A Noviça Rebelde

Quando a ficção se confunde com a vida

 Por Antônio Roberto Gerin

A primeira pergunta que se pode fazer sobre o filme A NOVIÇA REBELDE (174’), direção de Robert Wise, EUA (1965) é a seguinte. O que faz este filme ser tão apaixonante? Ainda hoje é uma das maiores bilheterias no mundo, e quando estreou, logo superou E o Vento Levou, até então o filme que mais espectadores havia levado às salas dos cinemas. Mas isto são apenas estatísticas. Engrandece o filme, mas não explica o sucesso dos dias de hoje. Portanto, o que se tem que colocar é outra questão. Como um filme, musical, longo, do tempo em que existia a tal intermission, leia-se, intervalo, filme de três horas de duração, pode ainda atrair o interesse de espectadores em pleno século XXI, o século da transitoriedade, do descartável, da impermanência? Óbvio, a primeira razão para explicar o sucesso vem de pronto. É um belo de um filme! No entanto, este sucesso talvez não reflita o contido entusiasmo que se costuma dedicar aos grandes clássicos, tidos como coisa de cinéfilo. Neste caso, A Noviça Rebelde teria que nos oferecer muitos atrativos, pois se trata de um filme que nos parece um tanto deslocado em um mundo cuja percepção da realidade passa distante do romantismo, do lúdico, de melodias tão sonoras que grudam em nossa alma e fazem brotar emoções dos nossos olhos. Diferente das batidas modernas, onde a violência da percussão abafa as sutilezas das notas, o mundo retratado em A Noviça Rebelde é lento e melódico. Mas, apesar de tudo, há, sim, pessoas dispostas a sentar no sofá e curtir, por três horas, A Noviça Rebelde, e fazer destes momentos um belo refúgio que nos leve para bem longe de um cotidiano tão barulhento quanto irritantemente fugaz. A Noviça Rebelde provoca em nós um memorável reencontro com o cinema.

O filme é baseado em uma história real. A família Von Trapp existiu. Rica, sofreu com a crise financeira da década de trinta, eco do colapso da bolsa de valores norte-americana, em 1929. A família, agora pobre, representada pelo viúvo, com sua nova esposa Maria, uma ex-noviça, e por seus sete filhos, viu-se obrigada a cantar para ganhar dinheiro. Para o capitão da marinha austríaca era algo humilhante, mas tem-se que sobreviver. Até que, em 1938, com a anexação, pela Alemanha, da Áustria, a família, anti-nazista, viu-se obrigada a fugir. Desembarcaria nos Estados Unidos e lá continuaria sua bem sucedida trajetória musical. Assim temos o núcleo dramático, retirado da realidade, para compor um roteiro que, para chegar às telas, em 1965, teve que percorrer um curioso, mas sólido caminho.

O filme é baseado no premiado musical de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, The Sound of Music, que entraria em cartaz na Broadway em 1959, que, por sua vez, é livremente baseado em um filme alemão ocidental, Die Trapp-Familie, de 1956, que, por sua vez, baseara-se no romance biográfico The Story of Trapp Family Singers (1949), escrito pela própria Maria Von Trapp, a verdadeira. Este é o pedigree do roteiro do filme A Noviça Rebelde. Só que, pelas mãos espertas de Ernest Lehman, o roteiro se distancia da realidade dos Von Trapp, pois era preciso dar um toque romântico para que o filme alcançasse o resultado musical comercialmente desejado. Tudo bem, nenhum pecado nisso. Entendemos que o capitão Von Trapp do filme não pode ser igual ao capitão Georg Von Trapp da vida real. Este, dizem, parece ter sido bem mais bonzinho que sua personagem homônima das telas. Nem Maria, a noviça rebelde, seria o retrato da Maria que escreveu as memórias da família. Mesmo porque, a Maria real, a Von Trapp, teria confessado que se casara com o capitão sem amá-lo. Ora! Fato inconcebível para uma Hollywood que existe para oferecer ao público inesquecíveis momentos de amor! E momentos inesquecíveis são o que A Noviça Rebelde nos oferece. À farta.

Há outras razões para estocar pipoca e sentar três horas diante de uma tela qualquer, TV ou tablet. Uma delas são as melodias. Mesmo os ouvidos mais sofisticados poderão concordar que as músicas atendem à proposta do filme. Encaixam-se à perfeição no ritmo e atmosfera das cenas. Mesmo a melodiosa Edelweiss, que muitos pensam ser uma melodia folclórica austríaca, confundindo com a flor, também de nome Edelweiss, esta sim um símbolo na Áustria, fora ela composta para o musical da Broadway, em 1959, como tema de despedida do capitão Von Trapp de sua querida pátria. Esta melodia provoca um apelo emocional inigualável se comparada a outras obras musicais do gênero. E é melhor que se confesse. Talvez a empolgação em aclamar o musical A Noviça Rebelde se deva pela memória afetiva de quem, este que escreve, assistiu ao filme, pela primeira vez, aos onze anos de idade.

Hora de nos remetermos aos momentos lúdicos do filme. Aquele bando de crianças correndo pelas ruas de Salzburgo, subindo em árvores, quebrando regras e… cantando! Sim, era proibido cantar na mansão dos Von Trapp. Carentes de mãe, pai viúvo, autoritário e ausente, as sete crianças veem-se agora acolhidas por aquela mulher com vívida percepção da vida, jovem obrigada a sair do convento, onde se sentia engessada pela mediocridade, típica desse tipo instituição, e que, ao se libertar, libertaria com ela as crianças da família Von Trapp, até então aprisionadas por rígidas regras militares.

Outra boa razão para preparar a pipoca. O romance ruborizado entre a noviça (rebelde) e o capitão Von Trapp (durão). Há algo de idealizado neste romance que escapa à compreensão do imediato, nos transportando para algo que é ao mesmo tempo óbvio e inevitável. O amor tinha que ser. Podia não ser na realidade, mas nas telas, onde quem manda é a ficção, só mesmo um roteirista com alma gélida e insensível não se dobraria aos encantos da fantasia.

Agora a última razão para assistir ao filme, caso o espectador não esteja ainda convencido a estocar pipoca. A personagem, a protagonista, Maria! Uma das grandes razões pelo sucesso do musical. Julie Andrews, maravilhosa, já escolada com o papel anterior, de outra Maria, a Poppins, chegou e disse: esta é a Maria. E Maria se fez! Segura, consciente de si, irreverente, rebelde (eis!), mas rebelde com causa, não especula a vida, apenas vive, é pró-ativa (qualquer empresário moderno a contrataria para qualquer cargo), sensível, humana, disponível, que encarou o mau humor do capitão Von Trapp (Christopher Plummer, o próprio também mal- humorado) como quem encararia um pitbull faminto.

Ao nos darmos conta da força humana emanada da personagem Maria, e validada pela extrema competência de Julie Andrews, podemos dizer que nenhum romance, nenhum teatro e nenhum filme existem de verdade sem que alguém competente, manipulador e inteligente se proponha a fazer com que a narrativa funcione. Alguém tem que empurrar a história para um determinado rumo, e este alguém tem que ser, de preferência, o protagonista. De preferência, não necessariamente, claro. Se analisarmos muitas estruturas narrativas, haverá sempre alguém, um coadjuvante, voluntariamente perspicaz, e acima de tudo maldoso (Iago, de Otelo), que obrigará o protagonista a agir. Tudo bem. Palmas para o fofoqueiro! Mas, infelizmente, é o protagonista que nos encanta. No caso de Maria, a noviça rebelde, ela transita pela ficção de forma tão real que a realidade se confunde com a ficção. Desculpe! É o contrário. A ficção é que se confunde com a vida.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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