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O mundo entre quatro paredes

Por Antônio Roberto Gerin

Antes de falar da obra de Plínio Marcos, é preciso, necessariamente, inevitavelmente, falar do homem Plínio Marcos. Nasceu em Santos, em 1935, cidade portuária, portanto, um submundo a céu aberto, onde viveu, transitando freneticamente por muitas profissões, de soldado a biscateiro, de camelô a operário, até jogador de futebol, convivendo com malandros e estivadores. É desta rica passagem pela vida que Plínio Marcos tira o sumo terrível para compor sua bela e pungente dramaturgia. Foi surpreendido ainda jovem com o primeiro sucesso quando fazia parte de uma trupe circense — era o palhaço Frajola —, e principiava ainda nos segredos da dramaturgia. Barrela é seu primeiro texto, escrito em 1958, e encenado em Santos, no ano seguinte, com grande sucesso. Teve apenas uma apresentação, pois no dia seguinte o texto seria engavetado pela censura. Plínio Marcos era homem que conhecia todos os desvãos e dores do submundo real, povoado de marginais, ladrões, estelionatários e caloteiros, prostitutas e cafetões, bichas, como se dizia à época, carregando na palavra o nojo do preconceito, enfim, uma microestrutura social desnudada por ele, mas inspirada em uma estrutura maior chamada Brasil. Plínio Marcos dizia que escrevia textos curtos, e muito depressa, porque escrevia “com raiva, com muita raiva do estado em que se encontra o povo brasileiro, da omissão dos políticos diante dos problemas”. Antes de Navalha na Carne, tinha já escrito uma de suas mais exuberantes obras, Dois Perdidos numa Noite Suja, levado ao palco em 1966, na Galeria Metrópole, em São Paulo. Mas seria Navalha na Carne, cercada de grande expectativa por seus problemas com a censura, o texto que faria Plínio Marcos romper de vez o anonimato e se consagrar como um dos grandes autores teatrais do Brasil.

Pelo simples fato de trabalhar em seus textos com temáticas tão explosivas quanto a prostituição, a cafetinagem, a miséria, o grito de dor através de palavrões, a marginalidade contraposta a um sistema de exploração, enfim, ao trazer o submundo à luz do dia, Plínio Marcos se viu envolvido em duros embates com a censura da ditadura militar, época em que, num espaço de 21 anos, o dramaturgo construiria boa parte de sua literatura dramática. Neste contexto, Navalha na Carne traduz bem a luta da cultura contra a censura, retratada nas dificuldades de se liberar o texto — luta encampada à época por Cacilda Becker e pela própria Tônia Carrero — para a montagem, primeiro, paulista, depois, carioca. Seria no Rio de Janeiro, em 1967, com direção de Fauzi Arap, Tônia Carrero no papel de Neusa Suely, que o sucesso viria com toda força. Infelizmente, esta bela festa do teatro não duraria muito tempo. Rápido o espetáculo seria censurado e o texto Navalha na Carne só voltaria aos palcos 13 anos depois.

A dinâmica teatral de Navalha na Carne se apoia em três personagens que se encontram dentro de um quarto de pensão de quinta categoria, onde mora a prostituta Neusa Suely. Ela recebe diariamente a visita do seu cafetão, Vado, que vem buscar o dinheiro que ela todos os dias deposita sobre o criado mudo. Só que hoje o dinheiro não está onde deveria estar. Vado espera Neusa Suely chegar da zona para cobrar a sua parte. No entanto, ela jura ter colocado o dinheiro sobre o criado mudo, e para provar sua inocência, desconfia de Veludo, a “bicha” que cuida da faxina dos quartos da pensão. Ela lembra ter visto o menino do bar entrar no quarto dele. De onde teria Veludo conseguido dinheiro para pagar o sexo? Veludo é chamado à presença de Neusa Suely e Vado, e assim está formado o trio de personagens, em torno dos quais girará a tensão dramática que consiste em arrancar de Veludo a confissão do roubo.

A estrutura dramática se divide, ao longo do texto, em três confrontos básicos. O primeiro se dá entre Vado e Neusa Suely, quando aquele descobre que o dinheiro devido por ela não está sobre o criado mudo. O segundo confronto, mais complexo, posto envolver três polos, ocorre quando Veludo é chamado ao quarto sob a acusação de ter roubado o dinheiro. Ameaças e agressões físicas vão aumentando a tensão na busca da confissão. O achaque direto a Veludo, que se pressupunha seria feito pelo valentão Vado, acaba, numa lógica psicológica verossímil, sendo feito por Neusa Suely, a acusada inocente que reage ao tirar a navalha da bolsa para confrontar Veludo. Resolvido o conflito, mediante a confissão de Veludo, e com a saída deste, resta agora o terceiro e definitivo confronto entre Vado e Neusa Suely, num triste desnudamento do vazio existencial das personagens que têm no imediato do cotidiano sua única razão de existir. Neste confronto, mais verbal que físico, predomina, de um lado, a humilhação do macho à fêmea que se vê desprezada com a perda da beleza juvenil, e, do outro, a mulher Neusa Suely reivindicando afeto e sexo, portanto, o que ressurge da humilhação é a mulher fazendo valer sua condição de fêmea. Nada acontecerá fora das quatro paredes. Sonhos, projetos de vida, conquistas, nada existe. A vida se resume tão somente àquele quarto imundo de uma pensão imunda.

Vale acrescentar à explanação acima que os confrontos se estruturam a partir de um jogo dinâmico de forças que se revezam, criando um sistema interessante de domínio e sujeição. Em certos momentos, o sádico e machão Vado se vê subjugado pelo fracote Veludo e, em outros momentos, pela desamparada Neusa Suely. E estas dinâmicas criam maior ritmo e força sob a batuta de um diálogo enxuto e ágil, como se cada fala fosse um cuspe na cara.

Neusa Suely é a prostituta do dia a dia. Alimenta esperanças, aceita migalhas, acomoda-se a uma relação baseada na troca desleal de afeto por dinheiro, onde sentimento e respeito são moedas sem valor algum. Guiada pelo desalento, ela ainda tenta se manter em pé, cultivando vagas esperanças de que aquele homem grosseiro ainda lhe dê algum lugar ao sol. Nem que este lugar se resuma à cama! Enquanto não realiza seus pequenos desejos, Neusa Suely pertencerá a um mundo que não existe, porque ela não cabe na normalidade social de uma sociedade preconceituosa e excludente. Portanto, a única porta de saída ainda é Vado, que absolutamente não está disposto a abri-la, posto que, se abrir, sua masculinidade correrá sérios riscos. Em sua defesa de macho, a estupidez continua sendo sua máscara. E é com esta máscara que Neusa Suely se relaciona.

Veludo não nutre esperanças quanto a ser um indivíduo pleno de todos os seus direitos, um deles, o direito à felicidade. Ele apenas dá passos pequenos, cautelosos, para não cair no abismo, já que sua única realidade é satisfazer seus desejos mais imediatos, maconha e sexo. A agressão sem consequência é o símbolo maior de sua condição de ser invisível. E sua condição miserável é algo que vem do social, simbolizada na opressão ao excluído pelo preconceito. Não sendo forte, se recusa, com brio, a fazer o papel oposto. Com suas violências impuras, em Veludo a verdade é sacrílega, sem contudo ser pecadora.

Vado vai além da esquemática configuração de poder do macho sobre a fêmea. O poder existe, mas vacilante, desprovido de respaldo moral, o que nos faz perguntar que macho seria ele fora daquelas quatro paredes. Mas ali, no quarto imundo, ele atua para subjugar, não só psicológica, mas também fisicamente, com base na cultura machista de polo dominante e inquestionável. Na agressão física não se conversa, bate-se. É a destrutiva convicção do mais forte sobre o mais fraco, seja a mulher, o negro, o homossexual. Mas não é só o caso de bater em Neusa Suely pelo fato de ela ser mulher. Tampouco por ser Veludo um veado. A dramaturgia de Plínio Marcos está recheada de subjugações físicas, inclusive entre homens heterossexuais. Tonho sobre Paco, em Dois Perdidos numa Noite Suja, é um exemplo. Aqui, no entanto, trata-se de defender o espaço miserável onde o macho, em atuação covarde, se esconde.

Outra característica da dramaturgia de Plínio Marcos é a não existência de vida pregressa. Não existe o divã da classe média. Tampouco memória. A personagem se define e atua pelo que ela é hoje, pelo que ela precisa no imediato. O aqui e agora é que importa. E se impõem. É sempre a dinâmica corrosiva de relações em torno de alguma vantagem, no caso o dinheiro, ou em torno de alguma necessidade, no caso a fome, o sexo, o vício. E como pano de fundo destas migalhas de vida existe a busca desesperada por afeto, atenção e colo. Mas aqui se trata, o afeto, de algo abstrato, portanto, não imediato. A fome, tem-se que matá-la agora. A carência afetiva, bem, esta pode esperar, quem sabe seja satisfeita em algum lugar, ao longo do tempo, num beijo casual, num sexo comprado. A única coisa que não se permite é olhar para trás.

Se falta o sentido de história, sobra a consciência de sua condição humana inserida em um mundo que pouco dá e tudo pede. E esta consciência se reflete à perfeição quando Neusa Suely se pergunta. “Será que somos gente?”. Esta nos parece ser a condução existencial da dramaturgia de Plínio Marcos. Personagens que não se encontram em lugar algum, como se não existissem fora de si. Personagens que não se reconhecem na sociedade da qual, como cidadãos, deveriam fazer parte. Transitam, exilados, pela vida.

Em suma. O imediatismo do existir tem sua relevância cênica em conflitos que giram em torno de objetos com alguma função na vida pessoal da personagem, e que se expandirão na função social, fim último do conflito. Talvez o exemplo de objeto mais clássico na dramaturgia de Plínio Marcos sejam os sapatos de Paco, em Dois Perdidos numa Noite Suja. Em Navalha na Carne, a navalha é só um símbolo de poder passageiro, posto que o poder só existirá enquanto a navalha estiver na mão. É o dinheiro aqui o objeto cênico que serve para comprar o pouco de lucidez que se pode tirar daquela realidade sem sentido. No entanto, em momento algum, já está decidido, o dinheiro preencherá o vazio gerado pela condição humana indigente da personagem. O que vem confirmar que o teatro psicológico só cabe nas camadas sociais elevadas, onde conseguir o pão de cada dia não é uma ação urgente, já que está antecipadamente garantida, portanto, cabendo espaço para as dores da alma. No teatro social de Plínio Marcos só cabem as porradas do pão nosso de cada dia. É a navalha na carne.

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Por Antônio Roberto Gerin

Quando apresentei minha gata Jade, no meu relato anterior, a que dei o título de A Gata Abusiva, de tanto que ela passou a tomar conta da minha vida, a ponto de querer eliminar tudo que pudesse me afastar dela, e só pra dar alguns exemplos, tipo quebrar meu espelho de maquiar, cortar tantas vezes quantas fossem necessárias o fio do meu fone de ouvido pra que eu não ouvisse música, arrebentar as cordas do meu violão, enfim, tudo era destruído pra que minha atenção se voltasse exclusivamente para ela, pois, tanto foi a minha aflição em falar da minha gata que deixei de apresentar, de propósito, o meu querido cão maltês, o Totó. Sim, o delicioso cãozinho que ganhei da minha mãe quando eu acabava de fazer sete anos. Portanto, lá se vão nove de convivência! Mas agora, com a chegada da Jade, as coisas mudaram um tanto. O Totó ficou magoado. E não foi pouco. A Jade, evidente, passou a dominá-lo como se ele fosse um brinquedinho casual. Totó se ressentiu, mudou alguns hábitos, em vão tentou cercar seu território, enfim, renunciou à vida e passou a dormir na cama da minha mãe. Ficava lá quase o dia todo, disposto a brigar pelo pouco espaço que lhe restara. Abatera-se-lhe uma tristeza silenciosa, que se refletia inclusive no seu latido, que mais parecia um grito de socorro. Entronizado em seu maravilhoso mundo de cãozinho bajulado por sua rara beleza, não contava com esse terrível lance! Aliás, e aqui introduzo meu segundo relato, nem a própria Jade, a protagonista da história, contava com o que viria a acontecer. Ela também iria mergulhar em silenciosa e prostrada tristeza.

Meu pai acaba de me presentear com outro gato! Sim, macho. Ioda. Agora somos cinco nesta casa. Eu, minha mãe, Totó, Jade e Ioda, o caçula! Todos isolados pela pandemia do coronavírus. E tivemos que, em pouco espaço, ajustar nossas convivências. O que não tem sido nada fácil.

Jade não se conformou absolutamente com a chegada do Ioda. Surpreendeu-nos suas reações. Encolheu-se, desapareceu, abandonou o afeto. Passou a me rejeitar. Recusava-se a entrar no meu quarto. Em hipótese alguma! Caminhava pelo corredor, nem olhava pela porta adentro. Sequer entrava pra comer e beber. Carinhos, abraços e beijos? Sumiram. Tive que colocar a comida e a água no corredor, pra que ela não morresse de fome e sede. E o que come é quase nada. Deprimiu-se. Perambula pela casa, sem rumo. Até o Totó, sobre quem ela tinha total domínio, passou a persegui-la, atrás de brincadeiras. Tenta encurralá-la com latidos, que ela despreza! Por mais que eu tentasse pegá-la no colo, afagá-la, ela, arredia, fugia. Era como se deixasse de existir. E eu me perguntava. Como tirar a Jade dessa tristeza…?

O Ioda chegou novinho, quase moleque, tive que dispensar a ele muita atenção, e, confesso, desliguei-me momentaneamente da Jade. Não que a tirasse do meu campo de afeto. Pelo contrário. Sentindo-lhe o desamparo, redobrei-o. Em vão. Ela me olhava, seus olhinhos verdes brilhavam, mas não tomava qualquer atitude. Mantinha-se distante, longe do meu quarto, pra ela agora o ninho de suas dores.

Pobre Jade! Fico-a imaginando deitada sobre o sofá, pensativa, os sobrolhos caídos, os olhinhos quase se fechando em atitude de alheamento. Meu Deus, Jade, nós te amamos, eu, o Ioda, até o Totó! Mamãe te adora! Venha pro quarto! Eu, na minha angústia, imaginando todos nós juntos, esparramados sobre a minha cama. Sonho até besta, sentimental, mas era o que eu tinha pra me oferecer.

Me lembra um pouco dos tempos em que Jade passou presa na gaiola, um método temporário que arranjei pra corrigir alguns hábitos possessivos dela. Não acho que errei! Ademais, foram só alguns dias, e logo comecei a abrir a portinhola. Ela podia entrar e sair. Com a chegada do Ioda, acabou a gaiola, o fato está esquecido, e espero que ela não tenha guardado mágoas. Ela só tem que entender que meu amor continua o mesmo, mas que agora vem a necessidade de aceitar que tudo na vida se divide. Inclusive o afeto! No entanto, vejo-a passar pelo corredor, diante da minha porta aberta, sem sequer olhar.

E assim se passaram muitos dias nessa apatia e distanciamento, que Jade fazia questão de manter a todo custo. Hoje à tardinha fui à padaria comprar chocolate pra fazer meu café cremoso, o mesmo café que eu costumava tomar com minha mãe todas as manhãs de domingo, no Frans Café, antes da pandemia. Quando retornei, a Jade não estava dormindo no sofá, como eu a havia visto antes de sair. Pressentindo algo, corri para o meu quarto. Jade estava deitada na minha cama! E logo percebi. Tinha rasgado boa parte do livro que eu estava lendo, As Aventuras de Tom Sawyer, que minha mãe havia acabado de me comprar. Sobre o peitoril da janela, o Ioda, sentado, orelhas em pé, a tudo observava, maravilhado! Num primeiro momento me desceu ao rosto raiva misturada à frustração. Mas logo me recobrei. Afinal, minha Jade tinha voltado!

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Por Jackson Melo

Parecia estar tudo bem
Só parecia
Enquanto todos achavam
Que estava tudo bem
Ele desmoronava
E só, ele estava

Seus sorrisos
Eram tão falsos
Que nem ele mesmo acreditava
Sua vida
Uma piada de mau gosto
Da qual ele se depreciava

A cada copo cheio
Um gole a menos
De si mesmo
De seu sonhos
Da vontade
De ter vontades

Se entregava pouco a pouco
E nem mesmo imaginava
Que perdia a batalha
E tudo que passou pra chegar até ali

Um banco de apoio
Onde ele descansava seu corpo
E uma gravata de linho
Aquela com nó bem firme
Pra segurar o peso de sua derrota
Tudo que foi preciso
Pra sua própria desgraça
O restante de sua força
Concentrada em seu fim
A subida, um nó e a renúncia

Um último pensamento
Enquanto a vida
O deixava
Eu me rendo
Vida entregue.