O Mercador de Veneza

Por Alex Ribeiro

O Mercador de Veneza é uma comédia de William Shakespeare, publicada por volta de 1598, e encenada em 1600. Apesar de estar presente no primeiro bloco de peças do poeta, O Mercador pode ser considerada a peça que marcou a transição deste primeiro bloco para o período das grandiosas obras de Shakespeare, que duraria por incríveis 17 anos, em que ele viria a escrever suas obras primas. Assim como em suas outras comédias, a temática de O Mercador de Veneza é o amor. O dramaturgo quer mostrar a força enobrecedora do amor, e como este sentimento tem o poder de conduzir as suas personagens a ações elevadas, revelando características sublimes do humano. É dessa característica marcante em suas comédias que Shakespeare nos apresenta o primeiro pilar dramático do texto, presente na atitude da sábia personagem Pórcia. Nossa mocinha perdera o pai antes de poder se casar e herdara uma grande riqueza. Porém, Pórcia não se sente no direito de desrespeitar a antiga vontade do pai, a de se casar com quem desejar. A escolha do seu futuro marido terá de ser feita sob o véu da sorte, ou azar, dos seus pretendentes. Pórcia apresentará a eles três pequenas arcas: uma de ouro, outra de prata e a terceira, de cobre. Numa dessas três arcas está o seu retrato e é esta, portanto, a que deve ser escolhida. O pretendente que acertar em qual das arcas o retrato está, numa única tentativa de escolha, poderá se casar com ela.

O tema da escolha entre três amadas é muito recorrente na literatura, e tem um poder instigador e de imediata repercussão no leitor. O próprio Shakespeare voltaria a essa temática numa de suas obras primas, o Rei Lear, de 1605, onde o rei ancião pretere a terceira filha e causa a sua própria tragédia e a de todo o reino. Mesmo que em Lear, Shakespeare encaminhe a peça para a consequência do ato ingênuo do rei, temos a estrutura básica da escolha entre três mulheres, onde a terceira se mostra a mais virtuosa, portanto, a mais humilde. Só a título de curiosidade, podemos citar outras obras do conhecimento popular que têm como temática a escolha dentre três mulheres. Cinderela é uma delas, em que o príncipe escolhe a terceira de três irmãs. Na mitologia grega, temos o pastor Páris, que escolhe Afrodite, a terceira das três deusas que lhe oferecem proteção. Em O Mercador de Veneza não há três mulheres a serem escolhidas, porém, quando Pórcia apresenta as três arcas, ela quer testar como avalia e escolhe o pretendente que está diante dela. Aquele que souber identificar quais são os verdadeiros valores que ela preza terá direito à sua mão. A arca que representa Pórcia é a arca de cobre, a arca que se apresenta mais humilde, assim como é também o amor silencioso e humilde de Cordélia, a filha preterida de Lear.

O segundo pilar de O Mercador de Veneza se encontra na figura de um único personagem e que não ocupa a cena constantemente, a ponto de nem aparecer no último e quinto ato. É o judeu Shylock. Através dele, a trama pode ser desenvolvida. É ele o contraponto à força do amor. Ou seja, para onde o amor apontar, Shylock estará apontando para o outro lado. O velho Shylock é um usurário que, ao emprestar dinheiro ao mercador Antônio, permite que este patrocine a ida de Bassânio até Belmonte, onde se apresentará à bela Pórcia, como seu pretendente. A riqueza de Antônio está toda no mar, nas suas naus mercantes, não haveria como o mercador patrocinar Bassânio, seu grande amigo, sem recorrer a um empréstimo até que suas naus retornassem. Porém, Shylock estabelece uma multa, caso Antônio não consiga pagar no prazo. Uma libra de carne do corpo de Antônio é a multa. Para satisfazer os anseios de Bassânio, Antônio cede.

Por que um personagem tão mesquinho como Shylock é assim tão importante? É preciso recorrer à história para podermos entender. No final do séc. XVI, a Inglaterra passava por um forte sentimento antissemita, causados primeiramente, por uma trama política que envolvia o médico pessoal da rainha, o judeu português Roderigo Lopez, que fora acusado de conspirar sua morte e, consequentemente, enforcado em praça pública. Outro ponto histórico é a forte aversão aos judeus por fazerem empréstimos a juros, ao contrário dos cristãos que viam nisso uma forma de pecado. Estava desenhado o momento histórico propício para um vilão judeu ser apresentado por Shakespeare. Mas o grande poeta não aderiria ao coro vigente sem um senão. Shylock é construído por Shakespeare de uma tão perfeita forma, que ele se mostra totalmente humano. Capaz de despertar tanto sentimentos de aversão como de empatia. Tanto é repleto de humanidade, nosso querido e detestado vilão, que uma de suas falas é um dos mais famosos manifestos contra o preconceito, e que vale a pena citar:

“Ele me desgraçou, prejudicou-me em meio milhão; riu-se das minhas perdas, caçoou dos meus lucros, escarneceu minha estirpe, atrapalhou meus negócios, esfriou minhas amizades, afogueou meus inimigos; e por que razão? Eu sou judeu. Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, esquentado e regelado pelo mesmo verão e inverno, tal como um cristão? Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não nos rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cristão, qual é a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu, qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança, pois.” [O Mercador de Veneza, Ato III, Cena I.].

Logo se vê que, apesar de atender a um anseio de seu tempo, de ver retratado um judeu mau, Shakespeare tem o cuidadoso acabamento de o tornar tão humano quanto seus pares cristãos. E mesmo no momento em que ele se apresenta como o mais cruel ao não perdoar a dívida de Antônio e exigir o pagamento da multa, não deixa de revelar o quanto fora humilhado por Antônio, em outros tempos, pelo simples fato de ser judeu. Por essas razões todas, Shylock é o personagem que encontra as mais diversas e contraditórias interpretações nos palcos mundo a fora. Mas nada disso seria possível se esse personagem não fosse tão bem construído por Shakespeare.

Voltemos, então, ao amor, sentimento este sim o motor das comédias do grande poeta. Bassânio, patrocinado pelo empréstimo de Shylock, contraído por Antônio, chega a Belmonte e consegue fazer a escolha sensata, arriscando tudo pelo amor de Pórcia, escolhendo ali a arca de cobre. Com sua boda selada e se tornando agora mais rico que o próprio Antônio, Bassânio corre em socorro do amigo, para tentar livrá-lo do judeu. Antônio, que havia recebido a notícia do naufrágio das suas embarcações, estará diante do Duque para lhe ser cobrada a dívida. E é nesse mesmo juízo que a sabedoria de Pórcia se apresenta novamente avassaladora. Ela defende Antônio magistralmente e o livra da condenação.

No último ato, já livre da ação de Shilock, os casais se reúnem e só então fica claro que é do amor que se trata a peça. Além de Bassânio e Pórcia, nosso casal querido, Graziano, fiel amigo de Bassânio, se junta a Nerissa, criada de Pórcia. E a filha de Shylock, Jéssica, que havia fugido da casa do pai para viver com um criado de nome Lorenzo, também tem sua vida apaziguada depois do desfecho no tribunal em Veneza. Ela, que fora deserdada ao sair de casa sem permissão de Shylock, é beneficiada pela punição que o pai recebera no juízo, punição esta que o obrigou a dar a filha metade da sua riqueza. E temos então o triunfo do amor, mais uma vez, como de praxe, na comédia shakespeariana.

O Mercador de Veneza é uma peça que fala sobre o triunfo do amor, mas que ao mesmo tempo deixa uma pulga atrás da orelha. Nosso vilão, é tão vilão assim mesmo? É tão diferente de nós que podemos dirigir a ele nosso ódio, sem preocupação? É fácil eleger um inimigo comum e despejar sobre ele toda a destrutividade que nós humanos carregamos. Basta que ele não cause em nós nenhum tipo de identificação. Basta que nós o reduzamos a uma característica que é desprezível para nós. É assim que muitos grupos são reduzidos aos seus estereótipos, para que possam ser destruídos sem que seus agressores percebam sua crueldade. Afinal, o diferente não mereceria nossa empatia? Mas eis que Shakespeare traz uma profunda reflexão junto com seu Shylock. As nossas diferenças são tão pequenas e frágeis perto das nossas semelhanças, que não poderíamos dizer que somos uns e eles outros. Somos todos uma só coisa, mulheres e homens, com tantos equívocos e contradições que fazem parte da nossa humanidade. E se essa é uma peça sobre o triunfo do amor, esse amor não pode se valer para destruir o diferente, o judeu da vez. Porém, amar um Shylock é, sim, o que faz toda a diferença.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin, dramaturgo da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

Autor: Alex Ribeiro

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto, psicólogo, poeta.

Deixe um comentário