescido da peste que assola a Europa e dizimaria um terço da sua população entre 1347 e 1352, que Antonius Block vai transitando, silenciosamente, querendo entender o que está além de qualquer entendimento. Ele quer preparar sua alma através da compreensão de um Deus que ele não consegue ver. Se ele não consegue ver esse Deus, o que o espera depois da morte?

A contrapartida de Antonius é seu escudeiro, Jöns (Gunnar Björnstrand), descrente, zombador de si e dos outros, com um nível de consciência raro para a época, mas que vai também, aos poucos, sendo arrastado para a escuridão. E, como é de se esperar, antes de chegar a seu castelo, Antonius Block recebe da Morte o xeque-mate. É o fim. Para ele, para Jöns, para todos. Não, todos não.

No meio de tantas mazelas, autoflagelos e sofrimentos, brilha, incólume, a arte. E a arte vem representada pelas figuras de um casal de artistas de circo itinerante, Mia (Bibi Andersson) e Jof (Nils Poppe). Eles, e o bebê. Alguns atribuem ao casal com criança a função dramática de simbolizar a sagrada família. Pode ser. O filme permite chegar a este simbolismo. Aliás, o filme é cheio de simbolismos, a começar pelas caveiras cuidadosamente dispostas em algum cantinho do enquadramento de algumas cenas. Mas conhecendo Bergman, pode-se também atribuir ao casal a função de representar a arte confrontada com a religião, arte que pode ser a cura para os males que aprisionam a raça humana à condição de títere do divino. Preocupado em participar de um festival de teatro, alheio ao jogo mortal, o qual, no entanto, Jof pressente, o casal muda o caminho em direção ao sul e, com isto, se vê livre da obrigação de participar da dança da morte. A arte sempre sobreviverá, pois ela não é o homem, ela é apenas sua sublime representação.

Ainda insistindo na discussão da importância decisiva, para Bergman, da arte como alternativa redentora à infortunada existência humana, vamos ressaltar a cena da taberna, em que o ator Jof é acusado injustamente de raptar a mulher do ferreiro. O artista é submetido a humilhações terríveis, diante de uma taberna cheia de beberrões e comilões, e todos, sem exceção, aplaudem, às gargalhadas, o festival de maldades. Esta cena não representa só a Idade Média, ela é o passado, o presente, e será o futuro. Jof é apenas alguém que precisa receber o lixo moral que escancara as nossas vergonhas e, por coincidência, segundo a percepção bergmaniana, a lixeira é a arte, o ponto sensível que nos assombra. Afinal, como dissemos, é ela, a arte, que nos revela a nós mesmos.

E a última cena, a dança da morte, antológica, sem dúvida, uma pintura de Rembrandt, uma pintura exata do nosso destino. É nesta pintura que vemos eternizado o jogo invisível da nossa existência. Em algum momento, já estamos avisados, faremos parte deste último ritual.

Enfim, o filme O Sétimo Selo nos apresenta uma realidade que conhecemos de sobra. Ele não inventa nem especula. Por isso, como seres humanos que somos, viajantes desta terra, temos que nos submeter à nossa condição finita. Deus pode existir ou não. Mas uma coisa é certa. Enquanto estivermos vivos, a morte será nossa companheira inseparável.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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