Ermo

Por Geraldo Lima                                                  

Espera.

Ouve os estalidos do capim seco cedendo à pressão dos pés trôpegos e ansiosos. Logo ele estará aí, bem à sua frente, excitado, ofegante, — um homem qualquer, do qual ela nem ao menos sabe o nome.

Ébrio e surpreso, ele aceitou o seu convite. Arrastou-o pela mão até um determinado trecho e depois lhe pediu que esperasse um pouco, que viesse logo em seguida. Deixou-o lá, escorado num poste, talvez tentando calcular os riscos daquela aventura.  Mas, ofuscado pelo álcool, não obedeceria certamente aos apelos da razão.

Há tempos tem sido assim: eles vêm aturdidos, cegos, como um animal atraído pelo cheiro da comida. São, na maioria das vezes, presa muito fácil. A rua é o lugar onde, geralmente, os captura. Bêbados, às vezes, ou simplesmente sedentos de sexo e loucura. Alheios à morte e ao inferno. Anjos e diabos. Meninos abrindo a porta do corpo pela primeira vez. Velhos queimando suas últimas reservas de energia.

Ela sempre vai à frente, é sua única exigência: seu prazer se encontra apenas nessa espera, nesse ouvir o som de passos se aproximando como se fossem os do seu algoz. É o momento em que alcança um mínimo de prazer, de gozo. Corpo e alma, no entanto, se encontram no deserto: o sol que lhe arde por dentro se apaga logo que as mãos estranhas tocam-lhe o corpo.  Não há palavras nem troca de carícias: penetram-na como se esfaqueassem um corpo inerte.  Como se executassem um ritual de sacrifício. Como se estivessem se vingando da própria fraqueza.

Saciados, vão-se.

Não se lembra mais de quando tudo começou. Se sempre foi assim, desde menina, ou se mergulhou nesse abismo depois de adulta. Também já não se lembra de quantos homens deitaram sobre seu corpo, inundando-a com seu hálito azedo, sua baba, seu esperma, seus grunhidos de porco chafurdando na lama. Pode ser que saiba de tudo, do início e dos motivos que a têm levado a agir assim, mas não se lembrar talvez seja sua única defesa.

Espera.

Deitada de costas, assiste ao horizonte sanguíneo ir, aos poucos, empalidecendo.  O dia está morrendo e isso não a comove nem um pouco. Esse quadro que outros achariam belíssimo — nuvens cor de sangue tingindo o horizonte — não lhe diz nada. Há tempos fechou os olhos para o belo. Perdeu, na verdade, a noção básica de belo e feio. Há apenas o desejo que a cega e depois se evapora como se não tivesse existido. A imagem, porém, está lá, distante, pulsando, enquanto se desfaz meticulosamente. Não a quer, entretanto, pulsando na sua mente. Não quer ser capturada pela sua beleza. Quer, sim, é viver sem memória, pois esta é a única maneira de suportar o peso de continuar a existir depois de tudo, do vazio e do asco.

Há sempre, no entanto, essa expectativa de não sair viva do breu. Aguarda o dia em que um desses homens, tomado de loucura e ira, aperte-lhe o pescoço até esvaziá-la, até fazer com que seu corpo pare de buscar a saciedade inatingível. Esse que agora vem, animado pelo álcool, talvez carregue nas mãos a arma que vai libertá-la.

Até então, a cena tem se repetido: o homem se levanta, tira a sujeira da roupa ou da pele e, assim como veio, parte, só e seco. Ela se ergue, suja e amarga. Caminha devagar, sem desejo e força, como se não pretendesse chegar mais a lugar algum. Quiçá dessa vez tudo seja diferente: um gesto, brando ou violento, pode alterar o curso da história.

Aguarda, aguarda.

A noite se aproxima célere, e logo não restará vestígio algum desse entardecer belíssimo. Não restará vestígio de nada. Será como se ela não tivesse estado ali. O capim esmagado, um galho partido, o chão úmido, nada disso será capaz de remontar os fatos. Não há mesmo necessidade de tanto esforço para recontar o que, para o mundo, nunca teve importância alguma.

O dia vai morrer. O dia, na verdade, já está morrendo. Agonia, agonia.  Já vai tarde, ela pensa. Não, ela não pensa: seria inútil.

Silêncio turvo.

Já não se ouve mais o crepitar do capim seco. Acabou-se a espera. Sente, junto ao corpo, a respiração ofegante do homem.  Está pronta. Os sentidos, aos poucos, turvam-se, e o prazer definha. Enquanto se abre e se entrega, fecha-se também protegida por uma couraça de frieza e nojo. Será, então, como das outras vezes, assim como tem acontecido com os outros homens: enquanto ele a penetra, seca e violentamente, ela experimenta a vertigem da morte.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Autor: Geraldo Lima

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Autor de Uma mulher à beira do caminho [contos] e UM [romance].

2 pensamentos em “Ermo”

Deixe um comentário