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Por Leivison Silva

Eles Não Usam Black-Tie é uma peça em três atos, escrita em 1955, por Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006). A primeira montagem de Eles Não Usam Black-Tie estreou em 1958, no Teatro de Arena de São Paulo, com o próprio Guarnieri no elenco, no papel de Tião. A peça também ganhou uma premiada versão cinematográfica em 1981, tendo no elenco Fernanda Montenegro, Carlos Alberto Riccelli, Bete Mendes, Milton Gonçalves, dentre outros, além do próprio Guarnieri, dessa vez no papel de Otávio.

A peça gira em torno do choque ideológico e moral entre Otávio e Tião, pai e filho, respectivamente. Os dois trabalham na mesma fábrica, mas têm posicionamentos completamente opostos em relação a muitas questões. Otávio é um operário ativista, idealista, com consciência sócio-política bem desenvolvida, e engajado na luta pela classe operária e por uma sociedade mais justa. Tião, que fora criado pelos padrinhos, na cidade, vive insatisfeito com a vida simples e cheia de privações que tem agora no morro.

Ao descobrir que sua namorada, Maria, está grávida, Tião marca o noivado e promete a ela que lhe dará uma vida confortável, bem diferente da vida sofrida e laboriosa que Romana, mãe de Tião, leva. No entanto, na semana seguinte ao noivado, uma greve estoura na fábrica. Otávio é preso pelo DOPS, por ser um dos líderes do movimento grevista. Temendo perder seu emprego, nesse momento em que está para se casar e constituir família, Tião resolve furar a greve, o que muito decepciona Otávio e Maria. A peça é finalizada com o embate ideológico entre Tião e Otávio, após o qual Tião parte para a cidade, com a promessa de vir buscar Maria, assim que puder.

Ao contrário do que pode parecer, Tião é sim um homem de brios. Ainda que ele, ao furar a greve, pensando somente em si mesmo, tenha contrariado seus companheiros operários, o fez corajosamente, e às claras, diferente de seu amigo Jesuíno, um malandro covarde e oportunista que preferiu fazer, às escondidas, um conchavo com os patrões.

Na busca para se fazer um teatro genuinamente brasileiro, o grande mérito de Eles Não Usam Black-Tie foi levar para o palco, com poesia, a realidade das camadas populares dos grandes centros urbanos brasileiros, colocando operários e moradores de favela como protagonistas da ação teatral, indo na contramão da maioria das montagens teatrais da época, geralmente adaptações de textos estrangeiros, com cenários e figurinos pomposos, num teatro basicamente de entretenimento, sem espaço para reflexões.

Guarnieri devolveu humanidade aos cidadãos da favela, mostrando seus dramas, fragilidades, contradições e conflitos, sem estereotipá-los, conferindo assim a Eles Não Usam Black-Tie uma dimensão universal. Além da temática inovadora, a linguagem da peça é bastante acessível, com diálogos simples e informais, bem próximos da fala cotidiana, despertando identificação e empatia no público.

Eles Não Usam Black-Tie é um marco na história do teatro brasileiro, uma peça que abriu uma nova perspectiva para a dramaturgia nacional ao jogar luz sobre as mazelas da sociedade brasileira e retratar os excluídos. Com seu texto forte, popular e atual, Eles Não Usam Black-Tie é leitura obrigatória para todos aqueles que se interessam pelo Brasil e por sua gente singular.

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Por Leivison Silva

O Preço é uma peça em dois atos, escrita pelo dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915-2005), mais conhecido no Brasil pelas obras “A Morte de um Caixeiro Viajante” e “As Bruxas de Salém”. Lançada em 1968, O Preço conta a história do reencontro dos irmãos Victor e Walter Franz, que não se viam desde a morte do pai, há dezesseis anos.

Victor, um policial prestes a se aposentar, havia tentado entrar em contato com Walter, um médico bem sucedido e com prestígio social, para juntos decidirem o que fazer com os velhos móveis da família, agora entulhados na cobertura de um prédio antigo, no centro de Nova York, prédio que seria demolido em breve, para a construção de um novo edifício. Uma vez que Walter aparentemente havia ignorado o chamado do irmão, Victor e sua esposa, Esther, vão à cobertura para receber Gregory Solomon, um velho avaliador e comprador de móveis usados.

Quando a negociação entre Victor e Solomon está quase fechada, Walter aparece. Sua chegada inesperada transforma o que seria uma simples transação comercial num acerto de contas com o passado. Transcorridos dezesseis anos, um rio amargo de ressentimentos se formou entre os irmãos Franz e o reencontro obriga Victor e Walter a se confrontarem com o passado e com as consequências das escolhas que cada um deles fez para suas vidas.

O Preço tem um quê de autobiográfico. Arthur Miller reverenciava seu irmão mais velho, Kermit. Após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, a família perdeu quase tudo e Kermit deixou seus estudos na New York University para ajudar no sustento da casa. Arthur Miller pôde continuar com sua educação, graduando-se, em 1938, na Universidade de Michigan.

No caso da peça, foi Victor quem abriu mão do seu sonho para cuidar do pai falido, enquanto Walter escolheu escapar da vampirização emocional paterna para terminar sua formação e se realizar profissionalmente.

Walter traíra sua família seguindo suas ambições? Victor se traíra por ter ficado para cuidar do pai? Quem teve a vida mais bem sucedida? Walter, com seu dinheiro e prestígio, ou Victor, com seu casamento estável? Walter vive com o peso da culpa por ter-se omitido da verdade sobre a condição econômica do pai, enquanto Victor convive com a frustração de ter desperdiçado sua juventude para sustentar um pai que tinha perfeitas condições, inclusive financeiras, de se manter e até mesmo de ajudá-lo a concluir os estudos. Apesar da torcida de Esther para que Victor e Walter se reconciliem, nada que os irmãos digam ou façam vai mudar o passado ou afetar o futuro, pois o preço em questão já foi pago há muito tempo.

Arthur Miller foi bastante feliz ao escolher o nome da peça, pois ao mesmo tempo em que o “preço” do título pode se referir à oferta irrisória que o astuto Solomon faz a Victor pelos móveis da família, pode também, e principalmente, se referir ao preço que temos que pagar pelas escolhas que fazemos para nossas vidas. Através do contraste entre os destinos que cada irmão traçou para si, Arthur Miller põe na mesa também a questão da sobrevivência na grande selva que é a sociedade capitalista. Os sonhos são sufocados pelas exigências da vida prática e para se “vencer” na vida é preciso, muitas vezes, se cobrir com o manto do individualismo e ignorar certas demandas sentimentais que fazem parte das relações humanas.

Entre outras coisas, esta é uma peça que mostra bem o poder que a memória tem de revelar ou distorcer a verdade. Basta o leitor ver o rumo que as vidas de Victor e de Walter tomaram e tirar suas próprias conclusões. Mas fique atento a um detalhe. Nem sempre as coisas são como pensamos que elas foram.

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Por Leivison Silva

The Pillowman é uma peça em três atos, escrita pelo premiado dramaturgo e cineasta britânico Martin McDonagh – diretor de “Três Anúncios para um Crime”, que concorreu ao Oscar 2018, na categoria melhor filme. Embora tenha sido lançada em 2003, uma primeira versão de The Pillowman já havia ganhado uma leitura dramática pública, em 1995. Em 2004, The Pillowman recebeu o Prêmio Lawrence Olivier de melhor peça inédita, prêmio este que é entregue anualmente pela Society of London Theatre e que é considerado a maior honraria do teatro britânico – equivalente ao Prêmio Molière, na França.

The Pillowman conta a história de Katurian, um escritor de contos de terror que é preso pela polícia de um Estado autoritário não identificado, sob a alegação inicial de subversão política. Logo no começo da narrativa, é revelado o verdadeiro motivo da prisão. Katurian é o principal suspeito de ter torturado e matado algumas crianças, uma vez que os assassinatos reproduziam fielmente o que era narrado em alguns dos seus contos.

O escritor é interrogado pelos detetives Ariel e Tupolski que, durante o interrogatório, contam a Katurian que seu irmão autista, Michal, também fora preso. E que, após ter sido torturado, havia acusado Katurian dos assassinatos. Katurian desespera-se ao pensar no que os detetives podem ter feito com seu irmão e, mesmo sendo inocente, decide assumir a autoria dos assassinatos, contanto que suas histórias, que haviam sido apreendidas pela polícia e pelas quais ele nutre um amor obsessivo, não sejam destruídas.

Ao longo da peça, alguns dos contos de Katurian são narrados e encenados, justamente aqueles que inspiraram os assassinatos, dentre eles o conto “The Pillowman”, que dá nome à peça. E na linha narrativa do texto, surge o conto autobiográfico “O escritor e seu irmão”, com o objetivo de revelar fatos perturbadores da infância de Katurian e Michal.

The Pillowman é uma obra angustiante, perturbadora, sombria, macabra até, com doses generosas de humor negro que exige, num primeiro momento, estômago para quem o lê. A tensão é mantida em alta voltagem em praticamente toda a peça, e o texto não é nem um pouco sutil ao descrever, com riqueza de detalhes, torturas físicas e psicológicas, além de falar, sem eufemismos, do quão criativa e perversa pode ser a crueldade humana.

No entanto, passado o impacto inicial, é possível perceber que a peça fala também do amor pela escrita e da necessidade que os seres humanos têm de contar histórias e, através delas, eternizarem-se. “O primeiro dever do contador de histórias é contar histórias”, fala Katurian, no começo da peça, deixando bem claro que The Pillowman é mais do que uma peça de terror. É quase uma celebração da arte da contação de histórias que acompanha a humanidade desde épocas remotas. O amor obsessivo que Katurian tem pela escrita é tão grande que ele não hesita em sacrificar sua vida e a de seu irmão em troca da preservação da sua obra literária.

The Pillowman é daquelas peças que você pode amar ou odiar à primeira vista, mas nunca ficar indiferente a ela, tamanha sua intensidade e força.

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