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Por Antônio Roberto Gerin

Quando apresentei minha gata Jade, no meu relato anterior, a que dei o título de A Gata Abusiva, de tanto que ela passou a tomar conta da minha vida, a ponto de querer eliminar tudo que pudesse me afastar dela, e só pra dar alguns exemplos, tipo quebrar meu espelho de maquiar, cortar tantas vezes quantas fossem necessárias o fio do meu fone de ouvido pra que eu não ouvisse música, arrebentar as cordas do meu violão, enfim, tudo era destruído pra que minha atenção se voltasse exclusivamente para ela, pois, tanto foi a minha aflição em falar da minha gata que deixei de apresentar, de propósito, o meu querido cão maltês, o Totó. Sim, o delicioso cãozinho que ganhei da minha mãe quando eu acabava de fazer sete anos. Portanto, lá se vão nove de convivência! Mas agora, com a chegada da Jade, as coisas mudaram um tanto. O Totó ficou magoado. E não foi pouco. A Jade, evidente, passou a dominá-lo como se ele fosse um brinquedinho casual. Totó se ressentiu, mudou alguns hábitos, em vão tentou cercar seu território, enfim, renunciou à vida e passou a dormir na cama da minha mãe. Ficava lá quase o dia todo, disposto a brigar pelo pouco espaço que lhe restara. Abatera-se-lhe uma tristeza silenciosa, que se refletia inclusive no seu latido, que mais parecia um grito de socorro. Entronizado em seu maravilhoso mundo de cãozinho bajulado por sua rara beleza, não contava com esse terrível lance! Aliás, e aqui introduzo meu segundo relato, nem a própria Jade, a protagonista da história, contava com o que viria a acontecer. Ela também iria mergulhar em silenciosa e prostrada tristeza.

Meu pai acaba de me presentear com outro gato! Sim, macho. Ioda. Agora somos cinco nesta casa. Eu, minha mãe, Totó, Jade e Ioda, o caçula! Todos isolados pela pandemia do coronavírus. E tivemos que, em pouco espaço, ajustar nossas convivências. O que não tem sido nada fácil.

Jade não se conformou absolutamente com a chegada do Ioda. Surpreendeu-nos suas reações. Encolheu-se, desapareceu, abandonou o afeto. Passou a me rejeitar. Recusava-se a entrar no meu quarto. Em hipótese alguma! Caminhava pelo corredor, nem olhava pela porta adentro. Sequer entrava pra comer e beber. Carinhos, abraços e beijos? Sumiram. Tive que colocar a comida e a água no corredor, pra que ela não morresse de fome e sede. E o que come é quase nada. Deprimiu-se. Perambula pela casa, sem rumo. Até o Totó, sobre quem ela tinha total domínio, passou a persegui-la, atrás de brincadeiras. Tenta encurralá-la com latidos, que ela despreza! Por mais que eu tentasse pegá-la no colo, afagá-la, ela, arredia, fugia. Era como se deixasse de existir. E eu me perguntava. Como tirar a Jade dessa tristeza…?

O Ioda chegou novinho, quase moleque, tive que dispensar a ele muita atenção, e, confesso, desliguei-me momentaneamente da Jade. Não que a tirasse do meu campo de afeto. Pelo contrário. Sentindo-lhe o desamparo, redobrei-o. Em vão. Ela me olhava, seus olhinhos verdes brilhavam, mas não tomava qualquer atitude. Mantinha-se distante, longe do meu quarto, pra ela agora o ninho de suas dores.

Pobre Jade! Fico-a imaginando deitada sobre o sofá, pensativa, os sobrolhos caídos, os olhinhos quase se fechando em atitude de alheamento. Meu Deus, Jade, nós te amamos, eu, o Ioda, até o Totó! Mamãe te adora! Venha pro quarto! Eu, na minha angústia, imaginando todos nós juntos, esparramados sobre a minha cama. Sonho até besta, sentimental, mas era o que eu tinha pra me oferecer.

Me lembra um pouco dos tempos em que Jade passou presa na gaiola, um método temporário que arranjei pra corrigir alguns hábitos possessivos dela. Não acho que errei! Ademais, foram só alguns dias, e logo comecei a abrir a portinhola. Ela podia entrar e sair. Com a chegada do Ioda, acabou a gaiola, o fato está esquecido, e espero que ela não tenha guardado mágoas. Ela só tem que entender que meu amor continua o mesmo, mas que agora vem a necessidade de aceitar que tudo na vida se divide. Inclusive o afeto! No entanto, vejo-a passar pelo corredor, diante da minha porta aberta, sem sequer olhar.

E assim se passaram muitos dias nessa apatia e distanciamento, que Jade fazia questão de manter a todo custo. Hoje à tardinha fui à padaria comprar chocolate pra fazer meu café cremoso, o mesmo café que eu costumava tomar com minha mãe todas as manhãs de domingo, no Frans Café, antes da pandemia. Quando retornei, a Jade não estava dormindo no sofá, como eu a havia visto antes de sair. Pressentindo algo, corri para o meu quarto. Jade estava deitada na minha cama! E logo percebi. Tinha rasgado boa parte do livro que eu estava lendo, As Aventuras de Tom Sawyer, que minha mãe havia acabado de me comprar. Sobre o peitoril da janela, o Ioda, sentado, orelhas em pé, a tudo observava, maravilhado! Num primeiro momento me desceu ao rosto raiva misturada à frustração. Mas logo me recobrei. Afinal, minha Jade tinha voltado!

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Por Geraldo Lima

 Disse-lhe, a voz sumindo no vão seco da garganta:

– Não posso encostar nem o dedo em você.

Ela fez que não ouviu – ou ouviu, mas ignorou. Aproximou-se mais de mim. Estava tão próxima agora que o seu cheiro batia denso e nítido nas minhas narinas. Eu senti o coração disparar, tomado pela emoção e pelo desejo.

– Não posso. Se eu encostar a mão em você, um tanto assim, tudo desanda. Eu perco o rumo de casa, já não vou mais saber quem sou. Entende por que não posso?

Ela quase roçou o corpo no meu, e seu cheiro adocicado, mistura de ervas e danação, me envolveu num transe sem volta.

Foi tudo tão rápido, tão fora do meu controle: ela pegou a minha mão e a colocou sobre um dos seios – ah, eu sempre quis aquilo, desde o princípio dos tempos!

– Você não devia ter feito isso, meu anjo, foi tudo o que consegui dizer.

Depois, foi pura consumação: brasa, carvão e cinza.

 

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

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Por Antônio Roberto Gerin

Tenho quinze anos, indo pros dezesseis, e tenho uma gata que se chama Jade. Linda, dengosa, companheira, a gata que eu sempre quis ter. Faz seis meses que ela mora comigo. Foi uma festa os primeiros dias. E continuou sendo nos seguintes. Era meu sonho, de anos, ter uma gata. E quanto não me custou convencer minha mãe…! Enfim, consegui. Tenho minha gata. Mas não é uma gata normal. Só percebi com o tempo.

Hoje esteve aqui em casa uma tia, a tia Madalena, que é bióloga, mora no Rio, e estava de passagem com destino a Chapadão do Céu, que, confesso, não sei onde fica. A primeira coisa que ela viu ao entrar em casa foi a gaiola encostada à parede, onde a Jade estava presa. O que é isso!? – perguntou, sem esconder o espanto. Uma gata… Presa! Numa gaiola!? Mais essa agora… Parece uma jaula! E depois desabafou. Merecia uma denúncia! Minha mãe tentou contemporizar. Exagero, Lena! Mas minha tia não se conformava. Como é que você deixa sua filha fazer uma coisa dessas? É temporário, Lena! Fiquei insegura, mas logo me dominei, empinei o queixo e antes que minha tia dissesse mais alguma coisa, retruquei. A gata é minha, tia. Faço com ela o que eu quiser. Ela vai continuar presa. E ironizei. Aí, na jaula. Tia Madalena me olhou, e disse. Sorte sua que você é minha sobrinha!

Este foi então o diálogo desta manhã de domingo, em minha casa, onde moramos eu, minha mãe e Jade, a enjaulada, presa por necessidade, temporariamente, como disse minha mãe. Acreditem. Jade se transformou, ao longo dos meses, numa gata abusiva.

Ainda pequena, logo se revelou uma gata fujona. Não à toa, traz no currículo uma fuga da casa anterior. Perdera-se na rua. Mas não perdeu o hábito de querer fugir. Dentre as tantas peripécias, além de ter alcançado o apartamento do vizinho através do forro do corredor, o último lance de fuga foi ter, apesar da tela, pulado do primeiro andar, lá embaixo, caindo sobre uma motocicleta estacionada, daí estatelando-se no chão. Ficou imóvel, fingindo-se de morta, à espera de socorro. Nem miava. Avisada pelo porteiro, minha mãe desceu correndo.

Foi crescendo, acostumou-se à casa, resolveu ficar de vez. E se apegou a mim. Tão manhosa, tão dengosa, a ponto de eu não aguentar mais vê-la se espichar à minha frente, barriga para cima, à espera das minhas mãos. Me persegue pela casa, adiantando-se e se espichando no chão. Eu estico o passo por cima dela, ignorando-a. Até que, no próximo ataque, vencida, eu me agacho e encho seu pelo eriçado com a carícia dos meus dedos. E ela rola, de lado a outro, me oferece o corpo todo. Alívio, só quando está dormindo. Ou quando se aboleta no peitoril da janela, no lado de fora, e fica observando o que acontece na rua. Até que acabaram as férias e eu retornei pra escola. Jade ficou só, em casa. Cada vez mais inconformada com minhas longas ausências.

As investidas em busca de atenção e afeto se intensificaram. Passou a ocupar todo meu espaço, a tomar todo meu tempo. Eu perdia a concentração. Não, pelo amor de Deus, Jade, não! Quero tocar meu violão, mas como! Tocar meu ukulelê, ouvir minhas músicas, quero pintar minhas aquarelas, estudar, quero falar com minhas amigas, quero sair, viver, droga!

Jade aos poucos começou a me afrontar. Um dia cheguei da escola, encontrei duas cordas do meu violão arrebentadas. Assim ela não me perderia para os meus momentos de música. Mas tinha o ukulelê. Até parece! Dias depois, encontrei-o na sala, a capa com rasgos de unhas, o corpo de madeira do ukulelê arranhado. Claro que ela buscava as cordas!

Dedico tempo do dia me maquiando, às vezes à noite, diante do meu espelho redondo que deixo sobre a bancada de estudo. Sou exímia maquiadora, tenho prazer, aprendo técnicas. Encontrei o espelho espatifado no chão! Ah, perdi o controle! Parti pra cima dela. Sem convicção, admito, mas aos gritos. Jade logo perceberia que havia passado dos limites. Usou de um estratagema inesperado. Fez um buraco na minha cama box, por baixo da base, furando o tecido. Ali se esconde quando as coisas não vão bem pro seu lado. Fica, nestes instantes, fora do alcance das minhas raivas. Mas como ter raiva de uma gata tão linda! Não resisto, agacho-me, chamo-a, com dengo na voz. Aí então ela aos poucos reaparece e tudo acaba em beijos.

Mas não desiste! Arranha minhas cortinas, deita-se sobre o meu livro, caminha pelas teclas do meu computador, toma abusivamente conta da minha vida! Foi, aos poucos, apoderando-se de tudo que era meu. E foi se tornando quase que insuportável pra mim. Meu afeto escondia-se agora atrás da minha impaciência.

E sem que eu esperasse, ela acabou indo além do que eu podia imaginar. Passou a destruir meus fones de ouvido. Um a um. Minha mãe comprava, não dava pra uma semana. Três em um mês. Dois num prazo de três dias! Cento e quarenta e quatro reais cada um! Tenho o hábito de ouvir música, enquanto desenho, enquanto estudo, enquanto me preparo pra dormir. Durante meu sono, pesado, Jade corta o fio. Por castigo (falta de responsabilidade, né, minha filha!), minha mãe parou de me comprar fones. Eu até argumentei. Mãe, você está justo fazendo o que a Jade quer!

Até que chegou o dia em que tudo desaguou em choro e ódio. E foi por causa do que vou contar que Jade foi parar na gaiola. Passou a ter ciúmes do meu coelho de pelúcia, que dorme comigo, aconchegado em meu rosto, todas as noites.

Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai me presenteou com um coelho de pelúcia, da cor suavemente rosa. Havia um mecanismo que fazia com que suas enormes orelhas se abanassem, enquanto tocava uma doce música. Nas patas dianteiras, presa, uma enorme cenoura! Era comum, e delicioso, meu pai usar uma das enormes orelhas pra fazer cócegas nas minhas orelhas! O coelho me parecia enorme aos dois anos. Dormia a meu lado, silencioso e simpático, por quem eu estaria desde então afetivamente presa, como se ele fosse fazer eternamente parte da minha vida. E faria, já que eu ia pelos meus seis anos quando meus pais se separaram. O coelhinho passou a me acompanhar todas as noites, nos meus momentos de saudades do meu pai. Era a presença que eu tinha dele. Jade passou a dormir entre meu rosto e o coelho. Não escondia o ciúme. Até que um dia o destruiu!

Passei vários dias em silêncio. Rejeitava minha gata, tentando entender por que razão as coisas não podiam ficar cada uma delas em seu devido lugar. E pensava no que eu havia feito de errado pra que Jade se permitisse me tratar como propriedade sua. Porque era assim que eu me sentia, entregando minha vida aos caprichos dela. Aí veio a ideia da gaiola. De aplicar um corretivo, mudar os hábitos da minha gata.

Voltando ao diálogo desta manhã de domingo, depois que eu terminei minha fala arrogante, depois que eu havia dito pra minha tia que a gata era minha e que ela continuaria presa, eu ainda pensei em dizer mais algumas coisinhas. Tipo. Pode ir lá, tia, me denunciar. Por maus tratos! Tira uma foto e publica nas redes sociais! Mas não. Disse mais nada. Olhei pra minha gata, me abaixei até o chão, me apoiei nos cotovelos, e através da grade da gaiola ofereci a Jade os meus lábios. Ela, como sempre faz, aproximou-se, fechou os olhinhos verdes e me beijou.

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