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A rainha amada

Por Antônio Roberto Gerin

Em 1759, nasce, em Marbach, Johan Friedrich Schiller que, aos quarenta anos, já no final de sua curta vida, escreveria MARY STUART (1800), uma das grandes obras primas da literatura universal. Schiller, por ser filho de médico militar, viria a residir, na sua infância e adolescência, em várias pequenas cidades da região de Württemberg, cuja capital era Estugarda (Stuttgart). Já adulto e formado em medicina, aos vinte e um anos Schiller conheceria a fama com seu primeiro texto teatral, Os Bandoleiros, levado ao palco em Mannheim, em 1780, sob a tutela do barão Von Dalbert, admirador de primeira hora da obra literária de Schiller. Aliás, Os bandoleiros, que narra as rebeldias de um jovem estudante, viria a se tornar uma das principais referências do pré-romantismo alemão. Com o sucesso de seus textos iniciais e a paixão pela literatura, Schiller abandona a profissão de médico e, após várias andanças, acaba se estabelecendo em Weimar, à época, um dos grandes centros culturais da Alemanha, onde, já casado, iria se dedicar à escrita e a novos estudos. É em Weimar que Schiller conhece Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), dez anos mais velho que ele, e firmam uma amizade baseada na admiração mútua, e que duraria até a morte de Schiller, aos 44 anos, em 9 de maio de 1805. E é em Weimar que o agora também filósofo e historiador Friedrich Schiller escreve seus principais dramas históricos, já totalmente liberto dos eflúvios do pré-romantismo. E é neste período que surge um de seus mais conhecidos e aplaudidos dramas, Mary Stuart, finalizado e encenado em 1800, no Teatro de Weimar, dirigido pelo próprio Schiller. Desde então, Mary Stuart tem tido uma trajetória gloriosa pelos palcos mundo afora, chegando pela primeira vez ao Brasil em 1955, através do Teatro Brasileiro de Comédia, com Ziembinski dirigindo duas de nossas grandes atrizes, as irmãs Cleyde Yáconis e Cacilda Becker, que protagonizaram, respectivamente, Elizabeth e Mary. E vale ressaltar. Com primorosa tradução do nosso poeta Manuel Bandeira.

A base dramática do texto Mary Stuart gira em torno dos conflitos político e religioso entre as rainhas da Inglaterra e da Escócia, e que apenas refletem os tumultuados conflitos históricos nas relações político-militares entre os dois países, que se estenderiam por vários séculos. O direito ao trono inglês, reivindicado por Mary, vem do casamento de seu avô, rei da Escócia, James IV, com Margarida Tudor, em 1503, ligando assim as duas casas, Tudor e Stuart. Acontece que sua prima Elizabeth era filha bastarda de Henrique VIII com Ana Bolena, e esta origem incômoda tornar-se-ia o calcanhar de Aquiles do reinado da anglicana Elizabeth, no seu eterno embate com a católica e legítima herdeira ao trono da Inglaterra, Mary Stuart. É destes embates que Schiller se valerá para compor seu drama histórico. Schiller, artista intenso, de índole apaixonante, afeito a arroubos idealistas, não esconde seu encanto pela inconseqüente, impulsiva e exuberante rainha Mary Stuart. É dela que trata o drama. Elizabeth, com todos os seus conflitos de poder, linhagem e inseguranças afetivas, entra apenas como contraponto à heroína de Schiller.

No decorrer dos cinco atos em que se divide a peça, Schiller fará um minucioso apanhado psicológico e moral das rainhas, trabalhando em versos iâmbicos, de rara beleza, as diferenças entre as duas mulheres. Mas antes de entrarmos nesta discussão, vale colocar uma questão primordial. O processo criativo do artista que se utiliza de fatos reais e históricos para compor sua obra artística. Do dramaturgo ao escultor, do romancista ao pintor, este processo de transformação da realidade em arte é que coloca o artista como agente cultural da sua época.

O fazer literário de Schiller é um exemplo clássico de como o artista tem que ser criativo e corajoso para tirar o maior proveito possível de fatos históricos para compor, com grandeza, sua obra artística. Schiller tornara-se ao longo dos anos um conhecido historiador, e esta condição de conhecedor da História viria a ser uma fonte fértil e febril para a edificação de sua magnífica obra teatral. E o texto Mary Stuart beberia avidamente de fatos históricos para traçar o perfil pessoal de duas das grandes mulheres da história universal. Evidente, Schiller se debruçaria com mais vagar sobre a tumultuada trajetória de vida, pública e privada, da inquieta Mary Stuart para escrever com vigor sua tragédia bem composta. E vamos ver ao longo da obra, exemplos pontuais de como Schiller não segue à risca a verdade histórica dos fatos que envolvem a prisão e morte de sua personagem. E aqui está o verdadeiro artífice, que não se submete aos fatos reais para compor um painel histórico, mas usa, habilmente, destes fatos para compor uma grande obra literária.

Ao iniciar o primeiro ato, Schiller já coloca Mary Stuart na prisão. E se vale de um fato curioso para compor o núcleo da tragédia. Na vida real, as duas rainhas nunca se encontraram pessoalmente. Mary Stuart estivera presa no Castelo de Fotheringhay, distando mais ou menos cento e cinquenta quilômetros ao norte de Londres, a caminho da Escócia. Mas para Schiller este fato não o abala. O impulso que move a narrativa poética fabulada por ele é o profundo desejo nutrido por Mary Stuart de se encontrar com sua rival, Elizabeth, onde Mary teria a oportunidade de expor, com súplica e veemência, a sua inocência. Os dois primeiros atos preparam o encontro que se dará no terceiro, dedicado a relatar a famosa entrevista que a história jamais registrou. Por ironia, Elizabeth morreria sem deixar herdeiros, e o trono da Inglaterra seria ocupado pela linhagem escocesa dos Stuart, em 1603, na pessoa do filho de Mary Stuart, James I, restando às primas e rainhas, despidas de seus sobrenomes, jazerem lado a lado, na Abadia de Westminster, onde estão até hoje expostas à visita de turistas.

Para encerrar esta pequena discussão, entendemos que o artista que usa e abusa de fatos históricos para compor sua obra não tem a obrigação do rigor no manuseio dos registros históricos. Não é o objetivo a instrução, e sim o deleite. E obra alguma se encaixaria à perfeição no rigor histórico, o que comprometeria mortalmente seu valor artístico. Portanto, ao entrar em contato com obras que se fundamentam em fatos históricos, há de se tomar o cuidado de separar estas duas instâncias, ficção e realidade, e ter em mente qual é o real propósito da obra que se está lendo ou contemplando. Com certeza, não será histórico. E, se o for, não será arte. E neste ponto, a atitude criativa de Schiller nos chama sobremaneira a atenção, a habilidade do artista que soube como ninguém moldar sua arte a partir de insumos históricos.

Cabe agora passarmos rapidamente em cada ato, para um breve apanhado de sua essência.

O primeiro ato é todo ele dedicado a Mary Stuart, já em sua prisão, no castelo de Fortheringhay. O arcabouço psíquico construído por Schiller para sua personagem vem, como já dito, de inspirações históricas, de que Schiller se vale para alavancar a tragédia e dar a ela o salto heroico pretendido. Mary Stuart, após levantes na Escócia, e depois de ter consentido no assassinato, por seu amante Bothwell, de seu marido Lord Darnley, foge para a Inglaterra, em busca de proteção da prima, a rainha Elizabeth. Mas é logo acusada de tramar a morte da rainha inglesa, complô organizado por Parry e Babington, assistentes da rainha escocesa. Agora na prisão, Mary manifesta seu desejo de ter uma entrevista com a rainha Elizabeth, e é neste sentido, numa última tentativa de provar sua inocência, que ela se movimenta. Mary Stuart é vista como orgulhosa, mundana, mulher que não abriu mão de seus sentimentos e de arroubos sexuais em submissão aos deveres da coroa. Ela é construída por Schiller como um ser humano real, “de instintos naturais”, como ele próprio o diz, não divino pela sua condição majestática, mas alguém que se dobra às suas fraquezas e às suas inclinações. Assim a define, logo no começo, seu carcereiro Paulet, ao vê-la entrar. “Nas mãos o crucifixo; / No coração, porém, luxúria e orgulho.” E o próprio, em outro verso acima, assim já havia descrito tão astuciosa personagem que, mesmo estando presa, não cessava de conspirar contra o trono da Inglaterra. “Não há grade que nos garanta contra a astúcia dela.” Mary Stuart, se aparentemente se resigna à sua sorte, não deixa de ter consciência de sua dignidade. De sua boca saem as palavras que definem sua atitude altiva perante as difamações e acusações que sobre ela recaem. Diz à sua fiel ama, Ana Kennedy. “Baixamente nos poderão tratar, não rebaixar-nos.” E surge então a personagem fictícia criada por Schiller, Mortimer, figura dúbia, cujos desenfreados sentimentos por Mary nos faz lembrar os bons tempos do romantismo, do qual Schiller, no começo de sua carreira literária, fora um dos grandes mestres. As promessas de Mortimer animam Mary; seus arroubos românticos assustam-na. A Mortimer cabe alimentar em Mary a esperança da liberdade. Ele é o arauto da legalidade, esta é a função precípua que Schiller reserva a Mortimer, na defesa do direito ao trono da Inglaterra por Mary Stuart. E a consciência do trono usurpado por Elizabeth é tão real, que Mortimer assim o diz a Mary. “Só a vossa morte garantirá o trono dela.”

O segundo ato é todo ele dedicado à Elizabeth. Schiller procura apresentar Elizabeth ao público, e o faz dentro de uma perspectiva histórica sem retoques. Apresenta, em primeiro lugar, o que há de mais frágil na rainha. A sua origem. O fatalismo da linhagem bastarda e suas consequências ficam bastante claras na fala de Lord Davison. Diz ele, aplacando a preocupação do Conde de Kent, quanto ao acordo de casamento da rainha com o consorte francês. “Para as núpcias caminha a soberana e para a morte a Stuart.” Mas Schiller coloca Elizabeth a serviço do povo. Destituída de beleza e arroubos sentimentais, submete-se à burocracia da Corte. Veja como Elizabeth se coloca, nestes belos versos. “Escravos são os reis de seu estado / E não podem ceder ao sentimento. / Foi sempre meu desejo não casar-me, / Pôr minha glória em que se lesse um dia / Na minha campa este epitáfio. “Aqui / Jaz a rainha virgem.”” Portanto, Elizabeth opta por sacrificar sua virgindade ao exercício de seu reinado como se um homem rei fosse. Sacrificar a virgindade, para Elizabeth, significava não sacrificar sua liberdade, para ela seu bem mais precioso. Ainda no Ato II, deixa clara sua posição de rainha da Inglaterra, e mostra a força da sua governança, quando diz. “Acolho de preferência o parecer daqueles que olham meus interesses.” Esta é Elizabeth, vigiando seu trono vinte e quatro horas por dia.

Ainda no segundo ato, Schiller traça uma Elizabeth abatida pelo medo, que tem em mãos a sentença de morte de Mary, votada unanimemente pelas duas casas, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns, mas que cabe a ela assinar e dar a ordem de execução. Vacilante ela, Schiller traça-nos o perfil de uma Elizabeth pouco confiável, que coloca os interesses do trono acima de tudo, defendendo-o, a despeito de qualquer lealdade. E Schiller dá o golpe de misericórdia em Elizabeth quando assim define sua indecisão. “assim, menos hesitará a assumir ante o mundo as aparências da clemência.” Portanto, a pretensa clemência é o refúgio imoral de Elizabeth.

Há ainda a longa cena em que Leicester e Mortimer discutem as conveniências de um e outro de tomarem parte na defesa da mulher que ambos amam, a Stuart. Um ama pela afoiteza, o outro, por ambição sexual (não é cobiça o que se deseja libidinosamente?).

Enquanto Elizabeth se lastima por não poder escolher o homem com quem se casaria por amor, por estar ela presa aos austeros deveres da realeza, assim vê Mary Stuart, quando a ela se refere… “Ela, a Stuart, conheceu-a, / A alegria maior de livremente / Conceder sua mão a quem amava; / Tudo teve, bebeu até ao fundo / A taça dos prazeres e alegrias.” Vejam como escapolem os ressentimentos, e a inveja da prima tão cortejada pelos homens. E ainda exala. “É mais moça do que eu…” É nesta diferença humana entre as duas que se selaria o destino do trono inglês no próximo século, o XVII. A virgem não deixa herdeiro; a cortejada gera o filho, James VI, e o oferece ao trono da Inglaterra como James I, em sucessão à sua rival.

Por fim, Elizabeth, ao final do Ato II, decide atender ao pedido de Mary Stuart, trazido por Lord Leicester, de ir a seu encontro, na prisão. É o que nos trará o terceiro ato.

O terceiro é o mais breve dos cinco atos. Neste, realiza-se o projeto de Schiller, provocando finalmente o encontro das duas rainhas. Schiller reescreve a história. Poderia ser um encontro histórico, se verdadeiro fosse. Schiller constrói inicialmente uma Mary Stuart nervosa e submissa, que tanto se preparara para este encontro, mas que agora se vê com a voz esquecida e frágil. Ela que se preparara para pedir clemência e liberdade, vê agora seu coração corroído pelo ódio e pelo despeito. Começa se ajoelhando aos pés de Elizabeth, mas, sentindo-lhe a frieza, a arrogância e o escárnio, Mary rapidamente recupera a altivez, e aponta para a rival todo o seu furor de rainha usurpada. E suas últimas palavras provocam a ira e a imediata retirada de Elizabeth. Assim diz a Stuart. “Uma bastarda profanou o trono / Inglês, o nobre povo de Inglaterra / Foi por uma astuciosa comediante / Ludibriado! Se direito houvesse / Vós é que neste instante às minhas plantas / Rojaríeis no pó, pois eu sou o rei!” Ao dizer estas palavras, em tom de desabafo, resgatando a sua história, Mary Stuart sabia que estava definitivamente selando seu trágico destino.

O quarto ato é dedicado todo ele à Elizabeth, às voltas com a pressão do povo para que assine a sentença de morte de Mary. Schiller, espertamente, usa o povo para impulsionar seu drama. De um lado, há os que defendem a execução imediata da escocesa, e, do outro, os que tentam evitar a morte de Mary, defendendo que seja mantida na prisão, sem que a Inglaterra precise derramar o sangue divino de uma rainha. Nesta discussão, Schiller toma algumas liberdades históricas para compor a tensão dramática do Ato IV. Assim diz Burleigh, personagem histórico, um dos ferrenhos defensores da execução. “A sentença já foi pronunciada: / O que falece agora é executá-la.” Temos a voz do Conde de Shrewsbury, que na história real foi um dos que mais se empenharam pela execução de Mary, mas que Schiller, para efeitos de construção dramática, o coloca no lado oposto, mostrando o perigo da execução da Stuart, neta dos reis da Inglaterra. Alerta ele. “Quero apenas dizer-vos uma coisa: / Tremeis agora da Maria viva: / Não é esta que deve amedrontar-vos. / Tremei da morta, da decapitada. / Ela sairá da campa nova deusa / Da discórdia, inflamando todo o reino / Em chamas de vingança, expelindo / De vós o coração do vosso povo.” Fraca, mergulhada em sua indecisão, Elizabeth nos traz o belo monólogo de duas páginas, ao fim das quais assina a sentença de Mary. E o faz proferindo estas palavras, que está na base de todo o conflito da tragédia, e também do conflito histórico entre as duas rainhas. Diz ela, dirigindo-se, em seus pensamentos, à rival. “Chamas-me de bastarda… Todavia / Sê-lo-ei somente enquanto respirares. / A dúvida que paira sobre a minha / Origem principesca, hei de destruí-la / Destruindo-te! No dia em que os ingleses / Já não tiverem que escolher, nascida / Serei então de tálamo legítimo!” Após assinar a sentença, descobre-se impotente para fazê-la ser executada. Impõe a cruel tarefa a Davison, que implora precisar ouvir dela a ordem final. Elizabeth, apenas diz. “Deixo ao vosso juízo…” Mas, diante da insistência do pobre secretário Davison, e do jogo dúbio de esquivas de responsabilidades, Elizabeth retira-se, sem não antes dizer-lhe. “Fazei o que compete ao vosso cargo.” Diante de tantas covardias, cabe ao Barão de Burleigh, o Grande Tesoureiro, o gesto definitivo, fazendo deste modo com que Schiller traga sua tragédia para o eixo histórico, do qual ele, na busca de resultados artísticos, tantas vezes se desviara.

É bom ilustrar que a figura de reis e rainhas era divina, portanto, estavam acima de qualquer julgamento terreno. Condenar e levar à morte um ente divino, reis e rainhas, portanto, necessitava de uma coragem acima das forças comuns. E a morte de Mary Stuart acaba sendo a primeira execução de uma rainha. Daí se entende as atitudes dúbias de Elizabeth, tão bem construídas por Schiller. Ela estaria dando um passo além da história. Tanto é verdade, que foram dezenoves anos de prisão até a execução de Mary, em 1587.

Quinto ato. É quando a história, no rastro da tragédia, se consome. Diante da morte, Mary é tomada de um profundo sentido religioso. Schiller nos mostra isto tanto nos diálogos, principalmente em seu monólogo, como nas vestimentas e acessórios sacros que ela traz consigo. E diante de seu querido e leal mordomo, Melvil, Mary assim o diz a ele, quando este se ajoelha diante de sua rainha. “Erguei-vos, pois viestes / Para assistir ao triunfo e não à morte / De vossa soberana.” Que todos os que estivessem ali se rejubilassem, pois a morte significaria a liberdade da vida eterna, diferente do tempo em que estivera na prisão, esta, sim, motivo de tristeza e dor. E por ser católica fervorosa, Mary, antes de colocar sua cabeça real no cadafalso, precisava do mandamento da confissão e da comunhão para estar preparada no seu encontro com o Deus Todo Poderoso. Mas seus algozes lhe negaram um padre que ministrasse os sacramentos. E Schiller, num arranjo cênico bem apropriado, carinhoso com sua heroína, apresenta Melvil, seu antigo mordomo, como sendo agora pertencente às hostes eclesiásticas da Igreja Romana. Portanto, Melvil, agora padre, estava ali para ouvir a confissão de Mary. Essa preparação da estrutura do quinto ato nos faz crer que Schiller queria, a todo custo, deixar clara a inocência de Mary, acusada de tramar a morte da rainha Elizabeth. Numa página de rara beleza e sensibilidade, Melvil vai conduzindo Mary à confissão, incitando-a a revelar todos os pecados, sob pena de não receber o perdão divino. Até ela, após nova insistência de Melvil, declarar não ter mais nada a confessar. Portanto, a ausência de qualquer outro pecado lhe garantia também a inocência no complô contra a vida de Elizabeth! Neste trecho, ao final da confissão, Schiller faz Mary dizer. “Fiz apelo / Aos reis da terra por que me livrassem / De cadeias indignas. Entretanto, / Nem mesmo em intenção, atentei contra / A vida da rainha.” E com isso, o padre Melvil confirma-lhe a absolvição. “E eu, em virtude do poder que tenho / De atar e desatar, dou-vos, Rainha / A santa absolvição!” Desta forma, Schiller resgata Mary do erro histórico de sua condenação. Se Schiller a Mary reservou a expiação terrena, a Elizabeth ele concedeu a pena amarga da solidão. A Burleigh, a quem coube, de livre iniciativa, executar a sentença assinada por Elizabeth, esta o questiona. Pergunta ela. “Lord, dizei-me: / Recebestes de minhas mãos a ordem / De execução?” Burleigh retruca. “Não, minha soberana! / Recebi-a de Davison.” Elizabeth continua a indagá-lo. “E Davison, / Entregou-a em meu nome?” E Burleigh diz. “Não, Rainha.” E Elizabeth, ao se livrar da responsabilidade por levar Mary ao cadafalso, e depois de saber, tardiamente, da comprovada inocência de Mary, condena Burleigh com esta pergunta. “E a executastes imediatamente / Sem indagar primeiro se era mesmo / Minha vontade?” Diante da negativa de Burleigh, Schiller, maliciosamente, veste Elizabeth com as luvas de Pilatos.

Em suma. Assim finalizados os cinco atos, podemos dizer que Schiller, enclausurado em sua genialidade, compõe, em versos iâmbicos, uma das mais notáveis narrativas de personalidades que se sobrepuseram a uma visão sistêmica da história. Schiller queria falar de Mary. Schiller se encantava por Mary. Mas, em momento algum, e aí está sua honestidade de artista, fez de Mary, vítima de erros históricos, uma pobre coitada submetida aos horrores da clausura e do cadafalso. Schiller só quis, provável, como historiador e como artista, resgatar a verdade histórica de Mary, em que se vislumbravam novos tempos acontecendo na Ilha de Inglaterra, e que se comprovaria no tumultuado século seguinte, em que o país da revolução industrial se preparava, mesmo que dolorosamente, para dominar a economia e os mares do mundo conhecido. Assim se fez Mary Stuart, nas mãos de Schiller, que, em momento algum, quis santificá-la, senão lançar luzes coloridas sobre esta personagem real que soube reconhecer seus erros e fez deste reconhecimento seu motivo de grandeza. Schiller nada mais pretendeu do que fazer jus à verdadeira história. Uma história segundo ele.

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Por Alex Ribeiro

Fedra é uma peça de Jean Racine, escrita por volta de 1677. Foi a última peça que o autor francês escreveu antes de abandonar a dramaturgia para se dedicar à historiografia. Fato curioso, Racine abandonaria o teatro justamente quando estava no seu auge, pois havia acabado de emplacar diversos textos, que foram sucesso por pelo menos dez anos. Antes disso, vale lembrar, Racine teve como produtor de sua peça Os Irmãos Inimigos nada menos que Molière, sendo, a encenação, realizada no palácio real. Fedra, que fecha uma lista de sete peças escritas entre 1667 e 1677, tem como fonte de inspiração a tragédia grega Hipólito, de Eurípedes. Hipólito já havia sido reescrito pelas mãos de Sêneca, no século I, com poucas diferenças em relação à obra original de Eurípedes. Racine, no entanto, com seu gênio, resolveu ousar e, assim, modernizar Hipólito, trazendo-o para mais perto de seus espectadores, no século XVII. Apesar de ter mudado o título para Fedra, Racine mantém a mesma temática central apresentada pelo tragediógrafo grego. No entanto, fez mudanças significativas que acabaram por dar nova roupagem a esta tragédia. Para tanto, ele retira as personagens divinas de Afrodite e Ártemis e acrescenta figuras humanas, como novos criados e, principalmente, a prisioneira Arícia, que exercerá um papel importante no jogo trágico. Desta forma, o autor tira das duas deusas a função dramática que elas ocupavam na obra de Eurípedes. Prefere deixar que os próprios humanos cuidem de suas tragédias.

Fedra é esposa de Teseu, rei de Atenas. Foi desposada após o então futuro marido ter derrotado o Minotauro em seu labirinto, na cidade de Creta. Porém, Teseu já havia se casado anteriormente com Antíopa, com quem tivera um filho, Hipólito. Naturalmente, nossa protagonista entraria em contato com o filho de Teseu, já que agora era ela quem ocupava o trono de rainha. O encontro entre o bastardo e a madrasta viria a desencadear toda a tragédia. Fedra se apaixona pelo enteado, e para se ver afastada do desejo proibido que nutria por Hipólito, manda radicá-lo em Trezena, região distante, que estava também sob o governo de Teseu. O menino, então, cresce fora da cidade de Atenas, torna-se rapaz, acreditando ser odiado pela nossa protagonista. Assim como fora inevitável o encontro, também o reencontro entre Fedra e Hipólito o seria.

Em Trezena, Fedra anuncia à sua criada Enone que ela, Fedra, se encontra enferma. É dominada pelo mal de uma paixão que não pode ser vivida. Enone, que dedicara sua vida à rainha, acredita que o padecimento de Fedra se dá em virtude do desaparecimento de Teseu, seu marido, que há muito tempo se ausentara do reino. Porém, Fedra trata de esclarecer a Enone o motivo pelo qual sua paixão não pode ser consumida. A impossibilidade não é causada pela ausência do marido, e sim porque ela estava apaixonada por outro homem. A criada, considerando a longa ausência de Teseu, e contando com a sua provável morte, incentiva que sua ama lhe diga quem é o dono dos seus sentimentos, para que ela possa, deste modo, ajudar a apaziguar o coração aflito da rainha. Fedra, então, revela que é seu enteado Hipólito o dono de sua ardente paixão. E revela ser essa a sua real motivação para que o mandasse, ainda menino, para fora de Atenas.

Enone incentiva Fedra a declarar seu amor a Hipólito, já que, na ausência de Teseu, a cidade de Atenas poderia conclamar o jovem rei, e Fedra estaria desamparada. Teria de rogar ao novo rei Hipólito pela guarda de seu filho, e por sua própria vida. Porém, o grande conflito que se estabelece em Fedra é por ela acreditar que seu enteado a odeia profundamente. Como poderia ela conquistar a sua simpatia e proteção? E mais, como poderia fazer com que sua ardente paixão fosse correspondida por ele, que desde menino se sentira perseguido por ela?

O Hipólito de Racine, porém, está rendido aos encantos de outra mulher. E sua paixão por essa mulher o devora. Este é o ponto crucial que difere o texto de Racine da tragédia de Eurípedes. O tragediógrafo grego construíra um Hipólito misógino, que odeia todas as mulheres, enquanto o personagem de Racine se rende à paixão por uma mulher, Arícia. Na tragédia grega, Hipólito despreza Afrodite que, por sua vez, resolve castigá-lo. A deusa desperta em Fedra uma paixão que causaria a desgraça do jovem. Na obra de Racine, no entanto, Hipólito percebe sua misoginia ser transformada em encanto.

Arícia, a mulher que tirara Hipólito do sentimento mesquinho da misoginia, era prisioneira de Teseu. Ela era proibida de se relacionar com qualquer homem, para que, desta forma, chegasse ao fim a sua estirpe. Porém, a jovem Arícia, mulher de uma beleza ímpar, se vê seduzida pelo próprio poder da sua beleza, ao ver que Hipólito, aquele que odiava todas as mulheres, estava encantado por ela. Eis que a mudança de Racine resolve, do ponto de vista da tensão dramática, a lacuna deixada pela ausência de Afrodite, do original de Eurípedes. Portanto, Hipólito percebe que o seu sentimento por Arícia é correspondido e passa a agir de forma resoluta. Está disposto a viver o amor que sente por Arícia e, portanto, repele Fedra, justamente quando esta revela, de forma apaixonada, o amor que sente por ele. Fedra é tomada de uma dor intensa

Em meio a esse turbilhão de conflitos, Teseu retorna à Trezena. Está cansado. Sente saudade dos seus entes queridos, mas vê filho e esposa recusarem a recebê-lo. Ambos dizem não serem dignos da presença do pai e marido. É a lacuna perfeita que Enone esperava. Ela vai ao rei destilar a mentira que causará as tragédias. A criada diz a Teseu que seu filho violentou sua esposa Fedra. E por essa razão, a rainha se dizia impura e culpada. Teseu fica irado. Chama o filho em sua presença para que seja feita justiça. Mas, o leitor pode se perguntar qual a razão dessa atitude de Enone. A resposta é simples. A criada toma as dores da rainha rejeitada e resolve culpar Hipólito para que ele seja punido por Teseu.

Hipólito se apresenta ao pai, achando que teria que se defender da ousadia de amar Arícia. Porém, é surpreendido pela acusação que seu pai acabara de ouvir da criada. Mesmo estupefato, o jovem faz uma bela defesa de sua honra e conduta, revela seu amor por Arícia e o plano, que até então alimentava, de partir do reino, acompanhado da prisioneira. Porém, Teseu não consegue acreditar no filho, tamanho é o seu ciúme e ira. Precisa fazer justiça. Precisa vingar-se de tamanha desonra. Resolve, então, desterrar seu próprio filho, e roga para que Netuno o castigue severamente. Terminada a audiência entre pai e filho, Hipólito parte.

Fedra, sabendo o que fizera Enone, expulsa-a do palácio, ato este que leva a criada a se matar no rio. Logo em seguida, a própria Fedra se mata nos quartos do palácio. Ao mesmo tempo em que fica sabendo dessas mortes aterrorizantes, Teseu descobre, por meio de Arícia, que Hipólito dizia a verdade. Teseu se desespera e pede que o deus dos mares, seu protetor, não tenha atendido às suas preces. Porém, já é muito tarde na cronologia tirânica dos deuses. Hipólito sofrera um acidente com sua carruagem. Seus cavalos, assustados por um grande monstro marinho que surgira na praia, saíram do controle do jovem príncipe. As tragédias de Fedra e Hipólito se tornam a hecatombe de Teseu.

Fedra nos mostra como as fragilidades humanas são ótimos panos de fundo para que as paixões e as emoções possam agir. Muitas vezes, nossa fragilidade faz com que nossos sofrimentos nos levem à morte, como acontece em Otelo, mesmo sendo ele um herói hercúleo. Ou Hipólito, um rapaz casto e de fama ilibada. Ou Fedra, que tenta apaziguar seu coração durante anos, sem êxito. Aquilo de que não temos consciência, mas que existe em nós, tem um potencial de destrutividade imenso. Outras vezes, o erro da arrogância daqueles que têm poder, como percebemos em Teseu, faz com que uma série de mortes aconteça. E vale pensar. Mesmo que a tragédia seja causada pela sua própria vítima, ela pode ser potencializada quando entra em contato com uma fragilidade outra. E eis o perigo de, ao estarmos subjugados às nossas fragilidades pessoais, encontrarmos aqueles que se aproveitarão desta nossa condição para levar a cabo a tragédia. Seja você uma Fedra, seja você um Hipólito, há de se ter sempre cuidado com a mão poderosa de um Teseu. Da tirania de um tirano.

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Sonho transformado em pesadelo

Por Antônio Roberto Gerin

Chapetuba Futebol Clube foi a primeira peça teatral escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), em 1959, levada ao palco, no mesmo ano, pelo Teatro de Arena, com direção de Augusto Boal. A montagem vem logo após o grande sucesso, em 1958, do icônico texto de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie, que traz para discussão a realidade sócio-política brasileira, ao colocar nos palcos o cidadão comum que se levanta pela manhã preocupado tão somente com o seu ganha-pão. Vianinha, nome carinhoso adotado pelo pessoal do teatro, por ser ele filho do grande ator e diretor Oduvaldo Viana, pois Vianinha teria uma carreira artística ao mesmo tempo meteórica e curta. Vive sua arte em um dos piores momentos políticos do Brasil, sob a ditadura militar de 1964, que viria censurar vários de seus textos. Alguns deles, o próprio dramaturgo não viveria para vê-los encenados, inclusive sua grande obra, finalizada no leito de morte, Rasga Coração, imediatamente censurada. Crítico, inquieto, intelectualmente versátil, deixa uma obra forte e seminal, de cunho humano e social, inclusive na televisão, com o sucesso, em 1973, de A Grande Família, pela Rede Globo, série esta que seria recriada, com grande sucesso, ao longo de décadas. Mas é o Vianinha político, ciente do seu papel social como artista, que sobrevive nas suas obras.

O texto é dividido em três atos, que se passam, na sequência, durante o dia, à noite, e o último ato se encerra no dia seguinte, nos momentos finais do jogo decisivo entre Chapetuba e Saboeiro. É o campeonato que está em jogo e este é o ponto de atrito que gerará as tensões trazidas de forma hábil, pelo dramaturgo, na boca de suas personagens. São onze os jogadores, representados, evidente, para efeito de condensação, por apenas seis, Bila, Cafuné, Durval, Maranhão, Paulo e Zito. E, além de Fina, a dona da pensão, não poderiam faltar os cartolas, a alma dos conflitos e maracutaias, desde sempre, na história do futebol, aqui e acolá.

As realidades pessoais se entrelaçam numa realidade supra, o jogo decisivo de suas vidas, que poderá levá-los aos grandes estádios do país, com seus sonhos de Flamengo e Corinthians, ou ao temido anonimato. São, pois, estas tensões geradas de véspera que movem a dramaturgia do texto, centrada, como já dito, no grande confronto futebolístico que definirá o futuro dos jogadores. Mesmo que Vianinha tenha baseado a construção pessoal e social das personagens-jogadores dentro da realidade da década de 1950, mesmo passadas várias décadas, em que o futebol tornou-se um esporte cada vez mais milionário, atraindo também os filhos das classes média e alta, não podemos cair no engano de dizer que o texto é datado. Pelo contrário. A pressão por resultados e as incertezas quanto ao futuro do homem atleta são as mesmas. O futebol daqueles dias e dos dias de hoje traz dentro de sua organização o massacre emocional, com características medievalescas, onde o homem tem seu valor medido pelos resultados que produz. A ascensão e a queda formam as duas faces da mesma medalha. Esta é a grande fonte de angústias dos esportistas, e Vianinha soube explorar esta condição existencial nas personagens, dando a cada uma delas, com sua história e particularidades, a respectiva vazão.

Os seis jogadores que transitam pelas cenas trazem, cada um deles, a representatividade das angústias e ansiedades ante o jogo decisivo, do qual serão os protagonistas, na derrota ou na vitória. É o Zito, que tem a expectativa do nascimento do filho bem no dia do jogo; é o Bila, goleiro reserva de Maranhão, que terá sua oportunidade de mostrar o seu valor, colocando-se a um passo da glória ou do fracasso; é o próprio Maranhão, que se deixa vender sua honra para os cartolas, simulando uma contusão; é Durval, jogador veterano, que ainda sonha o sonho impossível de voltar a jogar no Flamengo, e que se entrega à bebida como lenitivo para suas angústias de jogador decadente; é Paulo, o jogador classe média, cuja trajetória é construída pela imprensa, sem o respectivo desempenho em campo; e Cafuné, que apresenta traços de insegurança, que confunde seu papel de protagonista na grande final com o mundo ameaçador que o cerca. Está, assim, feita a autópsia pessoal e socioeconômica dos principais jogadores do Chapetuba Futebol Clube.

Numa linguagem simples, pontuada por intenções e reticências, presa às idiossincrasias e aos costumes de um tempo e de um lugar, Vianinha se vale do futebol como fonte para discussões maiores, mostrando, com sua sensibilidade, o homem como um instrumento de algo que está além de sua capacidade de compreensão, como se cada um de nós viesse para esta vida para cumprir um papel desenhado por algum estranho, de quem pouco sabemos, mas que nos ensinou a nos resignarmos, sem, contudo, ter-nos tirado a capacidade de sentir e de nos emocionarmos, o que faz de nós feras enjauladas, incompreensíveis em seus movimentos desconectados com um mundo que gira ferozmente, alheio ao que somos e queremos. Não há como eliminar de nós a percepção de que somos títeres, e esta consciência de pequenez e inutilidade nos lança num poço de ansiedades e angústias. Vianinha, enfim, ambienta a realidade existencial do homem num campo de futebol (assunto raro na nossa literatura), como poderia ter sido numa fábrica, ou em milhares de outras situações sociais que misturam a vontade dos homens numa panela de pressão em constante ponto de erupção. Enquanto não explodimos, vamos guardando nossos estilhaços com o nosso silêncio.

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