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Bergman: um encontro consigo mesmo

Por Antônio Roberto Gerin

 O monumental filme FANNY & ALEXANDER (320’), roteiro e direção de Ingmar Bergman, Suécia (1982), é considerado por muitos a obra máxima do diretor sueco. Se olharmos a duração, trezentos e vinte minutos, na sua versão original, podemos bem ter a dimensão da obra. Mas não é a duração que importa. Obras primas têm seu valor intrínseco, não podem ser submetidas apenas a números. Mas, convenhamos. No caso de Fanny & Alexander, o fato de o filme ter longa duração veio permitir a que Bergman esmiuçasse, delicada e demoradamente, as relações humanas dentro de uma perspectiva pessoal. E o pessoal ganha cores fortes quando ocorre um fato inesperado que vem alterar a ordem natural da rotina familiar. Sim, o destino não pode ser traçado a priori, com o rigor da lógica. Sempre haverá a interferência do imponderável. E o imponderável criado por Bergman em Fanny & Alexander dar-lhe-á a oportunidade de entrar em contato com sua infância e expor seus fantasmas e tormentos. É Bergman no olhar nada silencioso do menino Alexander. É o menino Ingmar à mercê de sua imaginação de criança que foge à realidade, por senti-la dolorosa e incompreensível. Sim. Fanny & Alexander é a obra mais pessoal de Bergman.

O filme foi concebido originalmente para a televisão. Além do prólogo e epílogo, a narrativa se desenvolve em quatro episódios. Assim se explica sua longa duração. Mas, antes que o filme fosse para as telinhas suecas, em final de 1983, Bergman lança, ainda em 1982, uma versão editada e reduzida a pouco mais de três horas. Continuou sendo uma obra portentosa e, não à toa, indicada a muitos prêmios. Seis indicações ao Oscar, com quatro premiações, incluindo a de melhor filme estrangeiro. Bergman, apesar da indicação como melhor diretor, não levou a estatueta. Pior para a Academia, não para Bergman, cujo inegável fôlego artístico seria provado mais uma vez, de forma incontestável, neste filme, a que podemos dar feições épicas, se assim for correto para expressarmos a irresistível força dramática que exala da tela, causando-nos angústia e perplexidade. E esta aproximação intensa do espectador em relação ao filme é fortemente estimulada pelos cenários exuberantes, figurinos de encher os olhos, e a fotografia sempre impactante e decisiva de Sven Nykvist. Além, claro, da atuação impecável de todo o elenco, sem exceção. É perceptível. Bergman cuida de cada detalhe como se fosse este seu filme definitivo.

Os irmãos Fanny (Pernilla Allwin) e Alexander (Bertil Guve) nasceram em uma família da alta burguesia de Uppsala, tradicional cidade ao norte de Estocolmo. Temos a matriarca Helena Ekdahl (Gunn Wällgren), viúva e famosa atriz sueca, seus três filhos, o artista Oscar (Allan Edwall), o empresário e pândego Gustav Adolf (Jarl Kulle), e o infeliz professor Carl (Börje Ahlstedt). E os netos, cinco, um deles, Alexander, filho de Oscar e Emilie (Ewa Fröling). Agora Alexander tem onze anos, estamos no final do ano de 1907 e é o momento de se comemorar mais um natal. Tudo são alegrias, festejos, comilanças, abraços e juras de afeto. No meio disso tudo, inevitável, algumas intrigas. Mas, o que importa é o alvoroço familiar em torno da enorme mesa de natal. Ora, vamos sorrir, então! Vamos fazer discursos melodramáticos! Cantar e dançar. Afinal, o curso da vida continuará para todos, na alegria e na tristeza, por isso não precisamos temer em mostrar o que é bom e o que é ruim. E é o que faz Bergman. Como na fábula bíblica, ele também nos serve primeiro o vinho bom, para depois nos intoxicar com o ruim. E logo terminam as festas, termina a primeira parte do filme, termina o vinho bom. Agora vem a segunda parte. E o divisor de águas da estrutura narrativa é a inesperada morte de Oscar, pai da Fanny, e pai do nosso Alexander. É o aviso. O vinho ruim será servido.

O que se seguem são cenas constrangedoras. Algumas, de horror. Emilie, viúva, sentindo-se só, longe da proteção familiar, decide aceitar o pedido de casamento de Vossa Graça, o bispo Edvard Vergérus (Jan Malmsjö). Ele a conquista com a promessa de um amor sólido, desprovido de tentações materiais, baseado na abnegação, na disciplina, nos ritos. Só que ao colocar Emilie e seus filhos, Fanny e Alexander, dentro de sua casa paroquial, uma masmorra disfarçada em lar, Vergérus vai-nos mostrando para onde pode nos levar a submissão doentia a ideias fixas e a preceitos de conduta desprovidos de qualquer contato com a realidade do humano. Ele quer que todos sejamos iguais. Mas nós não somos cópias. Portanto, temos reações diversas, próprias, individuais. Só que, para se evitar a barbárie, ao longo da construção das sociedades, alguns limites foram sendo estabelecidos, delimitados pelo que deveria ser a sólida e inviolável proteção moral. São regras de conduta que teriam que valer para todo mundo. Assim, evitar-se-ia o caos. No entanto, não é o que acontece no dia a dia. Se abrirmos as páginas dos jornais, vamos nos deparar com as exceções morais, essa via permissiva que nos autoriza a fazer o que queremos. E o que ambicionamos. Tudo em nome de sentimentos de plantão e da vil oferta de proteção ao mais fraco. Na verdade, o que a agora indefesa e cambiante moral faz é tão somente atender aos mais íntimos e privados interesses do bispo Vergérus.

Ao assistirmos a esta segunda parte do filme, o que Bergman parece nos mostrar é uma relação de casamento, simplesmente, entre uma mulher, Emilie, e um homem, Vergérus. Só que as agressões são tão descabidas, o perfil humano é tão distorcido, que o casamento fica em segundo plano. O que Bergman vai nos revelar mesmo, através da presença convulsiva de Alexander, é o espanto diante das infinitas possibilidades de que o homem dispõe para fazer valer os seus desvios e praticar as suas maldades. E pior. Praticá-las com convicção.

Acima, o que fizemos foi tentar desenhar o corpo dramático do filme, construído genialmente por Bergman. Cabe-nos agora nos debruçarmos sobre algumas questões gerais, e estas questões, que entendemos ser a base existencial do filme, se voltam, de forma fragmentária, para o ser humano Bergman. Se aceitarmos que Fanny & Alexander é a sua obra mais pessoal, e se de fato Bergman retratou a si mesmo em Alexander, temos que admitir que Bergman foi um menino muito interessante, único, independente e extremamente reativo às representações sociais. E que teria feito da arte a única porta de fuga daquele mundo familiar opressor em que ele estava inserido. Mas, mesmo que Bergman não tivesse sido, em criança, exatamente como ele representa o menino Alexander, não importa. O que ele idealiza para si é uma imagem acabada de um ser humano e de um artista profundamente sensível e transformador. Assim era Alexander. E assim foi Bergman que, sabia ele, desde sempre, não passaria pela vida inutilmente.

A visão que Bergman traz da sua infância, e que escapole ao longo de todo o filme, é, portanto, fragmentária. Do ponto de vista psicológico, não poderia ser diferente. Pois, se fôssemos organizar nossas dores, nossas frustrações, nossas ansiedades, enfim, nosso passado, numa ordem rigidamente concatenada, íntegra e monolítica, talvez não resistíssemos à loucura, afinal, seria muita lucidez para nossa frágil sanidade mental. Por isso, é melhor que nossas verdades surjam em meio ao caos, mesmo que seja um caos ligeiramente organizado. E é assim que Bergman se apresenta no filme.

Primeiro, os fragmentos paternos. Oscar Ekdahl, homem do teatro e das letras, cuidadosamente afetivo, e que entrega aos filhos uma imaginação fértil e saudável. Este é o pai real de Alexander, e o pai artista idealizado por Bergman, portanto, a figura paterna desejada contrapondo-se ao pai severo, moralmente rígido, o pastor que coloca o lar num patamar insuportável de exemplo cristão. Este foi o pai real de Bergman, que tinha no castigo físico o baluarte da edificação moral do filho rebelde e, às vezes, herege. Só que Oscar Ekdahl morre. A ficção morre. O idealizado se vai e fica o pai real, encarnado no pastor Edvard Vergérus. Fica a realidade que pisoteia cruelmente os sonhos.

Os fragmentos maternos se projetam nas várias figuras femininas do filme. A mãe real de Alexander, Emilie Ekdahl, mãe generosa, mas frágil, dependente da força física e moral do marido, e que se torna alvo fácil das convenções sociais. Depois vem Maj (Pernilla August), uma das tantas empregadas na casa da avó, encarregada de cuidar das crianças, em quem Alexander passa a ver a figura protetora, fiel e sexualizada, e sobre quem ele pode ter domínio afetivo, se bem que, às vezes, um domínio perigoso. Por fim, Justina (Harriet Andersson), uma das serviçais na casa do carrasco Vergérus. Ela é encarregada de vigiar os enteados. E, ao mesmo tempo em que compactua com as dores do menino abandonado e injustiçado, não hesita em entregar Alexander para ser castigado pelo bispo. Bergman cria um interessante mosaico de figuras femininas, desenhando uma imagem riquíssima de mulheres fortes, sensuais e elegantes, marca registrada em seus filmes e que fizeram de Bergman um dos maiores desenhistas da alma feminina. Portanto, se bem pensarmos, é muita confusão para a cabeça de um menino que tem nas fantasias a única forma de conviver com tantas dores, angústias e descobertas. Seu mundo é fragmentado; sua realidade, dilacerada.

Outra questão que Bergman trabalha de forma primorosa no filme é o papel da imaginação na formação do artista Bergman. Alexander passa a ver fantasmas. O fantasma hamletiano do pai morto, que acompanha as dores do filho Alexander pela decisão equivocada da mãe em consentir se casar com o odioso Vergérus. Eis o menino Alexander que, para fugir à inaceitável realidade, entrega-se às fantasias, fruto de observações sensíveis dessa mesma realidade que tanto o atormenta. Mas só que em Fanny & Alexander, a imaginação é tratada por Bergman como uma dádiva, um conceito de divindade, de onipresença, de consubstanciação da realidade intolerável. Portanto, a imaginação é um presente divino que se empresta aos artistas, aos escritores e aos músicos, como um consenso universal de que eles precisam da imaginação para fingir, portanto, para mentir. Este é o paradoxo. Mente-se para criar. Só que na visão do bispo, a imaginação é a asa do demônio para conquistar o reino da mentira. Este sempre foi o grande inferno do menino Bergman. Entender que a arte não mente, portanto, ele não merece ser castigada. E para entender esta máxima humana sem que ela fosse carregada de culpas, Bergman precisou fazer muitos filmes, despejando em cada um deles um pouco da compreensão de que ele precisava para entender a sua infância. Até chegar a Fanny & Alexander, quando então todos os fragmentos se juntaram para trazer-lhe a verdade. Ele era um artista, por isso tinha o direito de fantasiar mentiras.

Em suma, juntamente com Cenas de um Casamento (1972), Fanny & Alexander parece-nos ser um dos filmes mais longos de Bergman. Isso nem é mérito, somente um registro, uma vez que Bergman é o cineasta da síntese, do diálogo econômico, das frases sincopadas, fechadas em si mesmas, e tão sonoras quanto marteladas em madeira maciça. Mesmo que seus diálogos se demorem em longos monólogos, será uma demora angustiante, porque necessária, e nunca, portanto, haverá o desperdício do tempo. Por isso, essa prolixidade de cores, figurinos e cenários, de onde saem detalhes de vida humana, e o grande elenco escolhido a dedo, e os tantos figurantes cuja presença tem a verdade do cotidiano, enfim, amalgamando todos esses elementos que constroem o espetáculo filmado, vamos ver mais uma vez Bergman recorrer a seus grandes temas para encapsular artisticamente o tom autobiográfico que ele quis imprimir ao filme, de forma expressiva e corajosa, como se Bergman, finalmente, concordasse em revelar, através do fantástico menino Alexander, a sua identidade como ser verdadeiramente humano. O que dá a Bergman, sem dúvida, a senha para a imortalidade.

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Ninguém perturbará a serpente

Por Antônio Roberto Gerin

 Com o intrigante filme O OVO DA SERPENTE (120’), produção EUA/ALEMANHA (1977), Ingmar Bergman, que também assina o roteiro, ao ir em busca de novas perspectivas artísticas, parece sair da curva criativa e estética que marcou sua filmografia até então. Óbvio que esta curva não é tão acentuada assim, a ponto de desfigurar o Bergman original. Sabemos que ele trabalha com o humano. Com os monstros que habitam nossas escuridões. Com as perguntas sem respostas. Neste filme, não é diferente. Sua câmera continua sendo monitorada pela mesma sensibilidade de artista completo que sempre foi. Portanto, o Bergman, de certo modo, permanece intacto. O que nós vamos presenciar em O Ovo da Serpente é algo que escapa das quatro paredes e invade as ruas de Berlim. O isolamento e os cenários intimistas, tão caros a Bergman, não cabem aqui. O que ele faz é inserir suas personagens numa estrutura política, econômica e social à beira do abominável. É Bergman se colocando diante de um mundo em perigosa transformação, com o desafio de entender o que está acontecendo. Tudo acontece porque Bergman é convidado a roteirizar e dirigir este projeto germano-americano, tendo por trás, na produção, o robusto Dino de Laurentiis. E Bergman, depois de muita pesquisa histórica, compõe um painel absurdo de uma Alemanha daquele novembro de 1923. Era a Alemanha se preparando para gestar o ovo da serpente. O nazismo.

Abel Rosemberg (David Carradine) é um trapezista norte-americano desempregado que acaba de chegar a Berlim com seu irmão, Max, e a cunhada, Manuela Rosemberg (Liv Ullmann). O que ele vai encontrar em Berlim não é nada animador. Pelo contrário. A cidade está devastada por uma crise econômica nunca vista antes. A inflação é acachapante, há desabastecimento, a desesperança toma conta da população alemã e, pairando sobre essa dura realidade, um governo inoperante, tão perdido e tão impotente quanto seus governados. É neste quadro de desolação que vemos Abel andar pelas ruas, sem rumo, em busca de bebida e comida. E, para piorar a situação, e este é o início do filme, Abel, ao retornar à pensão onde morava, ao subir as escadas e abrir a porta do quarto, depara-se com o irmão morto. Se antes Abel ainda tinha um referencial, agora tudo parece perder-se de vez. É, pois, com os olhos desse desesperado Abel, abatido pelo medo, que Bergman vai nos mostrar a Berlim de 1923 chocando o seu terrível ovo.

Onde reside a lógica da desintegração da sociedade alemã que possibilitou o surgimento do nazismo? No caso da alegoria trazida por Bergman, que possibilitou que o ovo da serpente fosse chocado? Cada um pode ter a sua resposta, mas acreditamos que todas, de um modo ou outro, convergem para a mesma certeza. A de que tudo era muito óbvio demais para que não pudesse ser percebido.  Como nos mostra Bergman, a membrana transparente do ovo estava lá, e através dela podia-se ver, escancarado, o vulto da serpente, o símbolo de uma dos maiores desastres humanos de que se tem notícia.

Mas há, sim, respostas mais objetivas para explicar tamanha ruptura moral. No caso da Alemanha, a causa do esfacelamento social teve seu início com a humilhante derrota a que foram submetidos os alemães na Primeira Guerra Mundial, incluindo-se aí os acordos absolutamente desfavoráveis impostos aos derrotados. E, na sequência, veio a incapacidade de os alemães se reerguerem economicamente após a guerra. Com isso, a desarticulação econômica, agravada por uma indústria inoperante e uma estrutura de Estado arcaica, levou à desarticulação social. Tudo vira pó. Não há referenciais. Não há sentido de vida. Há apenas os famintos vagando pelas ruas, o medo corroendo a esperança e, como proclama a própria Manuela, “as pessoas perderam o futuro!”. É o que mostra Bergman através de seu personagem principal. Um Abel Rosemberg onipresente, vagando sobre escombros nesta terra de ninguém, esse ser humano sentindo na pele, como judeu, os primeiros ventos fúnebres soprando contra o seu rosto. Ele é a figura que testemunha a maldade se infiltrar no vazio moral e nos escusos interesses políticos que moldariam a Alemanha nas próximas duas décadas, e, como sabemos, brindando-nos com suas terríveis consequências.

Mas nem tudo está perdido. Existem mentes lúcidas que lutam para que a democracia não saia dos trilhos. É como diz o inspetor Bauer (Gert Fröbe), que representa o Estado alemão titubeante, cujos olhos, tomados de medo, ainda conseguem vislumbrar o perigo do ovo sendo gestado. Diz ele, “tento criar um pedacinho de ordem e de razão no meio do caos”. Nosso inspetor, assim como tantos outros, os artistas, os intelectuais e uma pequena camada social que ainda permanecia lúcida, só conseguiriam resistir até 1933, quando finalmente o nazismo se instala no poder. É quando a serpente rasga a membrana do ovo e começa a rastejar pelos atalhos da história.

Ingmar Bergman refugiara-se na Alemanha, em Munique, depois de ter tido problemas com a receita federal sueca. Provara-se sua inocência, mas, deprimido e abalado, preferiu se ausentar do país. Foi esse pequeno acontecimento pessoal que levou Bergman a um encontro inusitado com Dino de Laurentiis, que resultaria na produção de O Ovo da Serpente. O resultado artístico, dizem, teria ficado um pouco abaixo em relação a muitos de seus principais títulos. Uma obra menor. Pode ser. E uma razão se explica. Em O Ovo da Serpente, Bergman nos apresenta um roteiro tradicional, com começo, meio e fim, dentro, portanto, de uma estrutura de desenvolvimento narrativo bem aristotélico. Uma estrutura não muito afeita aos moldes narrativos utilizados pelo roteirista Bergman, que costuma se desviar do rígido ritmo aristotélico para se debruçar demoradamente, em cenas perfeitas, sobre questões humanas, para ele muito mais importante do que manter o espectador preso a reviravoltas fabulosas como artifício para mantê-lo atento e motivado. Bergman, decididamente, não faz filmes comerciais. Desta forma, o inusitado da carpintaria dramática exigida pelo filme acaba expondo certas fragilidades na preparação do grande clímax. É demérito? Não. Porque Bergman, com sua genialidade, se salva.

Primeiro, basta observar a magistral atuação dos atores, todos. Segundo, vale lembrar que Bergman não nos distrai com detalhes inúteis. E isto fica evidente na atuação de David Carradine, magistral, onde os gestos acabam sendo mais eloqüentes que a fala. A câmera denuncia o olhar atônito de Abel diante do que ele está vendo acontecer. Principalmente, no confronto final, com o médico Hans Vergerus (Heinz Bennent), quando Abel efetivamente descobre o que está acontecendo nos porões da Alemanha, onde já se iniciavam experimentos com seres humanos com a finalidade do domínio político e racial absoluto. O personagem Abel fala pouco, mas ele acompanha toda a dramática situação de Berlim, com suas fomes, com suas injustiças, com a complacência da polícia em não evitar que judeus sejam espancados e mortos, com um judiciário leniente, enfim, com um futuro sem rosto para uma Alemanha inerte, à espera do dia fatal. Abel silencia, porque não há outra forma de gritar. O prato insosso está pronto para ser servido. E os alemães, famintos e desempregados, vão se aproximando e se alistando como garçons. Vão aos poucos trocando a democracia pelo discurso de ódio de um silencioso ditador.

É verdade que os valores morais são intocáveis, sempre. Não são causa nem efeito. Eles pairam acima da lógica da ancestralidade, e são tão invisíveis, que passam despercebidos no dia a dia. Mas são esses códigos intocáveis que permitem uma convivência mínima aceitável entre humanos e sociedades. Portanto, quando esquecemos o outro é porque esses códigos foram violados. E o caos, então, se instalará. E era o que estava acontecendo na Alemanha, naquele novembro de 1923, quando Herr Hitler ensaiava, em Munique, seu primeiro ataque à democracia. É quando saem os valores e prevalecem as ideias. Pior. Ideias em forma de slogans.

Tudo isto, o que é dito acima, quem nos mostra é Bergman. Estamos apenas traduzindo em palavras fáceis aquilo que vem embutido numa dinâmica oculta, mas inexorável. É esta inexorabilidade do destino de uma nação que torna o filme O Ovo da Serpente assustador. Uma nação cega e surda, desesperada e sem rumo, chocando, silenciosamente, seu futuro desastre humano.

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O que fizemos com as nossas vidas?

Por Antônio Roberto Gerin

Com SARABAND (111’), SUÉCIA (2004), seu último filme, Ingmar Bergman não deixaria escapar a oportunidade de nos oferecer mais uma de suas obras-primas. E que obra-prima! Vamos ver um Bergman em estado puro, sem nos poupar o que há de mais obscuro e devastador no ser humano. O ódio entranhado na pele envelhecida como um troféu de vida sem afetos, sem cuidados, obsessivamente construída em cima de pequenos rancores que, como pedrinhas, foram sendo espalhados ao longo do caminho. À medida que Bergman vem recolhendo estas pedrinhas, vão emergindo na tela os fantasmas que habitaram sua filmografia ao longo de seu trabalho como roteirista e diretor. Talvez no anseio de saber ser este seu derradeiro filme, Bergman nos prepara cuidadosamente cenas antológicas, como a nos dizer, olha, eis o meu último filme! Sim. Saraband é seu último grito.

Marianne (Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) são os personagens, marido e mulher, do belíssimo filme Cenas de um Casamento, de Bergman, lançado na Suécia em 1972, e que conquistou, à época, grande sucesso. Agora, trinta anos depois, em Saraband, a mesma Marianne, (novamente Liv Ullmann) resolve visitar Johan (novamente Erland Josephson), seu ex-marido. É, para ela, uma decisão difícil, já que há riscos de se ressuscitarem antigas dores e mágoas. Mas o impulso fala mais alto, e Marianne bate à porta do chalé de Johan, isolado numa ilha distante, no meio da mata. A presença de Marianne na casa do ex-marido vem transformar a rotina quase monacal daquele lugar em uma teia destrutiva de horrores. Os conflitos estão todos ali. Feito lenha empilhada, à espera do fogo. E conflito é assim, como a lenha. Só precisa que alguém acenda o pavio. Este é o papel que Marianne vai desempenhar na estrutura narrativa de Saraband. Encarregada de transportar os conflitos ao longo da trama, sua tarefa é incômoda e cada vez mais dolorosa. Mas Bergman, infelizmente, não oferece a Marianne outra escolha.

O filme se desenvolve dentro de uma estrutura narrativa muito interessante. Ele é dividido em dez capítulos, além do prólogo e do epílogo. Portanto, no todo, Saraband compõe-se de doze partes narrativas. O título do filme, Saraband, remete às Sarabandas, um tipo de canção que se espalhou pela Europa, cujo ritmo, sincopado e triste, rege a atmosfera emocional do filme e estabelece seu desenho de dança. E é exatamente isto que queremos enfatizar. A narrativa assenta-se na estrutura de uma dança. E numa dança que se dança aos pares. Isto quer dizer que cada uma das dez cenas será representada tão somente por duas personagens. Apenas o prólogo e o epílogo serão apresentados unicamente por Marianne que, como já foi mencionado, está encarregada de conduzir a narrativa.

E não são muitas as personagens do filme. Apenas quatro. Além de Marianne e Johan, já apresentados, compõem a trama o filho de Johan, Henrik (Börje Ahlstedt), e sua filha Karin (Julia Dufvenius), neta de Johan. São estas quatro personagens que vão se alternar, aos pares, na sequência das dez cenas. Evidente, o primeiro par a se apresentar será Marianne e Johan, na cena inicial do reencontro entre os dois, onde já se estabelecerão os elementos dramáticos que motivarão o desencadear dos conflitos familiares.

Vale lembrar, ainda nos referindo à estrutura narrativa do filme, que o segredo do sucesso do roteiro está justo no encaixe perfeito desta sequência de cenas aos pares, encaixe extremamente utilitário do ponto de vista da dramaturgia, porque ele vai permitir a Bergman ativar, com eficiência artística, as conexões já estabelecidas, a priori, nas relações de família. O que o encadeamento de cenas faz é atribuir a cada integrante seu papel na dinâmica dos conflitos. E, sem dúvida, já adiantando para o espectador, esta genial estrutura vai permitir assistirmos a uma das mais tenebrosas cenas de relação familiar de que o cinema tem notícia. Falamos do encontro entre Johan, pai, e seu filho, Henrik, cena onde a humilhação é apresentada em sua mais vil roupagem, o cinismo. Outras cenas se seguirão, no mesmo cruel diapasão, ressaltando aqui o núcleo mais terrível, que são as cenas entre a desamparada Karin e seu pai incestuoso, Henrik. Acorrentada emocionalmente a ele, ela clama por liberdade. Este é o grito primal que empurrará o drama para seu clímax. Eis, então, a estrutura do filme. Possibilitar que nos encontremos frente a frente, aos pares, com a nossa miserabilidade. Sem subterfúgios. Sem uma terceira personagem que nos ampare.

Ingmar Bergman, como em outros de seus filmes, também neste, Saraband, volta, maldosamente, a nos alertar. A verdade nos ronda, sempre. E esta é a nossa sina. A de ter que encará-la, mais cedo ou mais tarde. Enquanto não a encaramos, ela se transformará em nossos fantasmas. Aliás, fantasma pode nos parecer um termo abstrato, mas não é. Ele define tudo aquilo que não queremos enxergar. E por não querermos enxergar, restará à nossa verdade nos rondar, nos perturbar. E como salvo conduto, para nos protegermos do medo de que ela apareça, preferimos nos esconder atrás de pequenos ódios e rancores. É isto que fazemos no nosso dia a dia. E este será o nosso erro. O de não percebermos que a verdade jamais irá embora. E que, portanto, só ela poderá nos libertar.

Em suma, aqui está o tinhoso Bergman. Em sua trajetória como artista, tanto insistiu em nos fazer enxergar as nossas verdades, que passamos a ter medo dele. Quem assistiu a seus filmes Persona (1966) e a A Hora do Lobo (1968), perceberá a verdade nos cercando, como lobos famintos. Mas é ainda uma verdade perturbadora, sem a ameaça do ataque final. Em Saraband, não. É quando Bergman perde a paciência e nos joga na cara a que fim levam relações construídas à base de ódios e rancores. É termos que olhar para trás e perceber que é exatamente só isto que nos restam, ódios e rancores. Tantos! Mas aí já estaremos velhos e muito fracos para conseguirmos removê-los. Nunca vamos poder ver o que de bom existia por trás destes sentimentos. É isto que Saraband nos mostra. E foi este o último aviso de Bergman. Cuidar para que não nos transformemos em fantasmas de nós mesmos. Teremos sido seres humanos incompletos.

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