Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

A duas camadas de tecido abaixo da pele negra, sentiu o motor da máquina-corpo falhar. A disritmia. O corte brusco no bombeamento de combustível através da malha de veias. A fisgada, não de peixe, mas de faca que penetra aguda e tensa.  Queria duvidar: cessar assim, sob sol matinal, o pulsar forte de todos os dias? O pulsar sanguíneo, ininterrupto? Pois não estava de pé há anos, numa demonstração de vigor e saúde esse tempo todo? Árvore frondosa, milenar, que não tomba nunca – Baobá invencível pelo tempo. Até uma certa arrogância, de pretensa eternidade, nesse modo de viver. A esposa, mesmo pregando no deserto, alertava sempre, não facilita, com saúde não se brinca.

Ainda há pouco havia planejado uma série de ações para os próximos dias, tal o estado de excitação e energia que lhe tomava o ser. Bebeu uma xícara de café bem quente e acendeu um cigarro. Ah, não poderia haver prazer maior que esse. Fuma lá fora, a esposa lhe pediu. Então abriu a porta e a brisa morna da manhã bateu de leve no seu rosto. Uma carícia tão agradável que o fez lembrar-se dos primeiros anos ao lado de Alice. Afastou-se alguns metros e foi aí que sentiu como que um soco no peito.

A duas camadas abaixo da pele negra, o motor da máquina-corpo enguiçando, dando sinais de uso e corrosão, de sobrecarga de emoção e estresse. Um bater agora fraco, quase nenhum. O som abafado do motor de um Teco-Teco pifando no alto, até vir abaixo e bater estrondoso no solo. A mão invisível que puxa uma cortina enorme para diante dos olhos, isolando-os da paisagem. Não poderia esperar jamais um final assim tão abrupto, fora do script, sem tempo nem para agradecer ou dizer adeus.

[Este miniconto faz parte do livro inédito Lascas & outros balbucios]

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

Ao meu pai, in memoriam

Começa a ouvir os ruídos de sempre assim que o sol atravessa as vidraças e as cortinas e avança sobre o breu dos quartos. Não ouve com a mesma nitidez de antes, mas pode distinguir, ainda, o ronco do motor dos ônibus entupidos de gente sonolenta, sem ânimo; passos que ressoam na calçada rumo ao trabalho, supõe; um passarinho que canta todas as manhãs na copa da mangueira, um sabiá, tem quase certeza (meu Deus, o que faz um sabiá aqui, longe, longe do seu mundo?!); uma tosse, uma garganta que se livra do catarro logo cedo na casa vizinha.

Todo dia é assim, e há anos ele assiste a esse espetáculo, passivo, quase alheio. Houve um tempo, porém, em que era parte pulsante dele, um dos seus protagonistas. Agora muito pouco lhe resta ainda para extrair da vida. Sabe que não tarda a noite eterna, avessa à luz, por isso procura sempre se adiantar ao movimento incessante do dia: é o primeiro a se levantar, abrir a porta e respirar o arzinho frio da manhã que se inaugura. Pai, não passa daí, viu? Nada de ir pra rua!, já ouviu mais de uma vez a filha recomendando, proibindo, delimitando seu território.

Antigamente, era ele quem ia à padaria comprar o pão e o leite. Quando todos acordavam, o café já estava pronto e a mesa posta. Hoje, é essa inutilidade que levanta e nada mais pode fazer. Que não pode nem atravessar a fronteira que separa a casa da rua. O mundo tornou-se perigoso, vasto, indecifrável: uma armadilha para os velhos e as crianças. O mundo-monstro. O além-mar, o além-portão. O que a mente, gasta, já não pode compreender. O que os olhos, minimizados, já não podem abarcar.

Da sala dá pra ouvir o burburinho de agora e o de muito tempo atrás, com outros sons, obviamente, outros destinos. Esse barulho de roda sobre o asfalto ainda molhado de sereno é da carroça de Minervino, não tem dúvida. Passou a vida toda ouvindo isso, como pode não ter certeza? A voz de Dona Efigênia conversando com o leiteiro, ah, o leite que ele vende não é que nem a água rala que a gente compra na padaria. Não, não, é leite da fazenda mesmo, saído há pouquinho do úbere da vaca. Vai comprar é desse leite, queira sua filha ou não.

Ah, demorou tanto a decidir se comprava ou não o leite que o homem já foi embora. Nem sombra também de Dona Efigênia. Aliás, a rua lhe parece agora muito diferente. Que terá acontecido? Mundaréu de carro indo e vindo.  Tem mais barulho aqui fora do que ele consegue ouvir lá de dentro. Também a audição anda meio fraca ultimamente. Pai, cadê o aparelho pro ouvido, hein? Como o senhor vai ouvir alguma coisa se não usa? Parece criança. Usar até que ele usa, mas não o tanto que devia. Põe e logo retira: o trem lhe dá gastura, é um incômodo insuportável. Prefere ouvir tudo minguado mesmo, retalhos de conversas, palavras mutiladas, sem adorno, sem sentido. Agora o silêncio é uma ilha onde ele, náufrago do tempo, sente-se seguro e em paz.

Bem que ele queria atravessar a rua, ir até a padaria em frente, porém essa névoa que cobre tudo não deixa. De uns tempos pra cá, as manhãs têm sido assim: vestidas com essa névoa rala, mas persistente. Para piorar, sua vista anda muito fraca, quase não o deixando reconhecer as pessoas nem as coisas do dia a dia. Juntando-se a isso o fato de a sua memória estar falhando frequentemente, tem-se o quadro clínico completo da sua decadência.  Uma merda! É até motivo de riso. Tratam-no agora como se fosse criança. Pai, o senhor já almoçou, já se esqueceu?  Ah, é mesmo, concorda, enquanto é açoitado pelo riso dos netos.

Isso não acontecia quando Joana ainda estava entre eles. Agora, que está velho e só, todos podem fazer o que bem quiser com ele.

O rapazinho que o ajudou a atravessar a rua tinha bem as feições do filho de Dona Ilda, mas pareceu não o reconhecer. Estranho, na padaria ninguém o reconheceu também. Mas custava eles terem vendido o pão e o leite para ele pagar depois? Até bem pouco tempo atrás, não era assim: podia entrar ali sem um tostão no bolso e sair com um saco cheio de pão, que o dono confiava. Ah, também ele tinha que esquecer onde morava logo agora? Pai de quem? Não, ninguém se lembrava.

Que aflição! Que desespero silencioso e trágico.

Tudo, tudo parece fazer parte de outro mundo agora. Tem coisa que está aqui e que não estava há alguns anos. Esse prédio aí, isso não existia. Essas casas apagadas pela névoa lhe parecem familiares, porém muitas lhe dão a impressão de terem saído de uma fôrma que ele desconhece totalmente.  Mesmo assim vai se arriscar a ir um pouco mais adiante, até a esquina. Antes de seguir, olha para trás e é como se alguém tivesse passado uma borracha na paisagem, apagando o mundo de onde ele havia emergido: tudo o que lá está acabou de brotar do nada.

Poderia entrar em pânico, mas já está bastante velho para se desesperar à toa assim. Para quem já passou por situações muito mais complicadas do que essa e tirou de letra, isso é nada. O que é preciso fazer é ir em frente.  Tem quase certeza de que a casa do seu compadre Gérson fica só um pouco mais adiante. Vai aproveitar então esse passeio para lhe fazer uma visitinha, assim mesmo, sem avisar. Um dedo de prosa com ele, logo de manhã, vai lhe fazer bem. Como pôde ter passado esses últimos anos sem o calor das conversas com os velhos amigos?!

O diabo é que ninguém parece conhecer mais os outros nessa cidade.  Não, não mora ninguém aqui com esse nome, não. O senhor tem certeza que é esse o nome? Ora, por acaso ele está gagá ou louco? Dá vontade de dizer umas coisas, mas é melhor deixar pra lá. Essa gente não merece nem o seu desprezo. Não faz muito tempo, e todo mundo se conhecia. Fulano era filho de sicrano, neto de beltrano, e pronto. Entrava na casa de qualquer um a hora que fosse. Agora, mal abrem a porta. Parece que tá todo mundo se borrando de medo.

Resolve mudar de plano e virar à esquerda, descendo a rua. Vai só um pouco mais adiante e depois decide o que fazer. Sabe que tem que voltar para algum lugar, só não se lembra bem para onde. É bem capaz que esse lugar também nem exista mais.  Há tempos, talvez, ele esteja andando assim pela rua, sem rumo certo, barata tonta em meio à multidão. As ideias estão meio confusas, porém não é nada com que deva se preocupar demais. O negócio é ir tocando a vida. Quem já viveu tanto não vai se assombrar com pouca coisa.

A cidade já está toda de pé, numa agitação danada. Isso até que o distrai e o anima. Quem sabe encontra um conhecido e acaba entrando num bar para tomar uma pinga, como nos velhos tempos. Sente uma vontade doida de gritar, de apertar a mão dos passantes, de dizer: Bom dia!

Onde está aquele calor de antes? O que houve com aquele mundo? Não é possível reconhecer mais nada, nem ser reconhecido.

A névoa.  Ah, a névoa!

Apesar desse quadro desanimador, experimenta uma sensação gostosa de liberdade, como se já não lhe importasse mais a ideia de um lugar fixo para onde devesse voltar. Embora tenha andado bastante, sente-se com ânimo de criança disposta a brincar o dia inteiro. Não fosse essa névoa que o segue por onde ele vai, como uma maldição ou o prenúncio da noite que não clareia nunca, poderia ir até o fim do mundo sem temer cair no abismo.

As pernas (só para contrariar o restante do corpo) fraquejam e ele é obrigado a sentar num dos bancos da praça. Não vai demorar ali, ainda tem muito chão pra andar. A cidade cresceu absurdamente e ele deve levar o dia todo indo de uma ponta a outra. Porém nada disso tem importância: ele é livre e vai para onde bem quiser.

Sem que ele tivesse percebido, a névoa tornou-se densa. Agora, por mais que abra os olhos, já não consegue ver mais nada.

Há um princípio de pânico que ele tenta administrar com sabedoria e calma. Não resta dúvida de que a partir desse momento é preciso ouvir com atenção redobrada. Os olhos, ele constata, já não funcionam mais. Tem a impressão de que outras partes do seu corpo começam a deixar de funcionar, mas prefere não pensar nisso. Tudo o que precisa fazer é ouvir com atenção.

Então ele ouve a voz que brota do interior da névoa. Uma voz com a qual ele conviveu durante muitos anos. Ela soa nítida, musical, inconfundível: é como se ele ouvisse Joana falando ali, bem perto dele, tão perto que dá a impressão de que a voz amada escapa de dentro da sua cabeça e não do interior da névoa. Ele, no entanto, refuta essa impressão que só o faria parecer um louco. É de lá, do interior da névoa espessa, que ela vem, a voz da esposa morta há anos. É lá que Joana está perdida e implora pela sua ajuda. Joana chama — o mais encantatório dos chamados — e ele, sem vacilar, vai ao seu encontro.

[Este conto faz parte do meu livro Uma mulher à beira do caminho. Editora Patuá, 2017. O livro pode ser adquirido na Amazon ou no site da editora.]

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

“Como nessa gente sadia, forte, alegre, tudo está equilibrado, como em suas almas e cérebros tudo está aplainado e concluído.”

           (Tchekhov – Uma crise)

 Uma enfermidade de gente deitada ali, onde, há pouco, o sol se esparramava todo, ilha de luz convidando ao exílio, ao evadir-se do mundo. Agora a penumbra serve de esconderijo, e o corpo mescla-se ao turvo, deixando quase de existir. Não há mesmo o aonde ir. Nem mesmo o pensamento escapa da jaula do crânio. Criar musgo, fundir-se ao piso, deixar que o ser míngue, — respiração quase nenhuma, dando conta, no entanto, ainda da presença de uma alma no corpo.

O baque seco duma bola contra o muro arranca-a desse estado de falência múltipla.    

Outra vez a vontade de fumar, irredutível. Por mais que resista, dizendo a si mesma que não moverá um músculo sequer para atender aos apelos do cérebro, acabará flagrando-se com a carteira de cigarros na mão, cheia de culpa, salivando, trêmula, e, nesse ínfimo intervalo de tempo, entre o mover da mão e a espera aflita dos neurônios, ensaiará ainda uma resistência, tépida, mais rendição que luta.

Por que promete a si mesma que lutará contra tudo e todos se, no fundo, sabe que lhe faltará a energia e a obstinação necessárias? Se vai recuar diante dos primeiros sinais de realidade brutal e inane, por que então se colocar em guarda contra moinhos de vento? Mário sempre lhe cobrava uma atitude mais firme, uma tomada de decisão que não sucumbisse aos primeiros apelos da desrazão. Durante anos e anos suportou a corrosão do seu discurso, a impiedade dos seus gestos pulverizando as manhãs e os anoiteceres.

É mesmo a figura inteiriça de Mário que brota do nada e põe-se diante dela derramando palavras por todos os orifícios. Quer subjugá-la, deixá-la paranoica, convencida de ser realmente um ser fraco e inviável. Num repetir incessante, esvazia-a de si mesma. Quer que ela se purgue por sua entrega aos afagos da morte, por seus passeios para além dos escombros da realidade. Difama-a perante o mundo inteiro. O grande canalha, tão resoluto, sem lacunas, sem brechas por onde a dúvida e o desespero possam penetrar. Pudesse, expunha num outdoor minúcias da sua vida, dando conta das inúmeras vezes em que ela caiu sob o peso da cruz que carrega, segundo ele, sem motivo algum.  Caiu e teve de se levantar sozinha, sempre, sempre, porque esperar por um Simão aqui, nessa via-crúcis cotidiana, nesse cilício, seria perda de tempo, não é, Mário? Não é, seu grande crápula?! Sabe que é inútil se indignar assim: ele já se encontra a léguas de distância, surdo como sempre a todos os seus gritos.

A bola bate de novo no muro, estrondosa. É assim quase todos os dias, mal escurece. A meninada parece não ter outra diversão senão essa. O diabo é que vez ou outra a bola acha de cair no seu quintal. Então já viu: se ela não apanha a infeliz e a joga de volta para os meninos, logo um deles se atreve a saltar o muro para apanhá-la. Tem xingado, esbravejado, feito papel de louca, mas parece que nada disso tem adiantado, já que continuam invadindo o seu espaço e troçando da sua cara.  Mas agora está disposta a enfrentar tudo isso. Está mesmo disposta a dar um fim a tudo, tanto à voz  de Mário, — voz de lanho que lhe flagela os ouvidos — quanto a esse tormento de menino gritando e saltando o muro.

Ah, que esforço tem feito para reter na mente os derradeiros fios de razão. Entre uma pane e outra, põe-se num labor intenso, dando nova feição à casa, espanando os móveis, trocando cortinas, afugentando insetos.  Súbito, desperta-se para o óbvio: precisa varrer a imagem de Mário da sua mente; depois de tantos anos, ele ainda está aí dizendo o que ela deve ou não fazer. É uma questão de saúde!  Há um desejo profundo de recuperar a ordem e a clareza. Nesses momentos, sentindo-se dona dos próprios atos, planeja abandonar o cigarro, mentaliza mesmo todo o processo, e chega a jogar fora o maço que acaba de comprar. Quer se livrar de tudo o que a oprime, principalmente da voz de Mário. Espera, ao final de tudo, ter enterrado para sempre essa voz vazia e seca.

Saudade mesmo é da gata que sumiu há mais de um mês. A gata que miava do lado de fora quando retornava dos longos passeios pelos quintais da vizinhança. Espera ainda que ela retorne e arranhe, aflita, o verniz da porta. É tão fraca, tão pusilânime, que vai deixar que ela entre como se nada tivesse acontecido.

Acaba de abandonar a área de quase-trevas e busca desesperada pela carteira de cigarros. Encontra-a metida no vão da estante, num lugar onde ela costuma esconder todas as outras. Sabe que, no fundo, tudo não passa de um jogo. E tem blefado o tempo todo, jogando com os limites da lucidez e da demência. Porém já não tem tanta certeza de quem está decidindo as regras desse jogo. Pode muito bem ser ela ou outra que a corrompeu nos mínimos detalhes, fazendo com que se mova fragmentada e sem memória. Quando foi mesmo que escondeu essa carteira? Tem quase certeza de que foi há pouco tempo, quase, quase, mas pode ser também que já estivesse aí há dias, ou meses! E deve haver outras tantas escondidas por aí — centenas! — entre vasilhas, roupas, móveis e enciclopédias.

O cinzeiro transborda, denunciando as inúmeras vezes em que ela recuou, quebrando a promessa de abandonar o vício. Tudo, tudo transborda. A voz de Mário também tem vindo com mais frequência à sua mente, num martelar corrosivo, purulento. Parece também que hoje os meninos estão gritando mais, numa zoeira infernal.  Mas está preparada para o caso de a bola cair dentro do seu quintal. Está preparada para tudo, para a vida e para a morte. Para a enchente e para a manhã de sol espocando na janela.

Ouve súbito baque de pés aterrissando no chão do quintal.

Já esperava por isso. No vão da mente, turva e desassossegada, tudo está planejado. Nunca, nunca agiu com tanta lucidez assim. Voz alguma poderia fazê-la recuar agora, e pela primeira vez irá ao cerne da questão. Vai insurgir-se contra esses mandos que, mesmo depois de anos, ainda teimam em reverberar pela casa.

Contaminada por essa certeza, vai à cozinha e apanha a faca.

Ao abrir a porta, surpreende o menino tentando escalar de volta o muro, tentando retornar à vida, à claridade da rua, ao sol da infância.  Mais alguns passos e poderá alcançá-lo em pleno desespero de pássaro tentando atravessar o vidro da janela.

Este conto faz parte do livro Baque [LGE Editora].

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.