Cidade de Deus

O protagonismo da violência cotidiana

Por Antônio Roberto Gerin

É com orgulho por este grande momento do cinema brasileiro que devemos assistir a CIDADE DE DEUS (130’), direção de Fernando Meireles, Brasil (2002). Não cabe outro sentimento, que vai sendo fortalecido à medida que o filme se desenrola diante de nossos olhos. Está ali tudo o que há de melhor. O roteiro, a direção, a fotografia, o grande elenco e, para deixar tudo redondinho, no ritmo exato, a edição. Portanto, razões para assistir ao filme há muitas. De sobra. O que nos impacta é vermos retratada na tela uma realidade quase íntima de nós mesmos, este Brasil violento que nos assusta cotidianamente. E mesmo que estejamos morando a mil quilômetros de distância do Rio de Janeiro, a impressão que nos fica é a de que os tiros ecoam debaixo de nossas janelas. A violência, infelizmente, é uma componente da nossa civilização, e comungamos de seus horrores numa atitude de abissal impotência. A favela Cidade de Deus, década de 1980, transformara-se em um doloroso símbolo deste cancro nacional. O filme Cidade de Deus nos traz, numa construção artística quase perfeita, a dimensão dos horrores anunciados, onde a vida é um atributo meramente material, desprovida de toda sua essência divina. A ganância pelo poder vai triturando vidas ao longo do caminho, sem que nada se possa fazer, mesmo que gritemos para que o serviço público, na decisão do Estado e na ação da Polícia, venha frear a barbárie. Se ainda temos alguma esperança no papel do Estado como agente preparado para erradicar a violência, ledo engano. Ao assistirmos a Cidade de Deus, esta convicção cai, crivada de balas, por terra. Este é o grande mérito do filme. Colocar-nos, sem máscaras, dentro da nossa triste realidade.

A narrativa é construída a partir do olhar do protagonista-narrador Buscapé (Alexandre Rodrigues), o menino que cresce na comunidade Cidade de Deus, e vai presenciando, com sensibilidade, a transformação de um abrigo de itinerantes sem teto em um ninho de violência e dor. Tudo começa nos anos sessenta, início do assentamento Cidade de Deus, na periferia de um Rio de Janeiro que precisava expandir seu território para acolher os milhares que iam chegando à cidade maravilhosa, dentro do movimento migratório que o Brasil vinha conhecendo, principalmente nos anos 1950 e 1960. Junto com o crescimento da favela veio o crime, organizado por grupos que vão impondo o seu domínio através da violência sem limites. A maioria, jovens, marginais ao mercado de trabalho formal, que viam nos pequenos roubos, depois no tráfico de drogas, a oportunidade de ascensão social fácil e rápida. E o sentido de ascensão social para eles era a manutenção do poder sobre a favela e a capacidade de consumir o que desejavam, carros, joias e mulheres. Portanto, uma perspectiva de encaixe socioeconômico muito limitada. Sem uma estrutura funcional cidadã que os encaminhasse para a vida produtiva, não havia outra saída para a glória, mesmo que passageira, senão o crime.

O Trio Ternura, ainda nos anos 1960, apresentado nas figuras de Marreco (Renato de Souza), Cabeleira (Jonathan Haagensen) e Alicate (Jefechander Suplino), representa o crime incipiente, sem objetivos precisos, com uma leve tendência a copiar o espírito de Robin Hood. Levavam em consideração as dificuldades da comunidade, e por ela lutavam, em troco, evidente, de proteção. Mas a segunda geração, cuja trajetória ocupa a maior parte do filme, moleques que assistiam com admiração às peripécias do extinto Trio Ternura, serão os que, na década seguinte, vão levar o crime às últimas consequências, com suas barbáries e obsessões. O vale tudo, o poder como fonte de autopromoção, e o desvio moral, que logo desembocaria na amoralidade, são a tônica festiva de Cidade de Deus.

O outrora Dadinho (Douglas Silva), o menino precocemente perverso, irmão menor de Cabeleira, um dos Trio Ternura, é rapidamente absorvido pelos fáceis encantos do crime. Sua ambição, desde cedo, é ser dono da Cidade de Deus. Na base da bala, toma todos os pontos de venda de drogas instalados na favela, menos um, o do Cenoura (Matheus Nachtergaele), amigo do braço direito de Dadinho, Bené (Phellipe Haagensen). Dadinho, agora crescido e dono da Cidade de Deus, troca o apelido para Zé Pequeno (Leandro Firmino), numa clara atitude de autoconsciência de sua condição de jovem de baixa estatura, negro e nada belo. Para tornar-se definitivamente grande e poderoso, falta tomar o ponto do Cenoura, adversário à sua altura, traficante que se insere na comunidade mais pela simpatia do que pelo terror. Com a morte de Bené — aliás, numa sequência belíssima —, Dadinho está livre para conquistar o seu império. Está armado, assim, o último e mais violento confronto. Zé Pequeno versus Cenoura.

O roteiro, baseado no romance homônimo de Paulo Lins, lançado, com boa repercussão, em 1997, acabou sendo um dos grandes trunfos do sucesso de Cidade de Deus. É sabido que o roteiro passou por muitos tratamentos, até chegar ao décimo segundo, tratamento este escolhido para ser utilizado nas filmagens. Este esforço criativo para construir uma história real adaptada à linguagem do cinema prova que, se não se pode prever o sucesso, pode-se, a partir de um trabalho bem planejado, almejar um resultado artístico que deixe o produto bem perto do reconhecimento público. Tanto é verdade que, lido o roteiro, os produtores não tiveram dúvida do seu potencial de sucesso. Para um grande filme é importante que se tenha em mãos um grande roteiro.

Neste sentido, o roteiro de Cidade de Deus nos apresenta uma facilidade e uma ousadia. A facilidade está por conta de a trama se apoiar na eficiente técnica do protagonista-narrador. Para fins de clareza e ritmo, em Cidade de Deus, esta escolha narrativa foi fundamental. A própria construção da personagem Buscapé, jovem sensível, observador, que luta para fugir à criminalidade, morador da favela, vai facilitar, como testemunha ocular dos acontecimentos, que se coloque o espectador em íntimo contato com o que está ocorrendo diante de seus olhos. A narrativa flui, sem pontos cegos.  Enfim, a introdução do narrador vem dar clareza e força rítmica descomunal ao filme.

E a ousadia fica por conta da tessitura da trama. São várias narrativas que agem de forma paralela, apoiadas sempre em uma personagem central, portanto, várias personagens para várias narrativas, que se encontram pelos becos da favela, e se entrelaçam, e se explicam, conduzindo, com extrema segurança, a evolução aparentemente complexa, mas em nenhum momento confusa, da trama. Há uma cronologia linear, mas há outros tempos, que se atrasam ou se adiantam, veiculando informações essenciais para o entendimento do enredo, preparando o espectador para o grande clímax. Tudo o que é essencial é narrado. Na velocidade das imagens e na precisão artística da edição.

Para finalizar, não podemos deixar de falar de outra ousadia. A produção do elenco. Optou-se por contratar um elenco amador, moradores de favelas, que nunca tinham estado diante de uma câmera. A exceção ficou por conta de Matheus Nachtergeale. Fugir dos nomes consagrados, alheios à realidade das favelas, foi o grande acerto. Nada de teatralidade, nada de técnicas invasivas de preparação de elenco. O que importava era a verossimilhança, o representar o mundo real em que estavam inseridos, sem que as emoções, e até os diálogos, tivessem uma prévia e exaustiva construção. Neste ponto, o acerto foi brutal. Se a algum espectador interessar, remetemos ao documentário Cidade de Deus – Dez Anos Depois (68’). A partir deste documentário, temos uma clara ideia da ousadia na seleção e na preparação do elenco, meninos de favela que de repente se veem retratados, por eles mesmos, na tela. E tudo é tão real que, dez anos depois, a grande maioria continua na insana luta para se inserir no mercado produtivo. E mais. Ficamos sabendo que a quase totalidade do elenco, na sua maioria negros, não conseguiram espaço no mundo artístico. Este é o grande problema de um país em desequilíbrio, onde não há lugar para todos. Principalmente se for negro.

Em suma. Cidade de Deus é um filme que ficará para a história do cinema brasileiro como uma de nossas grandes inspirações. E nos deixa um legado. O cinema brasileiro poderia receber muito mais apoio, os talentos e forças criativas estão aí, por toda parte, à espera do apoio financeiro para colocar seus projetos em prática. E mais do que isso. Precisamos do cinema nacional para discutir nossa realidade. Realidade que vivenciamos, mas que só o cinema, retratando-a nas telas, nos dá a real dimensão do mundo em que vivemos, cotidianamente. Ademais, ao transformar nosso cotidiano em arte, estamos fazendo cultura.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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