Persona

O encontro de duas dores

Por Antônio Roberto Gerin

 O que falar de um Bergman abusado, entrando furiosamente na psique de suas personagens, e se comportando como um visitante intruso? E, às vezes, inescrupuloso? É assim que Bergman se aproxima de suas duas personagens, Elisabet Vogler (Liv Ullmann) e Alma (Bibi Andersson), em um de seus mais insondáveis e belos filmes, PERSONA (83’), Suécia (1966). Belo, sim, mas principalmente enigmático, pois, para onde olhamos, vemos um ponto de interrogação. A primeira impressão que o filme nos traz é a percepção de estarmos diante de uma relação simbiótica entre duas mulheres que se encontram em situação de dor. E que fazem desse encontro um painel assustador de como a mente humana está à mercê de impulsos, sobre os quais não temos nenhum domínio. E nenhuma compreensão. Mesmo que queiramos entender e, quem sabe, mapear as conexões psíquicas desenhadas por Bergman, difícil será chegarmos a conclusões definitivas. A verdade é que Bergman, mais uma vez, não hesita em nos lançar na escuridão. Para quem gosta desse jogo, eis uma magnífica oportunidade de entrar em contato com mais esta obra prima do diretor sueco. E fiquem certos. É um jogo em que o espectador entra para ganhar. Sempre.

Uma famosa atriz de teatro, enquanto encenava o espetáculo Electra, texto de Sófocles, sofre um inesperado colapso mental que a deixa calada e imóvel. Caso de psiquiatria, caso de internação. No entanto, seu estado mental e físico é estável, a despeito de inspirar cuidado em tempo integral. Para isso, é contratada uma enfermeira, Alma, que acompanhará a paciente no seu dia a dia. E para que a recuperação seja mais rápida, Elisabet, juntamente com Alma, são levadas a uma casa à beira-mar, onde boa parte da narrativa sobre a relação de conflito entre as duas mulheres terá lugar. Bergman, novamente se valendo de sua habilidade em estruturar situações dramáticas no tempo e espaço, tem neste lugar calmo e isolado mais uma oportunidade para fazer seu laboratório da alma humana. E ele faz. Com um bisturi afiado. E incisivo.

Para conseguir o efeito estético que deseja, Bergman se vale mais uma vez do seu monumental diretor de fotografia, Sven Nykvist. Nykvist posiciona a câmera em ângulos cuidadosamente escolhidos, de onde, através da luz natural e direta, com embates precisos entre claros e escuros, capta com exatidão a visceralidade do silêncio de Elisabet e a inquietude corporal de uma Alma verborrágica, cada vez mais desamparada com o silêncio da outra.

E Bergman se vale também de seus diálogos cortantes para escancarar a intimidade das duas mulheres. Os diálogos, na verdade monólogos, agem como se fossem crostas de velhas feridas que vão se desprendendo da alma e deixando supurar, suavemente, os pequenos monstros que habitam as profundezas do universo feminino. São forças ocultas que precisam se manifestar e, para isso, contam com a mãozinha generosa de um Bergman inquieto e essencialmente humano. E esta habilidade, vale ressaltar, é um dos maiores trunfos que fizeram de Bergman um dos grandes diretores da história do cinema. Estamos falando da sua exímia capacidade de encaixar os diálogos nas cenas, com uma precisão assustadora, visivelmente teatral. Esta habilidade artística faz da presença humana na fria tela do cinema a confirmação de que não há limites para uma personagem se confundir na atriz, como oportunidade mágica de corporificar a ideia de dor aos olhos do espectador.

A discussão que percorre as variadas análises sobre o filme se atém em querer saber se as mulheres se fundem uma na outra. Ou quem se funde em quem. A verdade é que algo nos escapa, algo nos intriga, algo pode ser ou pode não ser. A verdade é que, para onde quisermos ir com nossas suposições, haverá sempre uma base lógica e psíquica que sustentará nossa abordagem. Essa é a aventura intelectual que o filme nos propõe.

Vamos lá, nós também, tentar apreender alguma ideia básica do filme. Com quantas temáticas Bergman trabalha em Persona? Muitas. Algumas mais visíveis. A arte redentora. A sensualidade, recorrente em sua filmografia. A destrutividade. A culpa. Os arquétipos, revelados em imagens rapidíssimas mostradas no início e meio do filme. Mas há uma temática que toma proporções mais devastadoras para as duas mulheres e que se transforma no seu ponto de fusão: a maternidade. Eis o tema, para nós, desencadeador da narrativa. Aliás, este tema fora abordado com maestria em 1958, portanto, oito anos antes, em No Limiar da Vida, e seria aprofundado, em 1978, em seu magistral e doloroso filme Sonata de Outono, o que faz da maternidade um dos pilares temáticos da obra de Ingmar Bergman.

Como se vê, Bergman costura sua narrativa em direção às dores das duas mulheres. Sabemos que a maternidade é uma das máscaras sociais mais rigidamente vigiadas e protegidas pela sociedade. É onde a mulher é intocável. E é justamente onde ela se aprisiona. Ter que amar o filho, eis a chave do aprisionamento. Alguém, em sã consciência, aceita que uma mãe não ame seu filho? A ponto de desejar-lhe a morte? Este é o sentimento de Elisabet, que, forçada a assumir o papel da maternidade, passa a odiar o filho desde sua concepção. Faz de tudo para eliminá-lo e não consegue. Esta é Alma, que tem uma relação casual com um menino, de quem engravida, e que não hesita em rejeitar o filho no aborto. A fusão da dor se dá, no filme, em uma de suas cenas finais, quando Alma, em cena repetida duas vezes, com molduras oníricas, revela, no silêncio incomunicável da outra, a dor da incapacidade de amarem os próprios filhos. Cavem-lhe, portanto, a sepultura da culpa! Culpa esta que uma expia no silêncio, dando voz à dor na fala da outra. São duas mulheres numa só mulher. Partilham o sentimento oculto da negação da maternidade. Oculto, sempre. Para que ninguém lhes atire a primeira pedra!

A base da insegurança humana é não termos controle sobre nossos sentimentos. Eles são espontâneos e traduzem, à nossa revelia, quem realmente somos. Então, somos terrivelmente frutos de algo intangível e volátil, que nos molda no dia a dia e nos obriga, muita das vezes, a fingirmos ser o que não somos. Dentro de uma sociedade rigorosamente predeterminada, seremos sempre alvos frágeis de nossos sentimentos e pensamentos. E quanto mais tentamos controlá-los para não sermos punidos, ou rejeitados, mais nos distanciamos de nós mesmos. Eis o dilema, caro espectador. Qual a máscara que melhor nos serve? Que melhor nos protege? A impressão que fica é que não sendo a nossa própria máscara (persona), qualquer uma servirá. Afinal, já fomos condenados, desde o nascimento, a não conhecermos quem somos. Essa é a dor dos homens.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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