Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

 – Estou pronto para morrer– ele disse com uma voz que já trazia em si a ruína e o silêncio.

Ela abriu a veneziana, como se cavasse uma fuga, e um vento frio a fez encolher um pouco mais para dentro do roupão. Um casal de pássaros, num voo-relâmpago, passou rente à janela. Parecia se pegar em pleno voo, ora quase tocando o chão, ora erguendo-se rumo às nuvens. Talvez os dois estivessem se acasalando, e aquela violência toda fosse só o modo de explicitar o desejo.

Durou poucos segundos esse balé desvairado, o suficiente, no entanto, para arrebatá-la. O suficiente para arrancá-la dali, daquele ambiente de falência múltipla. Assim que os pássaros sumiram mais adiante, em meio à copa dos abacateiros, ela foi sugada de novo para dentro dessa realidade prestes a se decompor.

– Estou pronto para morrer – ele repetiu, como se estivesse enfiando um prego na mente dela.

Ela fechou a veneziana e foi até o quarto. Abriu a gaveta da cômoda e do meio das roupas tirou um objeto que lhe provocou calafrios. Deu vontade de sentir de novo o vento frio na cara antes que tudo ruísse diante dos seus olhos.

 

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

Esperou por ela ali no quarto.

Esperou que ela entrasse e fosse direto para o banheiro, como era de costume. Ah, sempre com a bexiga cheia, prestes a estourar. Ouviu o baque da porta sendo fechada e em seguida o jato do xixi batendo na água do vaso sanitário. O barulho da descarga, da porta sendo aberta e, por fim, o som de passos vindo em direção ao quarto.

Esperou sentado na borda da cama. Mas a espera tornava-se mais longa do que ele desejava. Os passos pareciam fazer um trajeto enorme, como se de repente a casa tivesse triplicado de tamanho. Para aumentar-lhe a ansiedade, ela fez um pequeno desvio e passou primeiro pela cozinha. Havia se esquecido de que, vez ou outra, ela chegava faminta. Cansada e faminta. Esperou sentado na borda da cama e com o envelope pardo numa das mãos. Ela iria perceber, tão logo passasse pelo vão da porta, que o rosto dele não trazia aquela serenidade de sempre, o sorriso e a alegria por vê-la chegar em casa depois do trabalho. O quadro era outro, turvo e sombrio.

Esperou sentado na borda da cama até os passos começarem a ressoar como se já estivessem dentro do quarto. O coração deu um salto grande e sufocante, obrigando-o a se pôr de pé. No envelope pardo, as mãos deixavam marcas de suor e nervosismo.

Esperou sentado na borda da cama até aquele instante, em que ela adentrou o quarto com o rosto banhado em luz e graça. Ela vinha de uma outra alegria que não podia se conter, mas, ao deparar-se com a imagem corrompida pela dor e exposta com tanta nitidez, acusou o baque, – o rosto desbotou-se e ela entendeu logo a razão daquele envelope brandido com fúria diante dos seus olhos.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

O Comandante mandou que ele fosse verificar se havia algum ser entranhado naquele breu. Mandou-o sem o auxílio de nenhuma luz, como se ele tivesse algum parentesco com as criaturas que enxergam nas trevas mais densas. Como foi o Comandante que mandou, o soldado obedeceu. Antes, porém, passou-lhe pela cabeça indagar-lhe (mais por causa do medo que o aterrava) por que havia escolhido exatamente ele, um medroso confesso. As razões de tal escolha ficariam, como podem supor, ocultas para sempre. Imaginava, no entanto, que havia na escolha do Comandante um quê de maldade: há dias ele vinha notando que seu jeito titubeante lhe despertava impulsos sádicos. Esses impulsos, num crescendo, haviam chegado às raias da tortura psicológica. Para seu pavor, a situação ia piorando cada vez mais. Dava bem para prever a que nível chegaria essa escalada de maldade explícita: em breve, culminaria numa sessão de tortura física diante de todos. E, como se tratava do Comandante, ninguém, absolutamente ninguém, faria nada para contê-lo. No escuro, tateando a esmo, o soldado foi em busca do ser que dera leves sinais de rondar por ali, talvez à espreita de alguma caça. Esses sinais, ouvidos pelo Comandante, eram ora o crepitar de capim sendo esmagado por patas ou por pés (supondo, nesse caso, tratar-se de um humano), ora o estalido de um galho sendo quebrado, ora uma espécie de rosnado ou latido, ora um seixo sendo deslocado pela ação de um chute acidental, ora a respiração ofegante de quem age sob uma tensão infernal… Ele não tinha ouvido ruído algum, mas o Comandante, com sua audição aguçadíssima, afirmara ter ouvido mais de uma vez. Vem dali, ó, é só prestar atenção que vocês escutam. A impressão que dava era esta: exceto o Comandante, ninguém mais da tropa tinha ouvido ruído algum, fosse do que fosse. Mas quem teria coragem de contestar o Comandante? Quem teria coragem de chegar diante dele e lhe dizer sem vacilar: Comandante, o senhor se enganou, isso aí não deve ser nada, são apenas ruídos comuns na noite, sons dilatados pelo grande silêncio que costuma reinar a essa hora. Quem teria coragem de dizer algo assim, tão afrontoso? Ninguém ousaria tanto, pois ninguém queria levar um tiro nas fuças e ser deixado ali, apodrecendo ao relento. Com um pouco de alívio, o soldado deu-se conta de que a sua cor escura lhe servia muito bem de camuflagem naquele momento. Mesmo assim, o medo persistia. Galgava-lhe as pernas, fazendo-as tremer, e oprimia-lhe a mente, obrigando-a a parir imagens assustadoras diante dos seus olhos. Porém, era só isso. O ser real, autor daqueles supostos ruídos que incomodaram o Comandante, até agora não tinha se materializado. Ele estava ali, no meio do mato coberto pelo breu, e não ouvia ruído estranho algum. Então, que espécie de bicho seria aquele que estava rondando o acampamento? Seria mesmo um bicho? Avançou mais para dentro da noite tenebrosa, mesmo porque não havia como recuar. Caso recuasse, sofreria, sem dúvida alguma, um castigo severo, do qual, caso sobrevivesse, não se esqueceria jamais. De repente, numa brusca alteração de ânimo, o soldado sentiu vontade de topar com a criatura que estava lhe causando todo aquele transtorno. No meio do escuro aterrador, sem arma alguma (o Comandante quis que ele fosse assim, de mãos limpas, de peito aberto), cresceu, agigantou-se, perdeu a noção de perigo, e a sensação de medo, que antes quase o travava, transmudou-se em algo que estava na fronteira entre a insanidade e a bravura. Gritou em desafio: Quem está aí apareça agora! Eu não tenho medo de você! Eu não tenho medo de nada! Apareça aqui na minha frente. Anda, miserável, apareça! Esperou alguns segundos. Só dava pra ouvir a própria respiração descontrolada e o coração batendo fora do peito. Um calafrio percorreu o seu corpo de cima abaixo. Não sabia mais se era por coragem ou medo, mas continuou a desafiar o ser que, com seus ruídos tão sutis, praticamente imperceptíveis aos demais, havia chegado aos ouvidos do Comandante. Os sensíveis ouvidos do Comandante! O soldado não sabe até hoje se saiu daquele breu com as próprias pernas ou se os rapazes, obedecendo a ordens superiores, foram lá e o arrastaram de volta ao acampamento. Deu por si diante do Comandante, e todo o seu ser estava tomado de ira e desobediência. Era o Comandante a criatura que ele desafiava agora. Não tenho mais medo de você!, gritava alucinado. Eu não tenho mais medo de porra alguma! Os lábios grossos tremiam enquanto ele rangia os dentes com ódio incontido. Quando sentiu na cara os dois tapas dados pelo Comandante, para que voltasse ao normal, a fera que havia se apossado dele nas trevas cravou as garras no pescoço do superior – seu pescoço branco e fino – e só não o matou porque centenas de mãos arrancaram-nas à força. Depois, em meio a grande confusão, jogaram-no de volta ao escuro aos berros: Vai embora daqui! Anda, cara, vai embora! Fuja, tá esperando o quê?! Enquanto se embrenhava no mato e na noite, numa fuga desesperada, o soldado ouvia ainda as vozes dos companheiros enxotando-o feito um animal perigoso e imprevisível.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Conto publicado, originalmente, no livro Uma mulher à beira do caminho [Editora Patuá].