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Ser mãe e ser mulher

Por Antônio Roberto Gerin

 Assistir ao filme de Ingmar Bergman, SONATA DE OUTONO (99’), Suécia/Alemanha (1978), é acompanhar bem de perto, em closes magníficos, uma sequência devastadora de embates entre mãe e filha. Ou entre filha e mãe? Não. Mãe vem primeiro, sempre, então é relação mãe e filha, “essa mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição”. Sim, estas são as palavras do roteirista Bergman, ditas pela boca amarga de Eva, a filha.

O filme narra a tumultuada relação entre a mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), uma pianista famosa, e suas duas filhas, Eva (Liv Ullmann), casada com o pastor Viktor (Halvar Björk), e Helena (Lena Nyman), vítima de doença degenerativa.  Após sete anos sem se verem, e a convite de Eva, Charlotte vai passar alguns dias na casa da filha, no sul da Noruega. Charlotte, que há anos havia colocado sua filha doente num asilo, com a sensibilidade de quem coloca uma coisa velha e inútil num depósito, surpreende-se ao encontrar Helena na casa da irmã, Eva. As circunstâncias  para que os tumores emocionais supurem estão dadas.

A chegada de Charlotte à casa da filha Eva, logo no início do filme, segue os padrões cênicos do cinema mundial. Ela desce do carro, abre o porta-malas e vai pegar as malas que ali estão. Eva, feliz, se antecipa à mãe e pega ela as duas enormes malas lindamente amarelas e as sai carregando com tanta desenvoltura, que fica logo evidente que Bergman comete a mesma “leviandade” perpetuada nos filmes mundo afora que usam malas em seus roteiros. O personagem tem que fingir que a mala está pesada, quando todo mundo vê que ela está vazia. Mas como a frágil Liv Ullmann (Eva) vai fingir, se ela está carregando, escada acima, quase correndo, duas malas que devem pesar (se estivessem cheias), cada uma, no mínimo, vinte e cinco quilos? Até tu, Bergman?

Leviandade seria nossa, a de nos preocuparmos com tal detalhe, o peso das malas vazias nos filmes de Bergman. Mas tal observação pode ter seu sentido. Afinal, a genialidade de Bergman faz das malas uma simbologia única, mostrando a extensão da personalidade de Charlotte, uma mulher do mundo e não uma mulher do lar, e atribuindo à filha o papel de carregar o peso das escolhas da mãe. Em Bergman nada é de graça, mesmo que sejam duas lindas malas vazias.

Ingrid Bergman, magnífica; Liv Ullmann, magnífica; Lena Nyman, magnífica. Não precisamos de mais nenhum outro adjetivo para alçar estas três estrelas a um dos momentos mágicos da história do cinema. Lógico que nesta vida nada é absoluto, nem mesmo a empolgação dos adjetivos. E tampouco a empolgação do espectador ao ver, em magnífica fotografia, a sucessão de cenas icônicas, dentre as quais ressaltamos duas, e que traduzem à perfeição uma das características mais fortes da filmografia de Bergman. Sua rigorosa preparação de atores.

Primeiro, a cena, logo no início, quando Charlotte fica sabendo da presença da filha Helena na casa da filha Eva. Contrariando sua vontade, Charlotte – eu tenho outra opção?, pergunta ela – concorda em ver a filha doente. O enquadramento em close absoluto-avermelhado das três, cada uma com suas sensações e vibrações interiores, é preciso e chocante. Interminável. Ali está presente toda essa mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição nas relações mãe-filha. Ali estão presentes as provocações que só a arte parece saber fazer. Ali está presente o fantástico fotógrafo Sven Nykvist que, a partir de 1953, passou a ser o inseparável diretor de fotografia dos filmes de Bergman, e é considerado, por muitos, um dos grandes fotógrafos da história do cinema. Ali está presente, enfim, o resumo artístico da genialidade de Bergman.

A segunda cena é a do piano, quando a filha, e depois a mãe, tocam o Prelúdio n. 2, de Chopin. Se dizem que cinema é close, e é no close onde tudo acontece, é onde a alma sai do limbo e se transforma em assombração, então é preciso assistir a esta cena e ver como o poder da mãe esmaga impiedosamente a tentativa de a filha de ser ela mesma. Não há espaço para a filha no mundo. Para onde a filha vai, para onde a filha se vira, para onde a filha olha, lá está a presença invisível da mãe, pronta para roubar-lhe o sentido do existir. Esta é a cena do piano.

Diante do que se disse acima, vamos pinçar, rapidamente, apenas uma assombração. O eterno embate dos filhos em achar que os pais vão se ajustar a eles, às suas necessidades afetivas e de auto estima. E o eterno embate dos pais em criar expectativas em relação a seus filhos, sem ao menos perguntar-lhes se é aquilo que realmente devem esperar deles. A expectativa anula o humano, assim como a frustrada ansiedade em relação aos pais gera dores intermináveis. Sonata de Outono, neste aspecto, se transforma num grito de alerta.

O filme coloca uma questão moderna para a mulher. A mulher profissional bem sucedida que, para conquistar e manter o sucesso, tem que se separar do lar e se distanciar dos filhos e marido. Foi isto que aconteceu com Charlotte? Ou Charlotte é apenas o modelo inevitável da mãe que transfere suas cicatrizes de mulher para a sua filha indefesa? Quando se trata de relação mãe-filha, para onde se olha, ouvem-se muitas perguntas e nenhuma resposta. Ah, sim! Há uma resposta. Quem vem primeiro, a mãe ou a filha? A mãe.

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Jogando com a morte

Por Antônio Roberto Gerin

Seja qual for a área do conhecimento humano, e de sua atuação, incluindo-se aí as religiões e as artes, um tema nos aflige por toda vida: a morte. E às vezes nos confundimos em querer saber se exatamente o que nos aflige é o ato de morrer ou o que acontecerá depois da morte. E aí entra uma temática muito cara a Bergman: a existência de Deus. E essa existência é questionada quando nos deparamos com o silêncio Dele. Silêncio absoluto, que exige de nós uma atitude singular. A crença como fonte da existência divina. Sem a fé, Deus não existirá. A não ser que Ele venha até nós e quebre o seu silêncio. Este é exatamente o diapasão narrativo do premiado filme O SÉTIMO SELO (95’), roteiro e direção de Ingmar Bergman, Suécia (1956). Reagir dolorosamente ao finito é nossa condição humana. Esta é a angústia existencial que percorre todo o filme O Sétimo Selo. E ele nos sugere uma outra angústia, esta bem mais prática. Afinal, o que fazermos com nossas vidas enquanto a morte não chega?

Antonius Block (Max Von Sydow), retornando a seu castelo, no norte da Suécia, após dez anos de batalhas nas Cruzadas, recebe a visita da Morte (Bengt Ekerot), uma imagem tenebrosa, vestida de manto negro e face esbranquiçada. É a morte, sim, em pessoa, que vem buscá-lo. A reação de Antonius é rápida. Diz ele, “meu corpo está pronto, mas eu, não!”. E imediatamente desafia a Morte para um jogo de xadrez, visando, assim, a protelar o seu fim. Se vencer, a Morte não o levará. E é neste jogo com pedras marcadas com a Morte que o protagonista vai se aproximando de seu castelo, passando por aldeias dizimadas pela peste negra. Poucos se salvarão, e Antonius quer, evidente, ser um deles.

O filme pode ser entendido a partir de vários ângulos, do histórico ao psicológico, passando sempre, com toda sua crueza, pela mísera existência humana. Estamos falando de uma Idade Média, século XIV, onde o ser profano é totalmente subjugado ao sagrado. E, paradoxalmente, é do sagrado que o homem tira forças para aguentar a servidão econômica e social a que está impiedosamente submetido. É por este cenário de intolerâncias religiosas, de culpas e horrores, acrescido da peste que assola a Europa e dizimaria um terço da sua população entre 1347 e 1352, que Antonius Block vai transitando, silenciosamente, querendo entender o que está além de qualquer entendimento. Ele quer preparar sua alma através da compreensão de um Deus que ele não consegue ver. Se ele não consegue ver esse Deus, o que o espera depois da morte?

A contrapartida de Antonius é seu escudeiro, Jöns (Gunnar Björnstrand), descrente, zombador de si e dos outros, com um nível de consciência raro para a época, mas que vai também, aos poucos, sendo arrastado para a escuridão. E, como é de se esperar, antes de chegar a seu castelo, Antonius Block recebe da Morte o xeque-mate. É o fim. Para ele, para Jöns, para todos. Não, todos não.

No meio de tantas mazelas, autoflagelos e sofrimentos, brilha, incólume, a arte. E a arte vem representada pelas figuras de um casal de artistas de circo itinerante, Mia (Bibi Andersson) e Jof (Nils Poppe). Eles, e o bebê. Alguns atribuem ao casal com criança a função dramática de simbolizar a sagrada família. Pode ser. O filme permite chegar a este simbolismo. Aliás, o filme é cheio de simbolismos, a começar pelas caveiras cuidadosamente dispostas em algum cantinho do enquadramento de algumas cenas. Mas conhecendo Bergman, pode-se também atribuir ao casal a função de representar a arte confrontada com a religião, arte que pode ser a cura para os males que aprisionam a raça humana à condição de títere do divino. Preocupado em participar de um festival de teatro, alheio ao jogo mortal, o qual, no entanto, Jof pressente, o casal muda o caminho em direção ao sul e, com isto, se vê livre da obrigação de participar da dança da morte. A arte sempre sobreviverá, pois ela não é o homem, ela é apenas sua sublime representação.

Ainda insistindo na discussão da importância decisiva, para Bergman, da arte como alternativa redentora à infortunada existência humana, vamos ressaltar a cena da taberna, em que o ator Jof é acusado injustamente de raptar a mulher do ferreiro. O artista é submetido a humilhações terríveis, diante de uma taberna cheia de beberrões e comilões, e todos, sem exceção, aplaudem, às gargalhadas, o festival de maldades. Esta cena não representa só a Idade Média, ela é o passado, o presente, e será o futuro. Jof é apenas alguém que precisa receber o lixo moral que escancara as nossas vergonhas e, por coincidência, segundo a percepção bergmaniana, a lixeira é a arte, o ponto sensível que nos assombra. Afinal, como dissemos, é ela, a arte, que nos revela a nós mesmos.

E a última cena, a dança da morte, antológica, sem dúvida, uma pintura de Rembrandt, uma pintura exata do nosso destino. É nesta pintura que vemos eternizado o jogo invisível da nossa existência. Em algum momento, já estamos avisados, faremos parte deste último ritual.

Enfim, o filme O Sétimo Selo nos apresenta uma realidade que conhecemos de sobra. Ele não inventa nem especula. Por isso, como seres humanos que somos, viajantes desta terra, temos que nos submeter à nossa condição finita. Deus pode existir ou não. Mas uma coisa é certa. Enquanto estivermos vivos, a morte será nossa companheira inseparável.

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