Saraband

O que fizemos com as nossas vidas?

Por Antônio Roberto Gerin

Com SARABAND (111’), SUÉCIA (2004), seu último filme, Ingmar Bergman não deixaria escapar a oportunidade de nos oferecer mais uma de suas obras-primas. E que obra-prima! Vamos ver um Bergman em estado puro, sem nos poupar o que há de mais obscuro e devastador no ser humano. O ódio entranhado na pele envelhecida como um troféu de vida sem afetos, sem cuidados, obsessivamente construída em cima de pequenos rancores que, como pedrinhas, foram sendo espalhados ao longo do caminho. À medida que Bergman vem recolhendo estas pedrinhas, vão emergindo na tela os fantasmas que habitaram sua filmografia ao longo de seu trabalho como roteirista e diretor. Talvez no anseio de saber ser este seu derradeiro filme, Bergman nos prepara cuidadosamente cenas antológicas, como a nos dizer, olha, eis o meu último filme! Sim. Saraband é seu último grito.

Marianne (Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) são os personagens, marido e mulher, do belíssimo filme Cenas de um Casamento, de Bergman, lançado na Suécia em 1972, e que conquistou, à época, grande sucesso. Agora, trinta anos depois, em Saraband, a mesma Marianne, (novamente Liv Ullmann) resolve visitar Johan (novamente Erland Josephson), seu ex-marido. É, para ela, uma decisão difícil, já que há riscos de se ressuscitarem antigas dores e mágoas. Mas o impulso fala mais alto, e Marianne bate à porta do chalé de Johan, isolado numa ilha distante, no meio da mata. A presença de Marianne na casa do ex-marido vem transformar a rotina quase monacal daquele lugar em uma teia destrutiva de horrores. Os conflitos estão todos ali. Feito lenha empilhada, à espera do fogo. E conflito é assim, como a lenha. Só precisa que alguém acenda o pavio. Este é o papel que Marianne vai desempenhar na estrutura narrativa de Saraband. Encarregada de transportar os conflitos ao longo da trama, sua tarefa é incômoda e cada vez mais dolorosa. Mas Bergman, infelizmente, não oferece a Marianne outra escolha.

O filme se desenvolve dentro de uma estrutura narrativa muito interessante. Ele é dividido em dez capítulos, além do prólogo e do epílogo. Portanto, no todo, Saraband compõe-se de doze partes narrativas. O título do filme, Saraband, remete às Sarabandas, um tipo de canção que se espalhou pela Europa, cujo ritmo, sincopado e triste, rege a atmosfera emocional do filme e estabelece seu desenho de dança. E é exatamente isto que queremos enfatizar. A narrativa assenta-se na estrutura de uma dança. E numa dança que se dança aos pares. Isto quer dizer que cada uma das dez cenas será representada tão somente por duas personagens. Apenas o prólogo e o epílogo serão apresentados unicamente por Marianne que, como já foi mencionado, está encarregada de conduzir a narrativa.

E não são muitas as personagens do filme. Apenas quatro. Além de Marianne e Johan, já apresentados, compõem a trama o filho de Johan, Henrik (Börje Ahlstedt), e sua filha Karin (Julia Dufvenius), neta de Johan. São estas quatro personagens que vão se alternar, aos pares, na sequência das dez cenas. Evidente, o primeiro par a se apresentar será Marianne e Johan, na cena inicial do reencontro entre os dois, onde já se estabelecerão os elementos dramáticos que motivarão o desencadear dos conflitos familiares.

Vale lembrar, ainda nos referindo à estrutura narrativa do filme, que o segredo do sucesso do roteiro está justo no encaixe perfeito desta sequência de cenas aos pares, encaixe extremamente utilitário do ponto de vista da dramaturgia, porque ele vai permitir a Bergman ativar, com eficiência artística, as conexões já estabelecidas, a priori, nas relações de família. O que o encadeamento de cenas faz é atribuir a cada integrante seu papel na dinâmica dos conflitos. E, sem dúvida, já adiantando para o espectador, esta genial estrutura vai permitir assistirmos a uma das mais tenebrosas cenas de relação familiar de que o cinema tem notícia. Falamos do encontro entre Johan, pai, e seu filho, Henrik, cena onde a humilhação é apresentada em sua mais vil roupagem, o cinismo. Outras cenas se seguirão, no mesmo cruel diapasão, ressaltando aqui o núcleo mais terrível, que são as cenas entre a desamparada Karin e seu pai incestuoso, Henrik. Acorrentada emocionalmente a ele, ela clama por liberdade. Este é o grito primal que empurrará o drama para seu clímax. Eis, então, a estrutura do filme. Possibilitar que nos encontremos frente a frente, aos pares, com a nossa miserabilidade. Sem subterfúgios. Sem uma terceira personagem que nos ampare.

Ingmar Bergman, como em outros de seus filmes, também neste, Saraband, volta, maldosamente, a nos alertar. A verdade nos ronda, sempre. E esta é a nossa sina. A de ter que encará-la, mais cedo ou mais tarde. Enquanto não a encaramos, ela se transformará em nossos fantasmas. Aliás, fantasma pode nos parecer um termo abstrato, mas não é. Ele define tudo aquilo que não queremos enxergar. E por não querermos enxergar, restará à nossa verdade nos rondar, nos perturbar. E como salvo conduto, para nos protegermos do medo de que ela apareça, preferimos nos esconder atrás de pequenos ódios e rancores. É isto que fazemos no nosso dia a dia. E este será o nosso erro. O de não percebermos que a verdade jamais irá embora. E que, portanto, só ela poderá nos libertar.

Em suma, aqui está o tinhoso Bergman. Em sua trajetória como artista, tanto insistiu em nos fazer enxergar as nossas verdades, que passamos a ter medo dele. Quem assistiu a seus filmes Persona (1966) e a A Hora do Lobo (1968), perceberá a verdade nos cercando, como lobos famintos. Mas é ainda uma verdade perturbadora, sem a ameaça do ataque final. Em Saraband, não. É quando Bergman perde a paciência e nos joga na cara a que fim levam relações construídas à base de ódios e rancores. É termos que olhar para trás e perceber que é exatamente só isto que nos restam, ódios e rancores. Tantos! Mas aí já estaremos velhos e muito fracos para conseguirmos removê-los. Nunca vamos poder ver o que de bom existia por trás destes sentimentos. É isto que Saraband nos mostra. E foi este o último aviso de Bergman. Cuidar para que não nos transformemos em fantasmas de nós mesmos. Teremos sido seres humanos incompletos.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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