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Faroeste tupiniquim

Por Antônio Roberto Gerin

FAROESTE CABOCO (108’), direção de René Sampaio, Brasil (2013), é um filme, como o próprio título revela, baseado na música homônima do Legião Urbana. E este é o primeiro motivo para se elogiar a proposta de produção do filme. É sempre um risco fazer um filme baseado em literatura clássica, e mais desafiador ainda é fazê-lo baseado na narrativa de uma música tão icônica para a nossa cultura, em particular para a cultura musical brasiliense. Não tem como não fazer as inevitáveis comparações. E pode-se afirmar que o filme resiste a elas.

Óbvio que quando se ouve Renato Russo expressar o encanto de João de Santo Cristo, bestificado ao chegar à Brasília, vindo de Salvador, quando ele sai da rodoviária e vê as luzes de natal e Renato canta “Meu Deus que cidade liiindaa!”, esperamos que o filme reproduza as mesmas sensações de encanto transmitidas pela interpretação de Renato Russo. A passividade do personagem João de Santo Cristo (o competente Fabrício Boliveira) olhando as luzes de natal pela janela do ônibus nos frustra, mas isto é apenas uma exigência de quem já está impregnado da sublime interpretação do vocalista do grupo.

O roteiro adaptado merece bons aplausos. Renato Russo, ao compor a narrativa, evidente, não tinha a preocupação de compor um roteiro cinematográfico, tampouco construir uma narrativa pura do ponto de vista formal. Portanto, os roteiristas tiveram que se virar nos trinta para alinhavar uma história com um peso dramático que se encaixasse na linguagem cinematográfica. Em alguns momentos, peca-se pela falta de um maior rigor narrativo, mas nada que comprometa o ritmo e a beleza do filme, cujo ponto alto é o momento do duelo.

Impossível não se lembrar dos inúmeros duelos a que já assistimos, mais precisamente o belo e demorado duelo (8min30s) de Era uma Vez no Oeste (1968), de Sérgio Leone, e o icônico duelo a três em O Bom, o Mal e o Feio, também de Sérgio Leone, que, aliás, adorava duelos, por isso caprichava. O duelo caboclo é mais enxuto, sem precisar recorrer a flashbacks para aumentar a tensão dramática. É rápido, objetivo e a estruturação do desfecho é crucial para o sucesso da cena, quando o covarde Jeremias (Felipe Abib) se aproveita da distração de João do Santo Cristo com a chegada de Maria Lúcia (Ísis Valverde) para ganhar o duelo. No faroeste tupiniquim, existe o ingrediente da covardia. Uma inovação.

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Por Alex Ribeiro

Medeia é uma tragédia grega escrita por Eurípedes por volta do ano 431 a.C. Foi apresentada no último festival de tragédias realizado numa Dionisíaca, festa em homenagem ao deus Dionísio. Neste festival, três dramaturgos competiam em um concurso, cada um deles com quatro peças. As outras peças de Eurípedes, que acompanharam Medeia, foram destruídas com o passar do tempo, e não há registro escrito das mesmas. Nessa Dionisíaca, Eurípedes ficou em último lugar, atrás de Eufórion, filho de Ésquilo, que foi o campeão, seguido de Sófocles. Apesar desse aparente fracasso, Medeia se tornaria uma das personagens mais impressionantes do teatro de todos os tempos, e a peça viria a ser a tragédia grega mais montada no século XX.

Medeia, após ser abandonada pelo marido Jasão, descobre que ele se envolveu com a filha do rei e que os dois irão se casar. O novo casamento de Jasão desperta em Medeia um ciúme incontrolável, provocando nela uma tempestade de emoções, elevando suas dores ao insuportável. Por se ver ali, naquela cidade, como uma estrangeira, Medeia fica totalmente desamparada. Suas falas exalam paixão, e suas atitudes, amor e ódio. A dor de Medeia parece transpassar a alma e a única saída possível parece ser a morte.

Vendo-se abandonada, quer se vingar de Jasão a qualquer custo e não mede esforços para isso. E se a rejeição é uma dor insuportável, talvez houvesse para Jasão um sentimento parecido. Medeia desenha a tragédia e a executa. Jasão irá perder todas as pessoas que ama. Ficará, também ele, órfão do amor que dedicara aos seus. Tornar-se-á um estrangeiro de si mesmo. É então, para levar Jasão ao sofrimento completo, que Medeia sacrifica os próprios filhos e assassina a filha do rei, sua rival. Agora os dois estão novamente em pé de igualdade. Ninguém consegue mensurar as dores dos dois, e essas dores percorrerão o mundo por muitos séculos, mostrando ao espectador que certas condições humanas podem nos levar a consequências irremediáveis.

O ciúme já levou muitos dos grandes personagens do teatro a perderem completamente a razão. Ele está nos risos e trapalhadas das comédias de Molière, nos conflitos profundamente humanos de Shakespeare, na poesia dramática de Lorca e, claro, na tragédia humana de Eurípedes. Certo é que quando se trata de ciúmes, o gosto amargo do sangue quase nos chega à boca. Afinal, amar de forma desprendida é uma lição difícil para quem quer que seja. E ser preterido, caro leitor, é dor que palavra nenhuma traduz, a não ser que esta palavra nos faça viver a dor do outro. E isto o teatro faz muito bem. Ele nos faz rir ou chorar num deleite que pode nos parecer absurdo, mas que, na verdade, é o caminho que o próprio teatro nos oferece para nos reconhecermos na dor do outro. Ou na nossa.

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Um filme à la Romeu e Julieta

Por Antônio Roberto Gerin

MARGUERITE & JULIEN (110’), direção de Valérie Donzelli, França (2015), é um filme que trata de assunto delicado, pouco visto no cinema, atualmente. Incesto. Neste caso, incesto entre dois irmãos gêmeos, Marguerite e Julien, que emprestam seus nomes ao filme.

O filme é baseado em história real, mas desde o começo deixa claro que se trata de uma versão livre da história ocorrida há alguns séculos. E não se propõe a dizer a verdade nua e crua. Com certos assuntos é melhor não ir a fundo, pois não há a intenção de chocar, nem de provocar discussões. No máximo, causar um certo nojo. Mas nem isso o filme consegue com eficiência, quando ele tira a responsabilidade do incesto, quer dizer, a paixão incontrolável dos jovens irmãos tira o peso do abuso.

O fato em que se baseia o filme ocorre por volta do começo do século XVII, mais precisamente em 1603, quando se dá o desfecho do drama. É uma história de paixão entre dois jovens irmãos… Paixão? Sim, paixão proibida, por isso vai mobilizar família, igreja e sociedade. Os dois jovens resistem a todos os contrários, levando sua decisão até as últimas conseqüências.

Quem for ao cinema para conhecer de perto o que significa vivenciar uma paixão incestuosa, com toda sua carga de sofrimentos, culpas e dores, não vai encontrar o que procura. Talvez a falha narrativa do filme esteja no papel equivocado da mãe, que chega a ponto de apoiar o casal de filhos na sua insana paixão, facilitando-lhes a fuga. Essa atitude da mãe parece esvaziar todo o contexto social moralizante do incesto, conduzindo o desenrolar da narrativa para uma dinâmica dramática de um Romeu e Julieta, onde se prioriza os impulsos da paixão e deixa de lado os riscos morais e sociais do incesto. Não se trata de ser contra ou a favor desta paixão. O que não se pode desconsiderar é o peso social do ato que, infelizmente, pesa mais que chumbo.

Uma direção firme, mas moralmente indefinida. Arrumadinha, afinal, pretende-se agradar a gregos e troianos. É como se o diretor rodasse o filme com um olho do demônio na bilheteria.

Quanto à estética do filme, fica aí um risco para a direção e uma surpresa para o espectador. Helicópteros e carros passeando pelo bucólico interior francês do século XVII. Alguém já viu isso? Se não viu, vale a pena dar uma olhadinha, afinal, para se esconder as verdades nada melhor que se valer da fantasia.

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