Fedra

Por Alex Ribeiro

Fedra é uma peça de Jean Racine, escrita por volta de 1677. Foi a última peça que o autor francês escreveu antes de abandonar a dramaturgia para se dedicar à historiografia. Fato curioso, Racine abandonaria o teatro justamente quando estava no seu auge, pois havia acabado de emplacar diversos textos, que foram sucesso por pelo menos dez anos. Antes disso, vale lembrar, Racine teve como produtor de sua peça Os Irmãos Inimigos nada menos que Molière, sendo, a encenação, realizada no palácio real. Fedra, que fecha uma lista de sete peças escritas entre 1667 e 1677, tem como fonte de inspiração a tragédia grega Hipólito, de Eurípedes. Hipólito já havia sido reescrito pelas mãos de Sêneca, no século I, com poucas diferenças em relação à obra original de Eurípedes. Racine, no entanto, com seu gênio, resolveu ousar e, assim, modernizar Hipólito, trazendo-o para mais perto de seus espectadores, no século XVII. Apesar de ter mudado o título para Fedra, Racine mantém a mesma temática central apresentada pelo tragediógrafo grego. No entanto, fez mudanças significativas que acabaram por dar nova roupagem a esta tragédia. Para tanto, ele retira as personagens divinas de Afrodite e Ártemis e acrescenta figuras humanas, como novos criados e, principalmente, a prisioneira Arícia, que exercerá um papel importante no jogo trágico. Desta forma, o autor tira das duas deusas a função dramática que elas ocupavam na obra de Eurípedes. Prefere deixar que os próprios humanos cuidem de suas tragédias.

Fedra é esposa de Teseu, rei de Atenas. Foi desposada após o então futuro marido ter derrotado o Minotauro em seu labirinto, na cidade de Creta. Porém, Teseu já havia se casado anteriormente com Antíopa, com quem tivera um filho, Hipólito. Naturalmente, nossa protagonista entraria em contato com o filho de Teseu, já que agora era ela quem ocupava o trono de rainha. O encontro entre o bastardo e a madrasta viria a desencadear toda a tragédia. Fedra se apaixona pelo enteado, e para se ver afastada do desejo proibido que nutria por Hipólito, manda radicá-lo em Trezena, região distante, que estava também sob o governo de Teseu. O menino, então, cresce fora da cidade de Atenas, torna-se rapaz, acreditando ser odiado pela nossa protagonista. Assim como fora inevitável o encontro, também o reencontro entre Fedra e Hipólito o seria.

Em Trezena, Fedra anuncia à sua criada Enone que ela, Fedra, se encontra enferma. É dominada pelo mal de uma paixão que não pode ser vivida. Enone, que dedicara sua vida à rainha, acredita que o padecimento de Fedra se dá em virtude do desaparecimento de Teseu, seu marido, que há muito tempo se ausentara do reino. Porém, Fedra trata de esclarecer a Enone o motivo pelo qual sua paixão não pode ser consumida. A impossibilidade não é causada pela ausência do marido, e sim porque ela estava apaixonada por outro homem. A criada, considerando a longa ausência de Teseu, e contando com a sua provável morte, incentiva que sua ama lhe diga quem é o dono dos seus sentimentos, para que ela possa, deste modo, ajudar a apaziguar o coração aflito da rainha. Fedra, então, revela que é seu enteado Hipólito o dono de sua ardente paixão. E revela ser essa a sua real motivação para que o mandasse, ainda menino, para fora de Atenas.

Enone incentiva Fedra a declarar seu amor a Hipólito, já que, na ausência de Teseu, a cidade de Atenas poderia conclamar o jovem rei, e Fedra estaria desamparada. Teria de rogar ao novo rei Hipólito pela guarda de seu filho, e por sua própria vida. Porém, o grande conflito que se estabelece em Fedra é por ela acreditar que seu enteado a odeia profundamente. Como poderia ela conquistar a sua simpatia e proteção? E mais, como poderia fazer com que sua ardente paixão fosse correspondida por ele, que desde menino se sentira perseguido por ela?

O Hipólito de Racine, porém, está rendido aos encantos de outra mulher. E sua paixão por essa mulher o devora. Este é o ponto crucial que difere o texto de Racine da tragédia de Eurípedes. O tragediógrafo grego construíra um Hipólito misógino, que odeia todas as mulheres, enquanto o personagem de Racine se rende à paixão por uma mulher, Arícia. Na tragédia grega, Hipólito despreza Afrodite que, por sua vez, resolve castigá-lo. A deusa desperta em Fedra uma paixão que causaria a desgraça do jovem. Na obra de Racine, no entanto, Hipólito percebe sua misoginia ser transformada em encanto.

Arícia, a mulher que tirara Hipólito do sentimento mesquinho da misoginia, era prisioneira de Teseu. Ela era proibida de se relacionar com qualquer homem, para que, desta forma, chegasse ao fim a sua estirpe. Porém, a jovem Arícia, mulher de uma beleza ímpar, se vê seduzida pelo próprio poder da sua beleza, ao ver que Hipólito, aquele que odiava todas as mulheres, estava encantado por ela. Eis que a mudança de Racine resolve, do ponto de vista da tensão dramática, a lacuna deixada pela ausência de Afrodite, do original de Eurípedes. Portanto, Hipólito percebe que o seu sentimento por Arícia é correspondido e passa a agir de forma resoluta. Está disposto a viver o amor que sente por Arícia e, portanto, repele Fedra, justamente quando esta revela, de forma apaixonada, o amor que sente por ele. Fedra é tomada de uma dor intensa

Em meio a esse turbilhão de conflitos, Teseu retorna à Trezena. Está cansado. Sente saudade dos seus entes queridos, mas vê filho e esposa recusarem a recebê-lo. Ambos dizem não serem dignos da presença do pai e marido. É a lacuna perfeita que Enone esperava. Ela vai ao rei destilar a mentira que causará as tragédias. A criada diz a Teseu que seu filho violentou sua esposa Fedra. E por essa razão, a rainha se dizia impura e culpada. Teseu fica irado. Chama o filho em sua presença para que seja feita justiça. Mas, o leitor pode se perguntar qual a razão dessa atitude de Enone. A resposta é simples. A criada toma as dores da rainha rejeitada e resolve culpar Hipólito para que ele seja punido por Teseu.

Hipólito se apresenta ao pai, achando que teria que se defender da ousadia de amar Arícia. Porém, é surpreendido pela acusação que seu pai acabara de ouvir da criada. Mesmo estupefato, o jovem faz uma bela defesa de sua honra e conduta, revela seu amor por Arícia e o plano, que até então alimentava, de partir do reino, acompanhado da prisioneira. Porém, Teseu não consegue acreditar no filho, tamanho é o seu ciúme e ira. Precisa fazer justiça. Precisa vingar-se de tamanha desonra. Resolve, então, desterrar seu próprio filho, e roga para que Netuno o castigue severamente. Terminada a audiência entre pai e filho, Hipólito parte.

Fedra, sabendo o que fizera Enone, expulsa-a do palácio, ato este que leva a criada a se matar no rio. Logo em seguida, a própria Fedra se mata nos quartos do palácio. Ao mesmo tempo em que fica sabendo dessas mortes aterrorizantes, Teseu descobre, por meio de Arícia, que Hipólito dizia a verdade. Teseu se desespera e pede que o deus dos mares, seu protetor, não tenha atendido às suas preces. Porém, já é muito tarde na cronologia tirânica dos deuses. Hipólito sofrera um acidente com sua carruagem. Seus cavalos, assustados por um grande monstro marinho que surgira na praia, saíram do controle do jovem príncipe. As tragédias de Fedra e Hipólito se tornam a hecatombe de Teseu.

Fedra nos mostra como as fragilidades humanas são ótimos panos de fundo para que as paixões e as emoções possam agir. Muitas vezes, nossa fragilidade faz com que nossos sofrimentos nos levem à morte, como acontece em Otelo, mesmo sendo ele um herói hercúleo. Ou Hipólito, um rapaz casto e de fama ilibada. Ou Fedra, que tenta apaziguar seu coração durante anos, sem êxito. Aquilo de que não temos consciência, mas que existe em nós, tem um potencial de destrutividade imenso. Outras vezes, o erro da arrogância daqueles que têm poder, como percebemos em Teseu, faz com que uma série de mortes aconteça. E vale pensar. Mesmo que a tragédia seja causada pela sua própria vítima, ela pode ser potencializada quando entra em contato com uma fragilidade outra. E eis o perigo de, ao estarmos subjugados às nossas fragilidades pessoais, encontrarmos aqueles que se aproveitarão desta nossa condição para levar a cabo a tragédia. Seja você uma Fedra, seja você um Hipólito, há de se ter sempre cuidado com a mão poderosa de um Teseu. Da tirania de um tirano.

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Autor: Alex Ribeiro

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto, psicólogo, poeta.

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