Barrela

A intensa dor humana

Por Antônio Roberto Gerin

Em relação a seu primeiro texto teatral, Barrela, 1958, Plínio Marcos escreveria: “Juro por essa luz que me ilumina que nunca havia me ocorrido a ideia de escrever uma peça”. Plínio Marcos diz que sequer conhecia a grande dramaturgia nacional, tampouco a universal. Portanto, jamais, até então, passara-lhe pela cabeça ser dramaturgo. No entanto, impulsionado por um fato real, lido em jornal, sobre os crimes cometidos por um rapaz que se vingava dos malandros que o haviam currado quando estivera na prisão, Plínio Marcos, de tal modo impressionado com o ocorrido, viu-se na necessidade urgente de escrever algo a respeito. Despejaria no papel, em forma de diálogos, tudo o que sentia, com a visceralidade de quem se colocava no lugar do seviciado. Mal sabia ele que, ao optar pela forma dramática de escrita, estaria gestando sua primeira obra prima teatral. Ao mostrar o texto para Patrícia Galvão, aquela mesma, Pagu, a intelectual que se tornara o símbolo do movimento modernista de 1922, e que à época, 1958, morava em Santos, o jovem Plínio Marcos receberia dela o elogio de que seus diálogos eram tão vigorosos quanto os de Nelson Rodrigues. Com o incentivo de Pagu, Barrela estrearia em 1º de novembro de 1959, no Centro Português de Santos, por uma noite apenas, uma vez que o texto já havia sido previamente censurado. Do inebriante sucesso da estreia lembra-se o autor. “Ainda trago comigo os sons dos aplausos daquela noite”. Sequer poderia imaginar o que o esperava na década seguinte, com suas obras primas que sacudiriam o cenário cultural, levando seus inovadores textos a serem esmagados, por anos a fio, pelos coturnos da ditadura militar. Como reação ao sucesso daquela noite de 1959, Plínio Marcos se viu em meio a um tiroteio de calúnias, sendo um dos rótulos preferidos chamá-lo de comunista. Vale lembrar que estes chavões autoritários pertenciam ao ano de 1959, bem antes de 1964 — ano em que se instaurou no Brasil a ditadura militar —, o que nos leva a supor que o ovo da serpente demoraria um bom tempo para ser chocado. Plínio Marcos ainda tentou levar Barrela para os palcos em 1968, mas o texto seria censurado após dois meses de ensaio. A personalidade independente de Plínio Marcos, protegida por sua irreverente persistência, fez com que ele não se dobrasse ao destino. E ao assim proceder, fez-se o artista genial.

Barrela compõe-se de uma única cena, sem interrupção de tempo e espaço. A trama se passa em uma cela de prisão, onde dormem seis presos, Tirica, Portuga, Bahia, Fumaça, Louco e Bereco, quando então Portuga, já madrugada, assustado por algum pesadelo, começa a gritar e acorda todo mundo. A partir deste fato corriqueiro, a trama vai se deixando levar por uma estrutura muito bem delineada por Plínio Marcos, afinal, ele sabia exatamente o que queria dizer e aonde chegar. Portanto, sustentado por uma evolução dramática verossímil, o encaminhamento feliz da trama segue firme rumo a seu desfecho, quando chega a hora de entrar na cela o novo preso, o Garoto, o principal alvo dramático do autor. Nada estava programado para acontecer naquela minúscula cela de prisão, até que a caneta frenética de Plínio Marcos se utilizasse de um mote poderosíssimo, a sexualidade, para dar vazão aos instintos mais brutais do ser humano. Plínio Marcos, com sua natural habilidade, conseguiu chegar aonde pretendia. Seria Barrela seu inesperado encontro com o teatro.

Vale lembrar, antes de entrarmos propriamente na análise do texto teatral, que quando Plínio Marcos declarara ter ele sentido incontida necessidade de escrever sobre o fato real ocorrido com o rapaz, e que tanto o impressionara, a compulsão pela escrita o levaria diretamente para o teatro, como única forma artística plausível para se chegar à catarse da dor. Ele precisava da força mimética do drama, posto que a realidade estava ali, urgindo para ser contada. Isto prova que todo conteúdo precisa da exata forma para se transformar em arte, e este é um dos mistérios que envolve o ofício do artista. Eis uma condição que a arte impõe e que merecia de especialistas profundas especulações. O processo artístico, ao ser espontâneo, nasce com a benção da beleza e da verdade.

E ainda complementando a análise acima, cabe lembrar que muitos anos depois Plínio Marcos retomaria a tragédia da curra, que é quando todos estupram um, ao escrever, talvez com o espírito já pacificado, e se valendo agora da narrativa, portanto, o romance, para escrever Querô, Uma Reportagem Maldita. Nesta premiada obra, ele revisita de forma mais demorada e explícita a dor da curra sofrida pelo rapaz anos atrás. É perceptível que a demanda interna do artista era outra e, portanto, outra seria a forma a ser utilizada.

A principal habilidade de Plínio Marcos, e que concorreu para o belo resultado final da obra, foi ter o autor paciência para introduzir a temática principal da narrativa, a barrela (gíria para curra). Antes, tomando mais de dois terços do texto, o autor trabalha um outro conflito, também de base sexual, e que logo se saberia, fora fruto também de uma curra. Este fato, acorrido no passado, prepara a entrada do grande e doloroso evento.

Portuga traz à tona o abuso sofrido por Tirica, na infância, no reformatório. Em torno da raivosa disputa entre Tirica e Portuga circulam Fumaça e Bahia, cujas funções na estrutura são, como se diz na gíria, botar lenha na fogueira. E fazendo o coro de uma voz só, mas totalmente eficiente, o Louco, que nos momentos de maior tensão, incendiando a libido, apenas repete “enraba, enraba!”. E do outro lado Bereco, o chefe, tentando frear a tensão. Ao estabelecer estas dinâmicas, Plínio Marcos não vai precisar recorrer a artimanhas de carpintaria dramática para solucionar o desfecho. Quando o garoto entrar na cela, a adrenalina e a testosterona estarão acumuladas no limite da agressividade, bastando apenas dar encaminhamento ao ato máximo. Esta é a estrutura eficiente adotada por Plínio Marcos em seu texto teatral.

A luta intestinal, por envolver vários contendores, é desenhada por uma estrutura de poder necessariamente frágil, e ao mesmo tempo ágil, posto que muda de intensidade e de polos o tempo todo, deixando pelo caminho o rastro previsível da tragédia. Plínio Marcos sabidamente tinha plena consciência dessas nuances nas disputas pela supremacia do mais forte e do mais esperto, explicitamente típicas nos meios da malandragem, e que o autor tão bem conhecia. Tanto que o texto se define pela seguinte fala da personagem Bahia, que se posiciona num dos lados da contenda. Assim diz Bahia a Tirica quando este jura Portuga de morte por ter colocado em cheque sua sexualidade: “Vê lá. Se não confirma, se dana. Não vai fazer nome de homem nunca mais”. Está esculpida nesta frase a marca da reviravolta na trama. Estava decidido. Para recuperar sua imagem de macho, Tirica teria que matar Portuga. E Plínio Marcos nos avisa desta sina pouco adiante, pela voz de ameaça de Tirica quando Portuga diz pretender no dia seguinte mudar de cela para se livrar das ameaças do outro. Diz Tirica, anunciando os fatos. “Ainda vai correr muita água debaixo da ponte, antes de chegar amanhã”.

Ao dizer a frase acima, é introduzido na cena teatral o objeto que corporificará a ameaça, projetada na realidade objetiva, não na introspecção da alma. A alma apenas é avisada do que vai acontecer, como se ela, com sua história carregada de misérias e dores, estivesse apenas à espera de ser vingada. A alma transfere para o corpo toda a responsabilidade do crime e esta atitude é uma marca na dramaturgia de Plínio Marcos. É o cabo da colher que Tirica, mordiscando sua vingança, vai afiando no cimento da cela, até transformá-lo em estilete. O crime se anuncia. “O ferro já está quase afiado”, diz Tirica a Portuga. Veja que Plínio Marcos desloca lentamente a cena para seu limite. Deixa tudo bem armado, mas pedindo um novo fôlego dramático, sem o qual o texto cairia em triste impasse. Mas Plínio Marcos, mesmo que intuitivamente, previa este impasse. Aliás, precisava dele. Então, como que um deus ex machina, sob o ranger do ferrolho, entra o Garoto.

Em suma. Plínio Marcos, moldado pelo sucesso inesperado, que o fez levar ao extremo a sua arte, angariando o respeito e a admiração de todos, cooptando em torno de si a classe artística na defesa de seus textos censurados, acabou desenvolvendo no homem artista uma certa autopercepção de genialidade e sentido de seu fazer artístico, inclusive se colocando numa posição de superioridade, escapulindo às vezes uma vaidade despropositada. Este era Plínio Marcos, vivendo como uma personagem dentro da sua arte. Confundia-se nela como inspiração de vida. Quando perguntado pelo amigo Nelson Rodrigues por que se achava o melhor autor de teatro do Brasil, o espirituoso dramaturgo santista não deixou por menos. Assim respondeu a Nelson Rodrigues, numa atitude de pretensa espontaneidade. “Por que eu copio os seus defeitos”. Sim, para construir a sua arte, Plínio Marcos não fez outra coisa senão copiar defeitos. Trazer à luz as imperfeições. Revelar o que permanecia oculto. Barrela seria só o começo da construção de sua genial dramaturgia.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

Deixe um comentário