Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Por Alex Ribeiro

Um filme visceral

Estômago (113’) é uma produção Brasil/Itália (2007), do diretor Marcos Jorge, aliás, seu longa-metragem de estreia. E que estreia! Como diz a expressão popular, pelos vários cantos desse Brasil, “chegou metendo o pé na porta!” Se você, caro leitor, é um desses transeuntes internéticos que às vezes está à procura de um bom filme para se deleitar, provavelmente já esbarrou em alguma lista de excelentes filmes a serem vistos. Ah, as famigeradas e polêmicas listas! Pois bem, Estômago está em muitas dessas listas de filmes brasileiros que são recomendados pelos amantes da sétima arte. Além disso, está entre os cem melhores filmes de produção tupiniquim, segundo a Abrancine, associação de críticos de cinema brasileiros. É, portanto, um filme que caiu nas graças da crítica. Mas, e o público? Esse costuma ser mais generoso, visto que seu objetivo maior é consumir as belas experiências que um filme pode lhe proporcionar, e neste sentido Estômago é, também, bem visto pelo público. E o que faz de Estômago um bom filme? Uma combinação de vários elementos dá a ele um tempero agridoce e que leva o filme do belo ao grotesco na medida certa, aflorando no seu espectador uma série de sensações viscerais. Estômago brinca com os nossos instintos e por isso o seu tempero artístico é doce e amargo. Se estamos falando de instintos, teremos aqueles que vão nos levar à criação, ao amor, ao sublime, através da força de Eros. Mas também à destruição, agressão, ao grotesco, desta vez, por Thanatos. Portanto, se você está a fim de consumir um filme que te surpreenda com saborosas sensações, apresentamos a você Estômago.

Marcos Jorge não poderia ter estreado tão bem se não contasse com um belo roteiro em mãos, e foi exatamente isso que o roteirista Lusa Silvestre lhe ofereceu. Lusa apresentou a Marcos um de seus contos, Presos Pelo Estômago, e a partir dele um trabalho árduo de três anos deixou o roteiro pronto para que Estômago ganhasse as telas. Eis aqui um dos grandes méritos do filme. A forma com que ele vai nos apresentando o protagonista Raimundo Nonato, com suas particularidades, é o grande achado do roteiro. Há algumas críticas de que ele seja didático em excesso, e que tenha muitas cenas escatológicas, porém, isso não chega a comprometer o filme, que faz questão de balancear alguns excessos com surpreendentes e refinadas cenas.

Vamos agora ao nosso protagonista, o anti-herói Raimundo Nonato (João Miguel). Migrante nordestino, um tipo brasileiro bem marcado no nosso arquétipo nacional, o personagem de João Miguel não se apresenta como mais uma caricatura do nosso cinema. Pelo contrário, dentro daquele dócil e ingênuo homem tem uma força passional capaz de detonar tragédias, e é isso que ele vai nos revelar durante o filme. Não à toa, João Miguel ganhou vários prêmios de melhor ator com esse filme, o que não é nenhum exagero, visto que sua construção deixou Raimundo Nonato escancaradamente humano, no belo e no grotesco. De rapaz dócil, o aprendiz de cozinheiro se torna presidiário, de Raimundo, já no presídio, ganha a alcunha de Alecrim. Esta é a transformação que o filme de Marcos Jorge permite ao ator João Miguel, que não decepciona. Mas o caminho até Raimundo se tornar o Alecrim é longo. Recém-chegado ao sul, Raimundo é explorado por seu primeiro empregador, Zulmiro (Zeca Cenovicz), que o ensina a fazer pasteis e coxinhas. Das coxinhas Nonato chama a atenção de um dono de um grande restaurante, o italiano Giovanni (Carlo Briani), que lhe oferece um emprego e ensina a Raimundo Nonato a arte da culinária. Junto a este primeiro quadro temos a presença avassaladora e glutona da prostituta Íria (Fabiula Nascimento), por quem nosso protagonista se apaixona perdidamente.

Um segundo momento, narrado em paralelo com a chegada do nosso Raimundo, se dá quando Nonato chega ao presídio para cumprir pena por seu crime. Crime este até o momento desconhecido do espectador. Ali, ele vai parar na cela presidencial, aquela cela onde o chefão do presídio se aloca. E quem é o Chefão? Bujiú (Babu Santana) é o dono do pedaço, figura que passa a exercer sobre Nonato a mesma influência que o chef Giovanni tivera no passado. Porém, se Eros era o regente do italiano, Thanatos dá o tom que Babu traz à cena visceralmente. Eis que agora nosso anti-herói se torna Alecrim, o cozinheiro oficial do preso mor. Vale ainda uma menção ao belo Paulo Miklos. O titã que já havia surpreendido como ator no filme O Invasor, não deixa a desejar em nenhum momento. Como se vê, um elenco recheado de excelentes nomes das nossas artes cênicas, que foram escolhidos com muito esmero, segundo relata o próprio site do filme.

Enfim, temos em Estômago um filme que dá sabor em assistir. Além do belo roteiro, belo elenco e da direção precisa, vários takes brincam com a ilusão gustativa do espectador quando nosso protagonista exibe suas iguarias e sua habilidade em prepará-las. Poderíamos fazer uma análise profunda do nosso protagonista, principalmente quanto à noção de identidade que ele vai forjando de acordo com as experiências pelas quais vai passando. Mas, é melhor que o leitor descubra por si mesmo o quanto o filme e o próprio João Miguel têm o tempero na medida para nos servir um belo prato artístico. E, em tempos emblemáticos como os que estamos vivendo no Brasil, Estômago pode nos dar a pista de quais são as passionalidades que nos fazem estar cotidianamente em embate com nossos pares. Talvez Thanatos esteja mais presente, desequilibrando o tempero. O certo é que um aroma de morte vem acompanhado por um banquete de más intenções preparado em tramas palacianas. Iremos nos servir desse prato asqueroso? Que o rejeitemos visceralmente!

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Holocausto, um olhar cotidiano

Por Antônio Roberto Gerin

PARAÍSO (135’), com direção de Andrei Conchalovsk, Rússia/Alemanha (2016), em cartaz nos cinemas, é mais um filme sobre a perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Quem gosta deste tema, sempre trágico, pode ir logo reservando o ingresso, porque vale a pena assistir. Para quem não aprecia, fica aí a sugestão de ver um filme sobre tema recorrente, mas mostrado a partir de um ângulo revelador. E a diferença desta história de holocausto para outras tantas é que ela é mostrada por dentro da tragédia, é dada a oportunidade aos personagens chaves trazerem suas angústias, suas convicções ideológicas e manifestar suas fraquezas e mesquinharias, como se estas atitudes fossem ações corriqueiras, o que nos leva a ver as barbáries do nazismo em pesos e medidas diferentes. Ironicamente, é como se disséssemos que há tempo para se viver naquele campo de concentração.

Neste caso, são os mesmos ingredientes de tantos outros filmes sobre a mesma temática. O campo de concentração, a câmara de gás, o preso que vai trabalhar na casa do oficial chefão, não há, no entanto, o trem chegando abarrotado de judeus, mas há a menção ao trem, e a imagem, verbal, é feita de uma forma tão arrebatadora que não tem como não imaginar um trem abarrotado de judeus entrando naquele campo de concentração. A dor constrói a magia da imagem, numa pungência que nos abala e nos emociona.

O filme narra a trajetória de três personagens que acabam se encontrando em momentos tensos da guerra, cujo cenário é a ocupação francesa, quando o canhão e a política se locupletam, para o desespero e a vergonha de muitos franceses. E traz um elemento forte, que é a corrupção, tanto por parte dos militares nazistas quanto de seus prisioneiros judeus. Pasmem, os judeus, nos campos de concentração, enquanto não iam para as câmaras de gás, continuavam sendo seres humanos! E isto num lugar onde a insanidade ideológica toma conta, o jogo moral e o jogo social passam a não ter regras, e rouba mais quem tem menos escrúpulos. Nada segue impune, nem mesmo a personagem chave, uma princesa russa, que faz de tudo para salvar duas crianças judias e, por isso, é condenada. Aí talvez esteja a grande crueldade do filme. E seu aspecto original. O tão sonhado paraíso é visto a partir do inferno.

Em suma. Os filmes sobre o tema geralmente mostram só o inferno, e o inferno, neste filme, é o paraíso perdido. A princesa russa, por necessidade de sobrevivência, vende sua moral no varejo, mas se recusa a vender a sua ética, e quando percebe que sua ética não cabe neste mundo, prefere morrer. E esta é a oportunidade de assistir ao filme. Para aprendermos que paraíso e inferno, se existem, somos nós que os criamos.

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